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I- JUVENTUDE TRANSGRESSORA

3. O Estatuto da Criança e do Adolescente

A legislação que diz respeito aos assuntos da infância e juventude brasileiras tomou outros rumos após a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Quem acompanhou os movimentos em torno de sua construção constatou tratar-se de um acontecimento histórico dentro do regime democrático instalado no país. Foram anos de encontros, fóruns, seminários, em níveis pequenos, grupos “caseiros” até grandes encontros reunindo pessoas de várias regiões do país, cuja luta e trabalho sério resultou na referida lei.

Um dos avanços mais significativos do ECA foi a mudança de paradigma calcado na substituição da Doutrina da Situação Irregular para a Doutrina de Proteção Integral dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes. Neste sentido, criança e adolescente passaram de objetos de intervenção para sujeitos de direitos, levando-se em conta a sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.

O artigo 4º do Estatuto parece ser o mais completo para definir o que vem a ser o sistema de garantias de diretos previstos pelo ECA: “É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.” Isto já constava do texto da Constituição Federal de 1988, no seu artigo 227, afirmando a responsabilidade da família, da sociedade e do Estado na garantia desses direitos, com absoluta prioridade, com força de lei.

Depois de aprovado o ECA, vieram os questionamentos quanto à sua forma de implantação, os estudos em todas as disciplinas das áreas de humanas e principalmente os comentários da área jurídica ao Estatuto da Criança e do Adolescente buscando a sua compreensão. Este trabalho continua até hoje, pois, ainda que seja uma lei considerada “modelo” internacionalmente, a sua implantação deve se dar no Brasil, um país cujas condições sócio- econômicas da população e principalmente da maioria da infância e juventude encontram-se em estado de pauperização, com os problemas sociais emergindo em todos os sentidos.

O que deveria ter ocorrido após a aprovação do ECA era um reordenamento de ações e políticas, de forma a viabilizar a sua execução, e por tratar-se de lei, a presunção de seu cumprimento segundo o texto oficial, que apresenta detalhes de como devem ser os serviços que visam a atender a infância e juventude no Brasil. Porém, passados quinze anos de sua implantação, as coisas vêm caminhando de forma um tanto lenta para um país que precisa de mudanças pontuais, principalmente no que diz respeito à proteção e à garantia dos direitos de crianças e jovens.

Tomando como exemplo a situação de privação de liberdade dos jovens autores de atos infracionais, o ECA prevê que em um primeiro momento eles permaneçam sob a custódia provisória do Estado14. Porém, pelo “Demonstrativo de Unidades Operacionais da Febem-SP” de 20/07/04, vamos encontrar somente doze unidades destinadas para este fim no interior e litoral, e cinco na Capital e Grande São Paulo. Descumprindo-se o que a lei recomenda, eles têm permanecido em celas nas delegacias e prisões de adultos, sujeitos a todo tipo de violações como veremos mais adiante.

Outra medida prevista pelo ECA a jovens infratores se chama semiliberdade, e poderia ser uma alternativa viável para casos de gravidade, além da internação que é a última medida em razão de ser privação de liberdade. Mas ela não tem sido aplicada por falta de locais onde possa ser cumprida. Pelo demonstrativo da Febem já citado anteriormente, pode-se constatar a existência de unidades de semiliberdade, apenas na capital e em duas cidades do interior.

Cumpre ressaltar que alguns dos avanços e conquistas após o Estatuto são: a criação dos Conselhos Tutelares, dos Conselhos Municipais dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes - CMDCAs, das Conferências dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes (realizadas a cada dois

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Trata-se do artigo 108 do ECA, que prevê a detenção provisória do jovem autor de ato infracional considerado grave por período não superior a quarenta e cinco dias, enquanto aguarda a decisão judicial.

anos a nível municipal, regional, estadual e federal), e todo um aparato que fiscaliza o funcionamento das instituições sociais e das políticas públicas para esta camada da população. Mas isto não tem sido suficiente para o enfrentamento da situação caótica em que se encontra o atendimento de outros graves problemas, tais como a falta de vagas em creches, a falta de abrigos provisórios para crianças e jovens, a escassez de programas de atendimento a gestantes, a falta de programas de atendimento especializado nas áreas de saúde física e mental, a insuficiência no encaminhamento de jovens para o primeiro emprego, além de raros projetos de capacitação profissional, para citar alguns.

