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CAPÍTULO 2 – Verbos

2.2. Morfologia Derivacional: a reduplicação e os tipos verbais

2.2.2. Tipos verbais

2.2.2.1. Verbos Intransitivos

2.2.2.1.1. Formas simples

A cisão na classe de intransitivos é tratada na literatura como intransitividade cindida ou tipologia ativo-estativo (Creissels 2004, Dixon 1994, Klimov 1974, Lazard 1995). Em Mundurukú, tal cisão evidencia-se (i) na marcação clítica de pessoa, (ii) na codificação de flexão relacional, (iii) na semântica presente nos verbos e respectivos argumentos e (iv) no conseqüente alinhamento sintático dos argumentos.

A identificação de dois paradigmas de pessoa parcialmente diferentes com verbos intransitivos é o ponto de partida para identificar dois grandes agrupamentos verbais:12

11 Não há marca formal de caso nos argumentos nucleares. 12 Exemplos podem ser encontrados na seção 2.1.2.

Tabela 2.4 – Processuais vs. estativos: marcadores de pessoa Sujeito de intransitivo processual Sujeito de intransitivo estativo 1 o o 12 a wuy 13 oce oce 2 e e 23 epe ey 3 o' ___

Essa tabela permite observar uma diferença de marcação nas seguintes pessoas: 12 (nós inclusivo), 23 (vocês) e 3 (ele). Enquanto os verbos processuais só têm indexação de marca pessoal clítica no aspecto perfectivo, os estativos sempre, independentemente do aspecto, exigem a presença dos marcadores pessoais. Uma conseqüência dessa diferença é a presença obrigatória de pronomes livres com processuais no aspecto imperfectivo, enquanto com estativos o pronome livre apenas ocorre como forma de realçar13 o participante, uma vez que este é plenamente identificado pelo marcador clítico no verbo.

A marcação clítica dessas duas classes de verbos em confronto com a marcação clítica dos argumentos dos verbos transitivos mostra dois tipos de alinhamento: um entre sujeito de processuais e sujeito de transitivo; e outro entre sujeito de estativos e objeto de transitivos. Esses alinhamentos podem estar revelando características sintáticas e semânticas específicas de cada uma das duas construções intransitivas, como, por exemplo, traços semânticos dos participantes e propriedades sintáticas diferenciadas de cada um dos sujeitos intransitivos envolvidos. Sobre os traços semânticos, vide adiante.

Outra diferença importante entre as duas classes de intransitivos é a presença de flexão relacional, a qual sempre ocorre com verbos estativos e, em dadas

circunstâncias, com verbos processuais.14 A tabela 2.5 a seguir mostra uma das duas

classes morfológicas de verbos intransitivos estativos, as quais são identificadas de acordo com os alomorfes dos prefixos relacionais que toma cada uma delas:

Tabela 2.5 – Estrutura morfossintática de um verbo intransitivo estativo (Vie) da classe II15

direm 'estar molhado' Sintaxe e Morfologia

1 (õn) o= ¢-direm (SN) SV [o= R1-Vie]

2 (ε)n) e= ¢-direm (SN) SV [e= R1-Vie]

3 (ixe) t-direm ⇒ tirem (SN) SV [ R2-Vie]

12 (wuyju) wuy= ¢-direm (SN) SV [wuy= R1-Vie]

13 (oceju) oce= ¢-direm (SN) SV [oce= R1-Vie]

23 (eyju) ey= ¢-direm (SN) SV [ey= R1-Vie]

Essa tabela mostra que os marcadores de sujeito de primeira e de segunda pessoa dos verbos intransitivos estativos ocorrem contiguamente ao seu determinante, que é o verbo, independentemente do aspecto (o mesmo ocorre entre esses mesmos marcadores e o verbo transitivo quando são seu objeto). Por essa razão, o verbo apresenta o morfema relacional de contigüidade ¢- (o mesmo se dá com verbos da classe I, cf. tabela 2.6 a seguir). Já a terceira pessoa apresenta o morfema relacional de não-contigüidade t- (ou /i-/ e seus alomorfes, classe I, cf. também tabela 2.6), visto que, dentro do sintagma verbal, não há marcador clítico de sujeito. Isso significa que a relação de não-contigüidade expressa pelo morfema t- (ou /i-/) ocorre entre sintagmas.

A seguir, um exemplo de verbo intransitivo estativo da classe I:

14 Se o sujeito contiver um nome inalienável, em função classificadora ou não, ocorre incorporação desse nome no verbo, e se dá a flexão relacional (cf. 23a-b). Para outros detalhes, conferir seção 1.2.3, e capítulo 6. 15 Entre parênteses, sintagmas nominais dispensáveis (pronomes livres e item lexical); entre colchetes, a estrutura do sintagma verbal, que é uma sentença plena, embora a 3a pessoa exija que se conheça o participante, dada a ausência de marcador clítico de pessoa.

