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3 OS IMPASSES E O IMPOSSÍVEL: O QUE SE ESPERA DO PSICÓLOGO NO

4.1 SAÚDE: MUDANDO OS RUMOS DA ATENÇÃO BÁSICA

Em termos teóricos, alterações na concepção de saúde e propostas sobre novas formas de intervenção vêm acontecendo desde a década de 1970.

Em 1977, a Assembléia Mundial de Saúde assinalava a importância dos países priorizarem suas políticas públicas de saúde propondo “Saúde para Todos no Ano 2000”, assumindo uma proposta política de extensão da cobertura dos serviços básicos de saúde.

Em 1978, a Organização Mundial de Saúde promoveu a Conferência Internacional sobre Atenção Primária à Saúde, em Alma Ata, reafirmando a saúde como direito do homem, sob a responsabilidade política dos governos (PAIM; FILHO, 1998). Nessa Conferência, 134 países e 67 organismos internacionais se comprometeram com a proposta, elegendo como estratégia privilegiada para operacionalizá-la a “Atenção Primária”. Além disso, é este evento que consagra a definição de saúde como o “estado de completo bem-estar físico, mental e social” e não apenas a ausência de enfermidades (BRASIL/MS, s/d).

O nível primário de atenção é o primeiro nível de acesso e de contato da população com o sistema de saúde. São medidas deliberadas de indução a uma maior organização ou reorganização da porta de entrada aos serviços de saúde, cujo pressuposto envolve uma alteração no modelo de assistência: predomínio das ações preventivas e de promoção da saúde em detrimento das ações curativas de média e alta complexidade e hospitalares (BODSTEIN, 2002).

A atenção básica é definida pelo Ministério da Saúde (BRASIL/MS, s/d) como:

Caracteriza-se por um conjunto de ações de saúde, no âmbito individual e coletivo, que abrangem a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação e a manutenção da saúde. É desenvolvida por meio do exercício de práticas gerenciais e sanitárias democráticas e participativas, sob forma de trabalho em equipe, dirigidas a populações de territórios bem delimitados, pelas quais assume a

responsabilidade sanitária, considerando a dinamicidade existente no território em que vivem essas populações. Utiliza tecnologias de elevada complexidade e baixa densidade, que devem resolver os problemas de saúde de maior freqüência e relevância em seu território. É o contato preferencial dos usuários com os sistemas de saúde. Orienta-se pelos princípios da universalidade, da acessibilidade e da coordenação do cuidado, do vínculo e continuidade, da integralidade, da responsabilização, da humanização, da equidade e da participação social.

A Atenção Básica considera o sujeito em sua singularidade, na complexidade, na integralidade e na inserção sócio-cultural e busca a promoção de sua saúde, a prevenção e tratamento de doenças e a redução de danos ou de sofrimentos que possam comprometer suas possibilidades de viver de modo saudável (BRASIL/MS, s/d.).

A importância da oferta desses serviços, que são, a partir da descentralização, oferecidos pelos municípios, cresceu enormemente e tornou-os os principais responsáveis pela gestão da rede de serviços de saúde no país. As Unidades de Saúde são os elementos mais significativos dessa rede.

Bodstein (2002) aponta que a estruturação da rede de atendimento básico vem sendo um enorme desafio para a maioria dos municípios, pois a coordenação do incremento da atenção básica é complexa, o que tornam incertos os resultados de implementação do princípio da integralidade, que só pode ser praticado pelo fortalecimento da rede básica de serviços e da mudança do modelo assistencial – objetivo que vai ser buscado pelas Unidades de Saúde que vão se estender em quantidade e alcance da população. Botazzo (1999) aponta que as Unidades de Saúde foram pensadas, então, para dar resolutividade a quase 80% das intercorrências, funcionando como porta de entrada de um sistema público de serviços de saúde e encaminhando para serviços especializados e internações os casos de maior complexidade, acompanhando grupos, preocupando- se com as questões de vigilância de saúde e realizando a relação política em seu entorno. É na década de 1980 que as Unidades vão ganhar destaque no discurso sanitário.

Com a descentralização dos serviços e recursos e a hierarquização da atenção à saúde, as Unidades de Saúde vão se tornar importantes centros regionais de atenção à comunidade, havendo uma reestruturação desse setor e um aumento do investimento, por parte dos municípios, nelas.

