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O poeta Francis Ponge (1899-1988), ainda que não sem angústia, não faz qualquer distinção entre prosa e poesia, o que aliás, entre outras coisas, o leva

a chamar o poema de “proema” ou “proêmio” (“proême”). Assim, quando eu comento longamente, no capítulo três, um dos mais extensos e torturantes textos de Ponge, o texto intitulado “Tentativa Oral” (inteiramente traduzido por mim noutra parte: “Francis Ponge, Métodos”, Imago, 1997), acho que estou fazendo bem aquilo que o resenhista diz que eu não faço, a saber: análise do... poema. (MOTTA, 2000b, aspas do autor, negrito nosso).

Ora, ao chamar de poema o longo texto de Francis Ponge, intitulado “Tentativa oral”, transcrição de uma célebre conferência feita em Bruxelas, em 1947, a autora nada mais faz que designar a potência lírico-crítica do texto. Pois nesse caso, “[d]iscurso sobre a obra e discurso da obra [estão] confundidos, na melhor tradição moderna, tudo nessa reunião já é, de saída, poético [...]” (MOTTA, 2000a, p.11-12). A própria recusa do termo poeta, aliás, é muito sintomática da vontade de dissolução (ou jogo) de um estatuto terminantemente poético num ambiente de pura linguagem, fundamentado no uso daquilo que Ponge chama de “magma poético”.

Veja-se que, como já afirmamos, a obtenção de uma poética que bebe tanto nas fontes da poesia quanto da crítica deve muito à utilização da prosa poética, marcadamente proteiforme, na constituição de uma variedade de gêneros muitas vezes amalgamados no tecido da obra. Se Murilo experimenta as várias formas e gêneros, procurando dentre tantas aquela “outra coisa”, que, segundo Julio Castañon Guimarães (1993, p.266, grifo do autor),

[...] é a especificidade do poema em prosa, reafirmada numa passagem coincidentemente assinalada por Murilo Mendes no exemplar [de Le poème en

prose de Baudelaire jusqu’à nos jours de Suzane Bernard] que lhe pertenceu:

“Há aí uma verdadeira demonstração desta lei da gratuidade que quer que o poema em prosa não tenda a nada mais que ele próprio, e se vaze em prosa desde que se proponha a narrar ou a demonstrar.”

Ponge é mais contido, partindo sempre da utilização da prosa poética até o ponto em que coloca em xeque a forma e a constituição dos textos ao transformar rascunhos, provas e erros, como partes integrantes daquilo que será levado aos olhos do leitor. “Indo ainda mais longe, ele

incorpora ao texto as oscilações de sua produção, ou seja, um conjunto de diferentes versões pode constituir um único texto.” (GUIMARÃES, 1993, p.274). Esse é somente um aspecto da questão: o que toma a forma e o gênero (ou subgênero) como um índice de liberdade, de criação, que parte do poético e chega ao crítico num movimento sempre contínuo ainda pós-publicação. As obras às quais decidimos lançar um olhar mais acurado são modelares dessa multiplicidade de modos poéticos e críticos pelos quais os poetas lidavam com o texto.

O teor de inacabamento, de reflexão, de multiplicidade de gêneros, de movimentação (no sentido oposto ao do texto que é estático), a formação de uma obra enquanto grande tecido que circula ao redor de temas determinados que demandam uns aos outros, são estes os fatores que podemos observar com clareza nas obras que elegemos como campo de trabalho neste estudo. São eles, ainda, que nos permitem aproximar (e distanciar) Murilo Mendes e Francis Ponge no sentido da poética crítica e de uma crítica poética desenhadas em suas obras. Por isso mesmo, as edições sobre as quais nos debruçaremos serão as mais diversas: das obras completas publicadas postumamente às edições em vida; dos poemas encerrados nas publicações a variações diversas. Além disso, a abordagem desta ou daquela obra não segue uma ordem cronológica justamente porque se leva em consideração a sua importância enquanto ato dentro de um todo indefinido, o da obra. Portanto, em primeiro lugar, pode-se afirmar que poesia e crítica em ambos os poetas devem ser entendidas como atos pendulares e por vezes indistintos, sempre em tensão e de certa forma inacabados e que, por essas razões, configuram-se enquanto conjunto de teor eminentemente contínuo e criador. Sua força, ou melhor, a força da tensão entre o poeta e o crítico, aparece na ligação, na leitura de caráter simultâneo desses atos, a um só tempo líricos e críticos. Não somente da leitura de um macrotexto, mas da leitura individual de cada poema, enquanto ato derivado de uma ação.

