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3 OS IMPASSES E O IMPOSSÍVEL: O QUE SE ESPERA DO PSICÓLOGO NO

4.2 SAÚDE: DIFERENÇAS ENTRE TEORIA E PRÁTICA

4.2.2 Formas de trabalho

A forma de atendimento dos psicólogos das Unidades de Saúde está colocada na Tabela 17.

Tabela 17 – Formas de atendimento Cariacica % Serra % Psicoterapia Individual 7 100 11 100 Psicoterapia Grupal 4 57 9 81 Grupo de Acolhimento/ Encaminhamento 1 14 4 36 Visita domiciliar 26 1 14 4 36

Todos os entrevistados que atuam em US de Cariacica têm como principal e/ou única forma de trabalho o atendimento individual. A escolha sobre o tipo de atendimento é deles, uma vez que não há orientação específica da coordenação sobre uma determinada forma (apenas o sujeito 7 afirmou que esse tipo de atendimento é uma determinação do programa do qual faz parte).

Uma fala do sujeito 3 explicita a questão da escolha do próprio profissional sobre a forma de atender:

Na realidade, assim, as pessoas trabalham naquilo que elas estão à vontade, lógico que se a pessoa disser: Olha, eu para mim, não vou fazer grupo, não faz... Mas, aqui ninguém nunca se recusou neste sentido, mas é muito mais em relação à demanda, o que a população está demandando, por um lado e como juntar isso, por outro.

Na Serra, apesar de todos os entrevistados também terem como principal e/ou única forma de trabalho o atendimento individual, há uma orientação por parte da coordenação – informação dada informalmente pela coordenadora do Programa de Saúde Mental, em que estão inseridos os psicólogos entrevistados – para que os atendimentos sejam em grupo, o que justifica um número bem maior de profissionais trabalhando com grupos nesse município. A explicação da coordenação é tentar fazer com que os atendimentos nas US sejam mais coletivos, mais sociais, rompendo a lógica do atendimento clínico tradicional. Entretanto, como já dito anteriormente, alguns psicólogos apontam que essa é uma estratégia para atender um número maior de usuários para mostrar um grande número de atendimentos – aumentar a produtividade.

26 A visita domiciliar acontece em casos bem específicos, nos quais a pessoa não consegue se deslocar

fisicamente para chegar até a Unidade e Saúde ou quando um paciente grave não freqüenta mais o tratamento sem dar explicações.

Dos dezoito sujeitos entrevistados, oito (S2, S3, S8, S9, S11, S12, S15 e S18) explicaram o porquê da predominância do atendimento individual sobre o grupal, alegando que é a forma que a população prefere. Pois, como a Unidade de Saúde atende somente a pessoas de uma mesma região, elas se conhecem e não se sentiriam a vontade para participar de um grupo com conhecidos, vizinhos, etc. A fala do Sujeito 2 é muito clara nesse sentido:

(...) a gente não consegue perceber uma demanda da população pelo grupo. Querem individual. Então a justificativa é: ah, porque eu moro.. vou encontrar vizinhos no grupo, vai querer falar.. Então essa é a justificativa (Sujeito 2). Da mesma forma, os Sujeitos 3 e 15 explicam a preferência pelo atendimento individual:

(...) Os agravantes são: isso aqui é um posto de bairro, e as pessoas que vem são todas vizinhas. Então, restringe um pouco (Sujeito 3).

(...) Em geral, no início eles colocam resistência, assim: Ai, grupo, mas eu vou ficar me expondo? E se eu encontrar alguém conhecido? (Sujeito 15).

Por meio dessas falas, fica claro que o tipo de atendimento é justificado pela demanda da população por atendimento individual, não sendo colocado, por nenhum dos entrevistados, que essa demanda é historicamente criada pelo modelo biomédico e por ser a tradicional forma de trabalho do psicólogo no Brasil, sendo uma demanda não natural e passível de ser modificada à medida que outras interações vão sendo criadas. De certo modo, pode-se atribuir essa preferência a uma certa tradição na Psicologia. Mello, (1978) em pesquisa realizada no início da década de 1970, mostra que a preferência por essa forma de atuação foi construída desde o início dos cursos de Psicologia no Brasil. Independente da inadequação desse modelo predominantemente clínico na área da saúde, é o modelo ensinado e perpetuado por grande parte das graduações e favorecido pelo próprio sistema de saúde, o que leva a continuação de sua reprodução.

Essa identificação do trabalho do psicólogo com a Psicologia clínica pode ser averiguada a partir dos dados colocados no capítulo 1, que mostram que a clínica perpassa a trajetória dos psicólogos entrevistados e se confunde com o trabalho que eles fazem na saúde, como se trabalhar em uma US pública fosse uma extensão do

trabalho realizado em consultório particular, no qual os problemas são tratados segundo técnicas tradicionais, supostamente neutras e científicas.

O atendimento clínico, que ainda é o carro-chefe dos psicólogos e é privilegiado nos cursos de formação, foi transportado para a saúde pública, independente das especificidades do trabalho e dos outros tipos de inserção que o psicólogo pode ter. Yamamoto e Cunha (1998), Yamamoto et at (2001) e Yamamoto, Trindade e Olivera (2002), em pesquisas sobre o trabalho dos psicólogos em hospitais de Natal (RN), já apontavam que o trabalho realizado é tradicionalmente clínico, sendo que a principal atividade realizada era psicoterapia, tanto individual quanto grupal, onde ele aponta que (...) pelas próprias condições do adestramento teórico/técnico propiciado pelas agências formadoras, salvo exceções, os relatos indicam uma extensão do atendimento convencional clínico, adaptado às exigências de um contexto (de carência) da saúde pública (YAMAMOTO; CUNHA, 1998, s/ p.).

