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III- PODER E DISCIPLINA NAS INSTITUIÇÕES EDUCATIVAS

1. Foucault e a microfísica do poder

“O Centro de Reabilitação de Menores Infratores de s-HertogenBosch, localizado na Holanda, [...] tem doze salas individuais limpíssimas, com sistema de vaso sanitário de metal, para as necessidades fisiológicas noturnas. O banho é em local de uso comum e tudo é monitorado por vídeo e por sistema de controle de atividades, que dão ares de estarem sempre ocupados com alguma coisa útil. Contou-me a diretora que o sistema tem reabilitado, não dá chances a fugas e rebeliões e desestimula a volta ao delito do menor infrator. Detalhe curioso do jeitinho holandês é que as fugas por túneis são evitadas de pronto quando constroem estes centros em solo extremamente úmido e a água aflora a partir de escavações de meio metro.” (“A propósito do Naia”. Jornal O Liberal, Americana, SP, 15/06/04, caderno “Opinião”. Trata-se de parte do artigo publicado por um capitão da Polícia Militar que visitou o Centro de Reabilitação na Holanda)

A descrição arquitetônica deste centro de recuperação de jovens do século XXI nos reporta ao “Panopticon” de Bentham, do século XVIII, utilizado por Foucault nos seus estudos sobre a sociedade disciplinar. É possível fazer uma analogia entre os dois. No “Panopticon” existe uma torre central que é fechada e os encarcerados nunca sabem se o vigia está ou não ocupando seu lugar; nesse centro de reabilitação moderno, os jovens infratores são monitorados por vídeo, o que os mantém “vigiados” o tempo todo. As celas individuais do “Panopticon” continuam a existir na sua versão moderna, mas observam-se áreas comuns como a citada no artigo e destinada ao banho dos jovens ali internados. Quanto ao efeito que deveria causar o “Panopticon”, para Foucault (1987, p.166) era de “[...] induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder”, que também se pode concluir seja o objetivo do centro de recuperação utilizando as câmeras de vídeo. As fugas não são citadas no projeto arquitetônico de Bentham, mas parecem ser impossíveis de acontecer nos projetos arquitetônicos da Holanda.

O panóptico representa o modelo por excelência – utilizado nas prisões, fábricas, escolas, hospitais – de uma nova tecnologia de poder que se impõe ao longo do século XIX, e que exerce um controle minucioso sobre o corpo e a vida da pessoa. “Já o olhar vai exigir muito pouca despesa. Sem necessitar de armas, violências físicas, coações materiais. Apenas um olhar. Um olhar que vigia e que cada um, sentindo-o pesar sobre si, acabará por interiorizar, a ponto de observar a si mesmo [...].” (FOUCAULT, 1979, p.218)

Segundo Foucault, não se descrevem os efeitos do poder em termos negativos, pois ele não exclui, não reprime, não recalca, nem censura ou esconde. O poder constrói. O poder se dá nas relações, ele gera saberes e produz efeitos positivos.

Na sociedade disciplinar, houve o adestramento do corpo, estruturando-se uma nova tecnologia de aproveitamento e utilização da força do corpo. Esta tecnologia organizada em torno da disciplina, e nos imperativos econômicos e políticos, passou a ser utilizada maciçamente nas fábricas, escolas, hospitais, hospícios, prisões, etc., instituições fundamentais ao funcionamento da sociedade industrial capitalista. “A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’.” (FOUCAULT, 1987, p.119)

Com base nos estudos da obra de Foucault, Guimarães (2003 a, p.1) afirma que a partir do século XVII ocorre:

[...] uma ruptura na forma de se ver as coisas, na forma de se entender as relações de poder. Mendigos, libertinos, loucos, estudantes, que antes conviviam em meio ao povo, passam a ser confinados. Saberes são extraídos dessas pessoas e passam a fazer parte de um corpo de conhecimentos (psiquiatria/criminologia/medicina/pedagogia). Nascem os especialistas (psiquiatra/médico/pedagogo). O louco vira doente mental. O estudante se transforma em escolar.