Botazzo (1999) assinala, todavia, que a municipalização não necessariamente colocou o usuário mais próximo do serviço e que, fundamentalmente, a rede de Unidades Básicas construídas nas últimas décadas está longe de assegurar atendimento minimamente resolutivo na escala proposta. Como elas não conseguem cumprir suas funções, há um esmagamento dos hospitais e outros serviços da rede. Outra questão apresentada é que as Unidades não precisam necessariamente de maiores investimentos, e sim de serem bem gerenciadas e merecedoras de cursos de treinamento e „sensibilização‟.

No discurso sanitário, vale dizer, no discurso do poder sanitário, a UBS é pensada como lugar da ordem, da disciplina e das atividades programáticas ou do planejamento regulador. A UBS aparece, assim, com toda a positividade com que é constituída: ela é um conjunto de atribuições e competências que deverão ser exercidas sobre grupos populacionais e num certo sentido. É o lugar de uma dada ciência, um dado saber, uma tecnicidade, uma coisa médica e medicalizada (BOTAZZO, 1999, p. 105).

Dentro dessa visão de tecnicidade, encaixa-se o saber da Psicologia, que será convidada a entrar nas Unidades de Saúde na perspectiva de ocupar um certo local de trabalho e resolver demandas específicas (ou inespecíficas, como veremos), não devendo ultrapassar os limites que lhe foi imposto: o modo que os problemas devem ser resolvidos e os próprios muros da Unidade de Saúde, o que nos leva a perguntar como a Psicologia foi convidada a participar dessa discussão.

Foi em 1978 que a American Psychological Association (APA) reconheceu uma nova área dentro da Psicologia, denominada Psicologia da Saúde, acontecendo por volta dessa época uma sistematização oficial da entrada dos psicólogos nesse campo de atuação (MEJIAS, 1984; SPINK, 1992).

Se na década de 80 o psicólogo começou a ser visto como um profissional importante para a saúde, essa visão partiu de pressupostos normativos e moralizantes, considerando a saúde como a ausência de doença e o indivíduo como a-histórico em seus processos de adoecimento, sendo a Psicologia responsável por provocar mudanças no estilo de vida e em comportamentos que forem considerados incompatíveis com o padrão saudável estabelecido como ideal (MEJIAS, 1984).

Como assinala Dimenstein (1998), a inserção na saúde acontece pelo entrecruzamento de diversos fatores. O primeiro deles é o movimento de difusão da psicanálise e a conseqüente psicologização da sociedade brasileira, que aconteceu, principalmente, a partir dos anos 70, quando a população passou a requisitar cada vez mais os serviços desse profissional. Em segundo, a mudança nas políticas públicas de saúde, cujo processo vai culminar na criação do SUS e na incorporação do conceito de saúde proposto pela Organização Mundial de Saúde. Também atuou de forma convergente a insatisfação de vários profissionais que trabalhavam na saúde mental, entre eles os psicólogos, que buscaram por uma alteração do modelo asilar e pela formação de equipes multiprofissionais. Essa busca possibilitou que o psicólogo e outros profissionais fizessem novas propostas e tratamentos que antes eram restritos aos médicos. Além disso, a crise econômica com o fim do “milagre econômico”, ainda no governo militar, afetou a classe média, principal consumidora dos serviços de consultório privado, o que impulsionou aos profissionais buscarem novos mercados de trabalho. Por fim, não se pode deixar de levar em consideração, como determinante para a atuação nesse novo campo de atuação, entre tantos fatores, a busca de práticas mais comprometidas sócio-historicamente e de novas formas de atuação que fossem menos excludentes (DIMENSTEIN, 1998).

Esses fatores permitiram que o psicólogo passasse a ser considerado um profissional parte da rede básica de saúde. A maioria das Unidades de Saúde dos municípios da Serra e de Cariacica possui psicólogos atuando. O crescente número de profissionais inseridos na rede pode ser tomado como um indício de uma demanda cada vez maior. Entretanto, embora haja número crescente de psicólogos atuando na área da saúde pública, nota-se, como assinala Spink (1992), uma ausência de discussões sobre essa área durante a graduação e um predomínio da ênfase nas aplicações clínicas, aprendidas tradicionalmente, para atuar também na saúde. Como foi visto no capítulo 1, poucos sujeitos consideram que a formação acadêmica forneceu elementos importantes para sua atuação na saúde. Além disso, a identificação entre o trabalho clínico e a atuação na saúde pública, ao longo das entrevistas, demonstra que a saúde é identificada algumas vezes como ausência de doença e como algo individual,

podendo os fatores sociais piorar ou melhorar a saúde, mas não sendo eles diretamente responsáveis pelo adoecimento.13