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CAPÍTULO 1: DAS CAVERNAS AO DÍGITO

1.5 FOTOGRAFIA E MOVIMENTO EM UM INSTANTE QUALQUER

Ao ser articulada com o movimento, a fotografia adquire uma conotação totalmente nova. Na concepção de Carlo Rin (apud PHILLIPS, 1989, p.38), a fotografia é uma forma de paralisar o tempo com o poder de “perpetuar, ainda que em uma eternidade relativa, os aspectos mais efêmeros da humanidade”. A fotografia cinematográfica, para Aumont (2004, p.100) passa longe de ser uma arte do instantâneo: “por mais breve e imóvel que seja um plano, ele jamais será a condensação de um momento único, mas sempre a impressão de uma certa duração.” Já nas primeiras experiências com fotografias e movimento, a aura do instante decisivo14, inerente à imagem fotográfica, se

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O instantâneo, a possibilidade de congelar um instante no fluxo contínuo dos acontecimentos só se torna possível de fato com o advento da fotografia. O desenvolvimento dos processos de inscrição da imagem baseados em suportes fotossensíveis cria uma ruptura nos padrões de representação da pintura (ELIAS, 2009, p. 14).

perde, dando lugar à concepção estética e narrativa do instante qualquer15, característica da imagem em movimento realista.

Esse processo de transformação começa com a necessidade de cientistas observarem a passagem de Vênus entre o Sol e a Terra para poderem medir a distância entre esses astros. Pierre Jules-César Janssen (1824-1907) desenvolveu um dispositivo chamado revólver fotográfico, que conseguia fotografar 48 imagens sucessivas durante 72 segundos. Com esse aparato, Janssen conseguiu registrar a passagem do eclipse solar de 1874 no Japão. A experiência bem sucedida levou Janssen a vislumbrar outras aplicações para seu invento.

A propriedade do revólver de poder produzir automaticamente sequências de imagens a curtos intervalos, conforme exigência de um fenômeno em rápida transição permite-nos abordar algumas questões interessantes a respeito do mecanismo fisiológico da marcha, do vôo e de outros movimentos dos animais... Pode-se imaginar, por exemplo, o interesse que terá para a ainda obscura questão do mecanismo do vôo, obtendo- se uma série de fotografias que reproduzam os diferentes aspectos da asa durante essa ação. A principal dificuldade no momento reside na lentidão de nossos materiais sensíveis, considerando-se os tempos de exposição muito breves que tais imagens demandam: mas a ciência certamente superará essas dificuldades (JANSSEN, 1878 p. 339 apud MANONNI, 2003, p. 303).

Porém, quem deu o primeiro passo para o estudo do movimento foi o inglês, radicado nos Estados Unidos, Edward James Muggeridge (1830-1904), mais conhecido como Eadweard Muybridge. Sua primeira experiência bem sucedida foi fotografar o trote de um cavalo em uma pista de corrida. A dúvida era se o cavalo em algum momento do percurso ficava com as quatro patas suspensas no ar, sem tocar o chão. Ele criou então um sistema de obturação de imagens automático, em que fios de seda foram estendidos pela pista de corrida e ligados a uma série de câmeras fotográficas. Na medida em que o cavalo passava, ele tocava o fio, que disparava o obturador. Muybridge obteve 12 posições diferentes (Figura 05) do cavalo e, em algumas delas, verificou-se que, durante o trote, o cavalo ficava alguns instantes com as quatro patas

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O sistema que reproduz o movimento em função do momento qualquer, isto é, em função de instantes equidistantes, escolhidos de maneira a dar impressão de continuidade (DELEUZE ,1983, p. 14 apud ELIAS, 2009, p. 14).

suspensas. Essa experiência foi aperfeiçoada com o tempo, incorporando outros mecanismos de disparo sequencial. Com essa tecnologia Muybridge produziu mais de 100.000 imagens decupando o movimento de animais e de pessoas. Esse trabalho era financiado principalmente pela Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos.

Figura 05 - Muybridge horse jumping Fonte: Wikimedia Commons16

O fisiologista e cronofotógrafo Étienne-Jules Marey (1830-1904) desenvolveu, em 1882, um fuzil cronofotográfico com um obturador giratório que conseguia produzir 12 frames consecutivos por segundo, que eram registrados em uma mesma imagem. Era muito diferente e mais avançado que o sistema de Muybridge e de Janssen, pois, em vez de usar várias câmeras com enquadramentos variados, registrava as imagens de um mesmo ponto de vista e com uma só câmera. Marey direcionou seu trabalho cronofotográfico principalmente para o estudo do mundo animal (Figura 06). Em sua publicação de 1872, La Machine Animale, ele descreve:

Se soubéssemos em que condições pode ser obtido o máximo de velocidade, força ou trabalho de um ser vivo, isso poria fim a muita discussão e a tantas conjecturas deploráveis. Não