Tabela 2.6 – Estrutura morfossintática de um verbo intransitivo estativo da classe I

parara 'ter medo' Sintaxe

1 (õn) o= ¢-parara (SN) SV [o= R1-Vie]

2 (ε)n) e= ¢-parara (SN) SV [e= R1-Vie]

3 (ixe) i-parara (SN) SV [ R2-Vie]

12 (wuyju) wuy= ¢-parara (SN) SV [wuy= R1-Vie]

13 (oceju) oce= ¢-parara (SN) SV [oce= R1-Vie]

23 (eyju) ey = ¢-parara (SN) SV [ey= R1-Vie]

Uma comparação entre as tabelas 2.5 e 2.6 permite observar a existência de duas classes de verbos estativos, residindo a diferença entre elas num plano puramente morfológico, determinada pelos prefixos relacionais de não-contigüidade que tomam: a classe I tem i- (e seus alomorfes); a classe II tem t-.16

Voltando à comparação entre intransitivos processuais e intransitivos estativos, são dadas abaixo, para observar os traços semânticos predominantes em cada um deles, amostras dos dois tipos, que já apareceram em exemplos de seções anteriores:

Tabela 2.7 − Processuais vs. Estativos: tipos semânticos

Processuais Estativos aje)m ajok ak ju kop 'at 'e jenapõn jeorok 'chegar' 'tomar banho' 'olhar' 'ir'

'baixar ao porto, viajar' 'cair' 'dizer' 'fugir' 'caçar' (y-)abut (i-)cokcok (i-)dip (i-)parara (i-)pakpak (i-)remrem (i-)ku (t-)daxip (t-)direm 'estarCser velha (f)' 'estarCser alegre' 'estarCser bonito' 'estarCser medroso' 'estarCser vermelho' 'estarCser azul' 'estarCser gostoso' 'estarCser quente' 'estarCser molhado'

Noções como estado, qualidade e ausência de movimento são manifestadas por verbos intransitivos estativos; enquanto noções como processo, evento e dinamicidade o são por verbos intransitivos processuais.

Não tão evidente é a natureza semântica do participante de cada um dos verbos. Podemos, inicialmente, lançar a hipótese de que verbos estativos têm sujeito com traço [-ativo, -controle] enquanto processuais têm sujeito com traço [+ativo, +controle]. Assim, serCestar alegre, velho, quente, molhado apresentariam um sujeito menos ativo, com menos (ou nenhum) controle ou responsabilidade pela situação ou estado. Por outro lado, chegar, ir, tomar banho, viajar, fugir, caçar teriam um sujeito mais ativo, com mais controle sobre uma ação, e participariam de uma situação dinâmica.

Do ponto de vista da morfossintaxe, estativos se comportam de forma similar a processuais, incorporando, por exemplo, o núcleo do sujeito caso este seja possuível. A combinação do nome possuível com o núcleo do predicado verbal se dá à esquerda em ambos os casos:

(23a) puca ¢-'a o'=y-a-'at

caça R1-cabeça 3S=R2-cabeça-cair.PRF 'As cabeças das caças caíram.'

(23b) kape ¢-di kuy ti-daxip

café R1-água já R2.água-ser.quente.PRF 'O café já está quente.'

Como ocorre com processuais, estativos também passam por nominalização para se tornarem argumentos, o que revela seu status mais verbal:

(24a) bio i-tik

anta R2-estar.furada 'A anta está furada.'

(24b) (bio) i-tik-at o’=je-napõn (anta) R2-estar.furada-NMZ1 3S=MED-fugir

'(a anta) a que está furada fugiu.'

(25) Diego kape ¢-di ti-daxip-at ¢-ti o'=ti-kõn Diego café R1-água R2.água-estar.quente-NMZ1 R1-água 3S=R2.água-ingerir

'Diego tomou o café quente.' (lit. Diego tomou o café, o que estava quente.)

Embora o caráter verbal dos estativos se revele em sua morfossintaxe (incorporação, aspecto e nominalização), não podemos deixar de citar alguns traços nominais desses verbos a começar pelo seu significado. Além disso, o paradigma pessoal dos estativos é o mesmo que indica o possuidor dos nomes, com obrigatoriedade na indicação da pessoa. Assim como os nomes inalienavelmente possuíveis, dividem-se os estativos em duas classes morfológicas de acordo com o relacional de não-contigüidade com que se flexionam (classe I com i-; classe II com t-). Porém, isso não é exclusivo de nomes e estativos, uma vez que os verbos transitivos também se distribuem em duas classes de acordo com esse mesmo critério. Por fim, apesar dos exemplos de nominalização expressos em (24) e (25) acima, verbos estativos podem ser usados como nomes sem passar necessariamente por derivação com nominalizador. É o que nos mostra o exemplo (26c) abaixo.

(26a) w=¢-e-daruk i-pakpak 1=R1-ALIEN-arco R2-ser.vermelho

'Meu arco é vermelho.'

(26b) w=¢-e-daruk i-pakpak-at o'=je-pa'u)m 1=R1-ALIEN-arco R2-ser.vermelho-NMZ1 3S=MED-sumir

(26c) w=¢-e-daruk ¢-pakpak o'=je-pa'u)m 1=R1-ALIEN-arco R1-vermelho 3S=MED-sumir

'Meu arco vermelho sumiu.'

Ainda não temos elementos suficientes para determinar as reais diferenças entre (26b) e (26c), mas pensamos que esse fato é mais um dos traços nominais dos estativos, apesar de os termos alocado na classe dos verbos pelos critérios já apresentados.

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