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I- JUVENTUDE TRANSGRESSORA

4. O judiciário acolhe ou exclui?

Riobaldo: “Quem sabe direito o que a pessoa é? Antes sendo: julgamento é sempre defeituoso, porque o que a gente julga é o passado. [...] Mas, para o escriturado da vida, o julgar não se dispensa; carece? [...] Lei é lei? Lôas! Quem julga, já morreu. Viver é muito perigoso, mesmo.”

(GSV, p.205)

Hoje o percurso do jovem que comete ato infracional e de seus familiares após a lavratura do Boletim de Ocorrência pode ser descrito da seguinte forma: receber intimação domiciliar através do oficial de justiça, deslocar-se até o Fórum em dias e horários marcados, para assinar os termos jurídicos ou para “falar” com o promotor ou juiz, não importando que para isso tanto os responsáveis quanto os jovens percam dias de serviço. Também têm que comunicar escolas sobre ausências, e dar explicações para patrões e até parentes e vizinhança, que na rede de solidariedade não deixam de se mostrar solícitos, mas que “por trás” acabam fazendo comentários maldosos e mal intencionados sobre a “desgraça” que se acercou da vida dos envolvidos com atos infracionais.

Quando chega a data da apresentação aos magistrados, em um procedimento que se denomina “oitiva”, o tempo é pouco para cada caso ser ouvido, pois o judiciário tem sua agenda “abarrotada” de processos, e é preciso cumpri-la para não atrasar ainda mais. Como será a fala dos jovens perante a autoridade judiciária?

Zoppei (2004) ao analisar os múltiplos espaços percorridos pelos jovens infratores nos corredores de um dos Fóruns da cidade de São Paulo, destaca a forma como se colocam perante as autoridades, a partir da figura do “menor infrator”, e que demarca bem o que eles são perante a sociedade. Afirma ele: “Não há o encontro com o outro, faz-se uma operação de negação do outro, de negação da fala do outro, de violar o corpo do outro.” (ibid, p.90)

Em sua obra “A Ordem do Discurso”, Foucault (1996, p.8-9) afirma que “[...] em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade”. São, segundo ele, procedimentos externos de exclusão: interdição, razão e loucura, o verdadeiro e o falso17.

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Segundo Foucault, a interdição é não ter o direito de dizer tudo e não poder falar qualquer coisa em qualquer lugar sendo qualquer um. “Tabu do objeto, ritual da circunstância, direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala: temos aí o jogo de três tipos de interdições que se cruzam, se reforçam ou se compensam, formando uma grade complexa que não cessa de se modificar.” (ibid, p.9) Este autor argumenta também que as interdições têm uma ligação com o desejo e o poder, pois o discurso, além de ser objeto do desejo, é também aquilo que manifesta ou oculta o desejo, “[...] o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”. (ibid, p.10)

Nas sociedades modernas de quem é o direito de falar? Aquele discurso aceito como legítimo, conferido a quem de direito. A palavra tem seus rituais para ser dita, principalmente no sistema judiciário, onde permeiam os rituais, as formas de aguardar a sua vez para falar, o de não falar se não for solicitado que o faça.

Certa vez, como assistente social, entrei na sala de um juiz e fiquei a imaginar como se sentiria um jovem naquele lugar. O magistrado permanecia sentado à mesa que se encontrava acomodada sobre um tablado que o colocava numa altura para a qual se precisava erguer a cabeça para falar-lhe. Qualquer um que entrasse naquele lugar sentir-se-ia numa posição de inferioridade perante ele, mesmo sem dever nada a justiça. E o jovem infrator, como se sentiria naquele lugar? Seu discurso seria afetado pela posição que se encontrava, ou o constrangimento o levaria a aceitar o que lhe estava sendo atribuído, sem muita discussão?

Quando falasse, mediria suas palavras. Bem o diz a tradicional frase: “você tem o direito de permanecer calado, tudo o que disser será usado contra você nos tribunais”. Essas palavras são um exemplo de coerção, da ambigüidade que afirma: fale, mas o que falar será contra você mesmo. Não será melhor permanecer calado? O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê o direito de o jovem infrator contar com um advogado de defesa (arts.206 e 207), o que tem ocorrido. Porém, na fala dos jovens infratores, eles somente têm contato com seu defensor no dia da audiência que às vezes tem a duração de minutos, dando oportunidade apenas para o advogado apresentar sua defesa.

Um outro procedimento de exclusão apontado por Foucault faz referência à oposição razão e loucura. A não aceitação do discurso do louco advém do fato de sua palavra ser considerada nula, não podendo ser acolhida, pois não é considerada como sendo importante.

(ibid, p.11) Pode-se comparar a palavra do louco com a dos jovens, principalmente à daqueles que cometeram atos infracionais e que, mesmo tendo a oportunidade de serem ouvidos, levantarão suspeita quanto ao que dizem. E, caso sua palavra contradiga a de outros, certamente elas terão menos validade no jogo do poder.

Existe hoje todo um aparato destinado a ouvir a palavra dos jovens em mecanismos montados num sistema de garantias de direitos: proceder à oitiva do jovem acusado, fazer constar dos autos a manifestação do infrator que poderá, segundo seus critérios, relatar como se procedeu o ato infracional. Mas será esta uma palavra reconhecida como legítima? Será ela levada em conta pela autoridade judiciária na hora de determinar a sentença? O jovem Thomaz reclamava das injustiças que acreditava ter sofrido no julgamento do seu ato infracional na entrevista com a orientadora em liberdade assistida, mas quando indagado se havia falado sobre elas para o juiz, ele respondia que não: o juiz tem a “cara” muito brava, eu poderia até piorar a minha situação.

No jogo de poderes a figura da autoridade impõe respeito, seja ela do policial, do funcionário de escola, do técnico, do respeitável cidadão que foi vítima do menor. Que valor tem a palavra de um infrator perante os que o acusam?

No caso da vontade de verdade:

[...] como os outros sistemas de exclusão, apóia-se sobre um suporte institucional: é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida por todo um compacto conjunto de práticas como a pedagogia, é claro, como o sistema dos livros, da edição, das bibliotecas, como as sociedades de sábios outrora, os laboratórios hoje. Mas ela é também reconduzida, mais profundamente sem dúvida, pelo modo como o saber é aplicado em uma sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e de certo modo atribuído. (ibid, p.17)

O sistema judiciário já tem suas verdades definidas, apóia-se em um sistema de leis, as infrações são classificadas e codificadas, não havendo exceção nem para aqueles que são vistos como protegidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

Buscamos a verdade para fazer justiça, mas as relações de poder nos levam a fazer representações, que nada mais são do que “encenações” sobre a ordem das coisas. Este é o “theatrum mundi” em que vivemos, e no qual cada um vai representando o seu papel. Nem nós os técnicos escapamos a esta representação, na nossa presunção de superioridade perante aqueles que devem respeitar-nos e prestar contas pela sua posição de inferioridade no jogo do poder.

O jovem infrator tem ciência do que ocorre à sua volta, desde a sua apresentação à autoridade policial onde será lavrado o boletim de ocorrência, com as informações fornecidas pelos policiais e assinada obrigatoriamente por ele. No desenrolar das audiências, já está definida a representação que deve ocorrer para uma decisão que já é esperada. A lei é clara: todo contraventor deverá ser punido, para se manter a ordem e harmonia na sociedade.