A imagem do que significou o ECA para o senso comum é um dos fatores que demonstram o desconhecimento do que este poderia fazer, mas não tem sido capaz, para a infância e juventude. Na fala das pessoas tem sido comum ouvirmos comentários do tipo: o ECA

“passa” a mão na cabeça das crianças; depois do ECA não se pode mais nem educar os filhos da nossa maneira, ou ainda: depois do ECA ficou difícil, pois, se um pai bate num filho e este reclamar para o Conselho Tutelar, vamos presos. Uma das diretoras entrevistadas quando

questionada sobre a punição prevista para os jovens infratores pela referida lei disse: [...] eu acho

que é muito brando, eu acho que teria que agir de uma forma diferente. O ECA tem coisas boas, mas tem coisas que passa a mão na cabeça realmente.

Estas afirmações deixam claro que:

A proteção integral, equivocada ou intencionalmente, é interpretada como impunidade. Uma parcela da sociedade, da qual fazem parte trabalhadores sociais – ainda que paradoxal, incluem-se profissionais com formação na área de humanas – formadores de opinião e aplicadores do Direito, produz constantes ameaças de retrocesso da legislação e um grande mal estar entre os que trabalham para que o Estatuto não se transforme numa carta de boas intenções: letra morta como outras tantas leis, bem intencionadas, mas de difícil aplicabilidade no cotidiano, sobretudo das famílias empobrecidas. (SOARES,2000, p.7)

A situação é mais grave ainda quando se trata de jovens infratores, pois, para o senso comum as medidas a serem adotadas com relação a eles e definidas no ECA não punem, mas sim contribuem para piorar a situação de violência. Isso pode ser ilustrado com a discussão que ocorre hoje em todo país sobre o rebaixamento da maioridade penal de dezoito para dezesseis anos.

As estatísticas têm mostrado que a grande maioria do povo brasileiro é a favor da redução da maioridade penal, hoje determinada em dezoito anos15. No dia primeiro de janeiro de 2004, o jornal “Folha de São Paulo”16 iniciava o ano com uma matéria intitulada “Oitenta e quatro por cento apóiam a redução da maioridade penal”, mostrando ser este o resultado de uma pesquisa feita pelo Datafolha, em trezentos e noventa e seis municípios, abrangendo todos os estados brasileiros. Na cidade de Americana, onde foi desenvolvida pesquisa semelhante, noventa e seis por cento dizem ser a favor da diminuição da idade penal. (PIERALINI, Ricardo. 90% defendem a diminuição da maioridade penal. Jornal “O Liberal”, Americana, SP, 30/11/03, caderno “Cidades”, p. 4)

Quando perguntei ao Carlos se ele achava que com dezesseis anos um jovem tem condições para responder sobre seus atos, ele respondeu: tem que estar, eu respondo pelos meus. Mas questionado sobre ser punido como adulto, o tom mudou: ainda sou de menor.

Os educadores pesquisados manifestam opiniões diversas: eu acho que a partir do

momento que ele faz uma coisa errada, ele está ciente do que está fazendo, ele deve responder por isso; ou: não tem que diminuir, eu acho que um jovem que comete uma infração muito grave, ele tem que ter uma chance de repará-la; ou ainda: isso aí é uma faca de dois gumes, há casos de

adolescentes que sabem muito mais do que eu e você juntas.

Parece que esta discussão é muito mais ampla e complexa do que apenas definir a idade penal. Mas ela demonstra um dos motivos pelos quais o ECA não tem sido realmente efetivado, a partir do desconhecimento pela maioria da população do que prevê esta lei, no que diz respeito a punição de jovens infratores.

O ato infracional cometido por jovens e registrado em Boletim de Ocorrência traz sérias conseqüências para eles e seus responsáveis, que deverão responder pelos seus atos comparecendo para as audiências, participando do desenrolar do processo, o que tem sido, no discurso destes, muito desgastante e até humilhante, na medida em que devem se apresentar às autoridades, submetendo-se ao que ocorre hoje nos sistemas burocráticos jurídicos.

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A partir do Código Penal de 1940, a inimputabilidade penal se dá até os dezoito anos.

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