A sociedade disciplinar perdurou até o século XX, quando ocorreu a necessidade do controle das massas. Maia lembra que à “articulação da existência de um novo objeto à atuação do poder – a população, com suas regularidades: taxa de natalidade, mortalidade, longevidade, etc. – estrutura-se toda uma nova tecnologia do poder. Esclareça-se, contudo, que esta nova tecnologia não implica o abandono da idéia e utilização do poder-disciplinar; pelo contrário, as duas – poder-disciplinar e biopoder – se integram para um controle/gestão mais efetivo dos corpos”. (1995, p.98) Na passagem do controle dos indivíduos para o das populações, surgiu a sociedade dos dispositivos de segurança, onde os indivíduos não precisariam mais ser confinados. Controla-se por persuasão, levando a pessoa a crer que esta ou aquela forma de agir é a melhor, com base em uma motivação externa.

A descrição do centro de reabilitação holandês leva a concluir que, apesar de a arquitetura disciplinar panóptica continuar a existir inclusive nas instituições escolares, presidiárias, hospitalares, conjuntos residenciais e até nos estabelecimentos comerciais, o olhar, que antes vinha de uma torre, está atualmente em todo lugar, na forma de “sorria, você está sendo filmado”. Os jovens infratores conhecem bem essa realidade. Todas as pessoas com quem convivem tornam-se seus vigias em potencial. Apesar de estarmos todos sujeitos à vigilância na sociedade

atual, para eles ela assume características persecutórias e acaba fazendo até com que desistam dos estudos.

A preocupação com o fato de estarem “sempre ocupados com alguma coisa útil” é característica de um sistema que propõe a idéia de que vivemos individualidades múltiplas: professor/aluno, empregado/patrão, com motivação muito mais externa do que interna. “Quanto maior a possibilidade de individualizar mais fácil se torna o controle, porém, acreditamos estar vivendo com originalidade, quando fomos persuadidos a acreditar numa verdade que está fora de nós.” (PEY apud GUIMARÃES, 2003 a, p.2)

Nas escolas:

A disciplinarização não está mais restrita ao corpo; ela se estende à ‘disciplinarização do conhecimento’. Existe um saber que não é dado ao escolar, daí a afirmação de Foucault de que o ‘conhecimento escolar é constitutivo de desconhecimentos e não de conhecimentos’. Retira-se do conhecimento escolar as questões referentes às relações de poder, como sendo inerentes a toda e qualquer relação, e também, a noção de acontecimento, enquanto rupturas. Portanto, o escolar ao desconhecer as regras de produção de verdade, adquire um conhecimento evolutivo, organizado por continuidade. Adquire o hábito da rotina, da repetição, de uma memorização que tem por função apagar a memória do ‘eu’, enquanto criador de espaços de liberdade. (Ibid:2)

Desta forma, não existe um poder único e centralizador, mas sim poderes periféricos, moleculares, que não são criados só pelo Estado, mas que se disseminam por toda a estrutura social da instituição, e desta forma atingem os corpos dos indivíduos, nos seus gestos, atitudes, discursos, sua aprendizagem e vida cotidiana.

É possível pensar em criar espaços de liberdade, transgredir e desobedecer, evitando assim ser governado. Guimarães (2003a, p.3) diz que isso é possível produzindo acontecimentos que abalem a estrutura da instituição, formando assim focos de resistência, ações diretas, individuais ou coletivas, sabotando o controle das instituições. Não se submetendo às relações de poder, e agindo não para reforçar as relações de dominação, mas para uma relação de resistência para com o poder.

É o que ocorre com os jovens infratores. Insubmissos a esse sistema vigente, eles têm rompido com as regras das instituições e da sociedade como um todo, e causam preocupação aos educadores: porque eles acabam levando os demais, como nos disse uma diretora.