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4 O ILÊ AXÉ OXUM DEMUN E A CIDADE DE ALEGRETE

4.4 UM TERREIRO PRODUZINDO SUA HISTÓRIA

No final deste capítulo, gostaria de fazer algumas considerações teóricas e também pontuar a presença do Ilê Axé Oxum Demun em alguns momentos. É perceptível que, para o povo de terreiro de Alegrete, a forma de reconhecer a si mesmo e de se inscrever nas questões externas ao terreiro mudou bastante ao longo da sua trajetória. Os mais antigos falam de um período entre os anos 1940 e 1980 em que a presença do povo de terreiro na cidade se dava de forma subterrânea, as exceções dessa regra (como a pessoa de Araci Baez) causavam estranhamento na comunidade externa. Depois, com o surgimento da AURAFA, o povo de terreiro começou a se expor mais. Aquela que era uma conduta individual de Araci Baez (publicizar as atividades do terreiro) passou a ser adotada pelo coletivo. Após o fim da AURAFA e até o surgimento do CPTMA, não há registros de nenhuma atividade similar, inclusive, as atividades do CPTMA foram vistam com olhos de saudosismo pelos batuqueiros mais velhos da cidade.

Da mesma forma ocorreu com o Ilê Axé Oxum Demun e sua família de santo. Embora a própria família de santo perceba que venha ocorrendo aberturas às questões externas, a família sempre manteve um ar de austeridade e de isenção acerca das atividades externas ao terreiro. Por exemplo, quando a AURAFA existia, houve a tentativa de dar à Associação um caráter fiscalizador dentre os terreiros. Naquele momento, Mãe Lili de Xapanã (então líder da família de nação Oyó em Alegrete) se eximiu de qualquer questão doutrinária que ocorresse fora do âmbito de seu terreiro, isso para não abrir precedentes para que viessem a intervir na dinâmica da sua casa no futuro. Outro exemplo (que lembra muito a conduta de Lili) é quando a família do Oyó assiste às atividades do CPTMA a uma certa distância, apoiando sempre que preciso, mas sem se envolver diretamente.

Percebo que esta família de santo vem se inscrevendo na vida externa ao terreiro de diferentes formas, mas sempre mantendo uma identidade. Assim, o terreiro imprime sua personalidade nessas formas de agir, singularizando-se no círculo de convívio social com outros terreiros (âmbito externo) e também criando laços de identificação fortalecidos pelo fazer coletivo e por um objetivo em comum (âmbito interno).

Por isso uso o termo “produzindo sua história”, afinal, como assinalou Sahlins (1981), não é possível pensar em reprodução cultural sem pensar em

transformação. Retomando o que escrevi sobre a trajetória do povo de terreiro do Rio Grande do Sul, vemos que esta é marcada por constantes tentativas de cerceamento de seus direitos e pela alternância de épocas em que suas práticas eram ora postas na ilegalidade, ora (mesmo sem o componente legal) malvistas pela sociedade. Por isso, quando vejo a serenidade com que os mais velhos lidaram com problemas graves, como a tentativa de proibição do sacrifício animal no estado ou a constrição financeira, entendo isso como a repetição de um evento que se estruturou como parte da mitologia do Batuque (SAHLINS, 1981). Uma frase que é muito dita aos filhos do terreiro quando estes se queixam do excesso de exigências (em gastos ou em trabalho) dos orixás é: “Se o santo realmente quer, ele vai te dar condições”, e dessa forma lidam com essas questões. Claro que, quando falo em “serenidade”, não trato como displicência, pois há sim todo um trabalho coletivo para fazer as coisas darem certo, mas sempre com a certeza de que a providência das entidades virá tal qual veio no passado.

Aquilo que Sahlins chama de evento estruturante, o Batuque chama de “rotinização do axé” (como já abordado), sempre tratado com muita cautela, pois é uma via de mão dupla. A mesma rotinização que pode trazer otimismo para a luta de superação das dificuldades traz também a repetição das coisas negativas. No caso do CPTMA, por exemplo, ele existe há pouco tempo para sabermos se o Ilê de Carlos e o povo de terreiro da cidade estão o interpretando como uma repetição do que foi a AURAFA.

Esse questionamento traz para a discussão o conceito de agentividade, pois indaga sobre a possibilidade das pessoas de imporem suas escolhas no meio em que vivem, mesmo que esse meio funcione por mecânicas que nem sempre estejam sob seu controle. Tomemos, por exemplo, uma proposição de Hobsbawm e Ranger (2008) sobre as tradições inventadas, que para os autores seriam ações ritualizadas, repetidas e institucionalizadas pelo interesse de algum grupo. Porém, como visto em alguns dos casos descritos da trajetória do Batuque, nem sempre há o interesse do grupo em institucionalizar (rotinizar) certas tradições (axés, fundamentos). Segundo o fundamento, na primeira vez que ocorre determinado ritual em um terreiro, a forma com que as coisas acontecem há de se repetir nos próximos rituais do mesmo tipo, por isso a preocupação em não haver brigas ou falhas na execução de qualquer rito.

Ou seja, há o temor de que se rotinize um axé ruim, afinal, há a possibilidade da criação de uma tradição que não seja de interesse do grupo. Isso também aponta

a capacidade de agência do grupo em criar um futuro bom e produzir sua história, quando controlam as variáveis que envolvem os ritos. É perceptível que, nesses momentos, a agência do grupo está mesclada com os fatores imponderáveis impostos por condições externas. Os mecanismos que regem a mudança cultural dentro do Batuque não são tão direcionáveis como dizem Hobsbawm e Ranger (2008), mas também nem tão fortuitos como os descritos por Sahlins (1981). Trata- se realmente de uma negociação entre a tradição e as limitações financeiras, ou a disponibilidade de materiais, o poder público etc.

Concluindo, hoje o Ilê Axé Oxum Demun (bem como outros terreiros de Alegrete) encontra-se em uma condição delicada. No passado, nas origens da AURAFA, mesmo que fosse uma época com o peso da sequela histórica recente da ditadura militar, a comunidade de terreiro lutava para conseguir mais direitos além dos que recentemente tinha conquistado com a constituição cidadã de 1988. Enquanto hoje, observando os motivos por trás do surgimento do CPTMA, vejo que as suas pautas de trabalho se detêm em tentar garantir um mínimo de direitos, pois são constantes as tentativas de alienar novamente esse povo daquilo que conquistaram. Agora essa comunidade luta, não para garantir mais direitos, mas para não perder aqueles que já tem.