O sujeito 12 foi o único, entre todos os entrevistados, que demonstrou diferenciar algumas sutilezas entre o atendimento clínico tradicional e o atendimento individual em uma Unidade de Saúde:

A gente faz atendimento individual e tudo mais, mas não deixa de olhar para o social, não é por isso que isso não está sendo tratado como coletivo. É isso que alguns profissionais não conseguem entender: só está coletivo quando está em conjunto, está em grupo. Aí você vai.. tem essas questões todas. Então eu acho que eu não suportaria se eu não conseguisse ver esse lado social, essa coisa toda que está amarrada, né, no momento e que a pessoa traz.

Entretanto, quando esses dados são associados às demandas que chegam aos psicólogos, fica evidente que há uma individualização dos problemas, que junto a esse tipo de atendimento indicam uma clínica tradicional individualizante acontecendo dentro da estrutura da Unidade de Saúde.

A principal modalidade de atendimento, o individual, é visto de forma natural, sem questionamento por parte dos psicólogos, que em algumas falas explicam que não é uma terapia clássica, demorada, e sim um atendimento pontual, para resolver um problema específico que o paciente traz:

(...) Mas, não é aquela terapia de forma clássica, em que a pessoa vai ficar anos ali falando e aprofundando algumas questões. É muito mais imediatista:

Olha eu estou com tal problema, o médico não tem como resolver... Então acaba sendo um pouco mais focal (...) (Sujeito 3).

O imediatismo colocado remete ao modelo biomédico, no qual apenas é resolvida a queixa que levou o usuário a buscar a US, sem levar em consideração porque ela foi produzida/provocada, o que também é ilustrado pela falta do sujeito 6, que diferencia o atendimento clínico do consultório privado e da Unidade de Saúde:

(...) As vezes, só pelo fato de você dá um suporte ali, ouvir... tem gente que vem só pra uma triagem, já melhora, e tchau (...) Porque geralmente quem vem, vem porque está com algum probleminha... aqui. Não vai igual quem vai para o consultório, as pessoas pra fazer análise não.

Yamamoto e Cunha (1998) apontam que a prática dos psicólogos na área da saúde constitui-se uma adaptação dos recursos empregados em consultórios particulares, como a questão da psicoterapia breve. Não há busca de novos referenciais teórico- práticos que sejam adequados à noção de saúde tal como é compreendida pelo SUS. É possível constatar uma aplicação direta e clara dos modelos tradicionais, de acordo com os dados das entrevistas.

É perpetuada, portanto, essa clínica clássica, que tem como ênfase a dimensão intra- individual dos usuários, sendo o indivíduo visto como abstrato e a-histórico, conforme análise de Bock (1999, 2001), e que se adequa ao modelo biomédico com enfoque na doença, no atendimento individual e no saber-poder do profissional sobre os outros, vistos como pessoas que nada sabem sobre sua própria vida.

A análise dos referenciais teóricos citados pelos entrevistados como orientadores de suas práticas mostra um predomínio das abordagens clínicas individualistas. Assim, também é possível questionar a própria orientação teórica utilizada pelos profissionais, como propõem Yamamoto, Trindade e Oliveira (2002) ao discutir a adequação dessas abordagens, principalmente de cunho individualista, para um trabalho na saúde. 27

27

O autor questiona isso para o trabalho em hospitais, o que aqui considero bem pertinente para as Unidades de Saúde.

Dimenstein (1998) corrobora com esse questionamento ao analisar o modelo de atendimendo que tem sido usado nas Unidades de Saúde pelos psicólogos:

É acerca dessa formação que muitas referências na literatura vêm apontar o fato de estar havendo uma transposição pura e simples do modelo hegemônico de atuação clínica do psicólogo para o setor público, seja postos, centros ou ambulatórios, independentemente dos objetivos dos mesmos e das características da população neles atendida, gerando com isso uma prática inadequada e descontextualizada. Isso significa que há predominantemente a utilização de técnicas psicoterápicas, as quais são tomadas como o único instrumento de trabalho do psicólogo e como portadoras de um valor intrínseco, independente de onde e com quem são utilizados (DIMENSTEIN, 1998, p. 74).

Uma prática pautada nesse modelo explica o que fazer e como fazer, de forma que esse saber fica estagnado ao longo do tempo e perde de vista a questão social, impossibilitando a construção de novas formas de trabalho, pois já existe uma estabelecida, a qual todos devem se enquadrar. Como analisam Yamamoto, Trindade e Oliveira (2002), o grande desafio dos profissionais psicólogos nessa área da saúde é

superar as formas conservadoras de inserção, buscando ampliar seu espaço de atuação, com todas as implicações desse processo (p. 241).

Cabe ressaltar, por fim, que algumas novas formas podem estar sendo gestadas, para além da predominância do atendimento clínico individual. Entretanto, essas rupturas não foram apreendidas pelas entrevistas, sendo necessárias outras investigações para compreender os possíveis novos modos de um fazer profissional que podem não estar inseridos oficialmente nos discursos, mas acontecendo na prática.