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Disponível em: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Muybridge_horse_jumping.jpg. Acesso em 11 de janeiro de 2013

condenaríamos toda uma geração de homens a certos exercícios militares... Saberíamos exatamente a que passo um animal realiza o melhor serviço, seja exigindo-lhe velocidade ou arrastando fardos. (MAREY, 1872, apud MANONNI, 2003, p. 322)

Figura 06 - Vôo do pelicano, capturado por Marey em torno de 1882 Fonte: Wikimedia Commons17

Com a chegada ao mercado dos primeiros filmes de celuloide, Marey desenvolve uma câmera fotocronográfica para registrar o movimento em fotogramas separados. No pedido de patente de 1890, faz uma descrição bem aproximada do que viriam a ser as futuras câmeras cinematográficas: “Esse aparelho é para receber imagens sucessivas numa tira de película emulsionada. Essa película é colocada em bobinas fechadas; ela corre rapidamente diante do ponto focal da lente e para durante o tempo da exposição” (MAREY, 1890, p.01apud MANONNI, 2003, p. 340). Pela falta de perfurações nos negativos e grifas nos tambores para tracionar o película, os filmes de Marey tinham um pequeno problema de deslocamento de imagem durante a exposição.

Os experimentos de Eastman eram direcionados ao uso de um suporte mais leve e flexível do que vidro. Sua primeira tentativa foi usar papel e revesti- lo com emulsão fotográfica e depois carregar o papel em um suporte de rolo. Contudo, o papel não era totalmente satisfatório ao se trabalhar com emulsões, pois seus grãos eram reproduzidos na fotografia, a solução de Eastman foi revestir o papel com uma camada de gelatina solúvel e por cima desta uma

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Disponível em: <http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Marey_-_birds.jpg?uselang=pt-br>. Acesso em 10 de maio de 2013

camada de gelatina não solúvel sensível à luz. Após a exposição e revelação, a gelatina que trazia a imagem era removida do papel, transferida para uma folha de gelatina transparente e recoberta com colódio, uma solução de celulose que forma uma película firme e flexível18.

Marey produziu vários pequenos filmes que se encontram conservados em diversos arquivos na Europa e Estados Unidos. Para Manonni (2003, p.342) as tiras de filme de Marey “são os incunábulos do cinema, testemunhos preciosos gênio desse grande pesquisador e, por fim, notáveis obras de arte do ponto de vista fotográfico. É absolutamente necessário preservá-los para a história das ciências e das artes”. Em 25 de abril de 1891, em uma publicação da revista Paris Photographe, Marey descreve as possibilidades de seu novo invento:

Com este método pode-se operar diante de todo tipo de fundo, iluminado ou escuro; isso possibilita o estudo de movimentos que nos interessa conhecer no local onde eles ocorrem. Dessa forma, iremos captar nas fábricas os movimentos de praticantes de diferentes ofícios, os de corredores e ginastas em seus campos de treinamento, os de animais de todo tipo em reservas e jardins zoológicos. (MAREY, 1891, p .32apud MANONNI, 2003, p. 340).

Essa descrição de Marey é o prenúncio de que em pouco tempo o movimento perfeito de todas as imagens do mundo poderiam ser aprisionadas pelo homem.

É inegável que as tecnologias de comunicação desenvolvidas durante o século XIX facilitaram a circulação de informações por todos os continentes. Com isso, as especificidades tecnológicas dos aparelhos óticos eram compartilhadas entre inventores e cientistas. Isso provocou, na última década do final do século XIX, uma disputa entre americanos e europeus, para ver quem seria o primeiro a criar uma máquina que capturasse e projetasse a imagem em movimento perfeita, transposta fielmente da realidade que se apresentava à sua frente. Na verdade, não importa quem venceu a disputa, até porque, qualquer tentativa de desatar o emaranhado de eventos que ocorreram em relação ao nascimento do cinema é prejudicada por reivindicações

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Disponível em:

<http://www.kodak.pt/ek/PT/pt/Our_Company/History_of_Kodak/George_Eastman.htm>.Acesso em 15 de abril de 2012.

conflitantes dos personagens e instituições emvolvidos nesse imbróglio. O que devemos ressaltar é que os dispositivos tecnológicos e as narrativas desenvolvidas para esses dispositivos, criadas por esses pioneiros, foram o alicerce para um cinema que já nasce com uma vocação plural de servir tanto para contar histórias quanto para documentar a história. Porém, esse cinema também já nasce carregando o estigma de uma arte de exclusão. A exploração comercial fez com que logo no início do século XX, principalmente na Europa e nos Estados Unidos, fossem criados grupos empresarias que estabeleceram regras rígidas para a produção, distribuição e exibição audiovisual. O observador adquire uma função bem específica nessa engrenagem, a de ser um espectador passivo, que paga para ver.

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