Ora, o próprio Murilo “[e]ncara a poesia como fenômeno diário, constante, permanente, eterno e universal. Considera seus poemas como ‘estudos’ que outros poderão desenvolver.”17 Mas, aqui, o que se tem é tanto mais o movimento de extroversão do que o voltar-se sobre si mesmo. Segundo Murilo Marcondes de Moura (1995, p.60, grifo do autor), já Mário de Andrade pontuara, em “A poesia em 1930”, essa característica nas obras do mineiro:

“Em Murilo Mendes, como em Cícero Dias, desaparece fortemente a noção da obra-prima, da obra completa em si e inesquecível como objeto. Não são apenas todos os planos que se confundem nas obras deles, mas estas próprias obras, que se tornam enormemente parecidas umas com as outras, ou pelo menos indeferenciáveis na memória da gente”, e, embora não concordasse com ela, ponderava, em outro texto sobre Murilo Mendes, que muito do vigor de sua poesia provinha precisamente desse “defeito”: “Em verdade todo este cisco concorda com a higiene sentimental do livro e concorre para lhe dar o seu caráter”.

Daí se depreende a noção de um grande tecido, continuidade que se estabelece especialmente nas obras finais do brasileiro por meio de um intenso diálogo com o que vem de fora – literatura, personalidades, artes plásticas, cultura. Somando-se a tais perspectivas, temos os livros especificamente de poemas que, sob esse prisma, podem ser lidos também em conjunto com as obras finais. Estes “estudos”, portanto, “[...] dão a impressão do ‘inacabado’ e tendem a se explicar uns pelos outros. Vinculadas a isso estão algumas características de sua criação: a produção por séries, o improviso e o escrever muito. Tudo isso provoca uma impressão fortíssima de homogeneidade da obra, como se esta se construísse em torno de um assunto único.” (MOURA, 1995, p.60, grifo do autor). Também Fábio Lucas (2001, p.51) aponta essa direção na literatura muriliana, dizendo que ali reina a “[...] absorção de uma multiplicidade de textos na mensagem poética, instaurando-se um movimento de polivalência generalizada. Os blocos temáticos se articulam sem se ligarem, de tal sorte que cada signo dialoga com todos os outros. Daí a unidade do texto muriliano, dentro da fragmentação e da diversidade.” Muito importante é o movimento de inacabamento e a noção de homogeneidade, inclusive ao redor de um único assunto. Porque, de fato, esse movimento da obra muriliana permite depreender uma série de atos poéticos que se aproximam de uma prática literária lírica, crítica e criativa. Daí porque, ao se voltar à literatura, por exemplo em poemas como “Murilograma a Baudelaire”, ou nos aforismos de O discípulo de Emaús (que dialogam de modo intenso com Ismael Nery), ou nos vários poemas dedicados a “Dino Campana”, vemos que ali se instaura na obra de Murilo Mendes não é somente pura homenagem. Há diálogo, juízo, construção, criação, claramente explícitos. A forma é atuante, os discursos se sobrepõem: do poeta, do crítico, do criticado, do homenageado, do lido. É este caráter de prática literária e pendularidade de gêneros, entre o poeta e o crítico da poesia, que permite aproximar de maneira sui generis Murilo Mendes e Francis Ponge – como bem acenou Júlio Castañon Guimarães (1993).

Num estudo intitulado Francis Ponge: actes ou textes, Jean-Marie Gleize e Bernard Veck (1984, p.19, grifo do autor) afirmam que

[...] Ponge récusait, quant à lui, la distinction trop marquée entre ce qu’il appelle ses « moments critiques » (les proêmes) et « ses moments lyriques » (les poèmes). Pratique, donc, comme notion désignant un texte, et non simplement un poème ; c’est-à-dire un travail, un acte, ou plutôt, car le pluriel est ici important, une série d’actes qui sont à la fois, simultanément ou indissolublement liés les uns aux autres, critiques et lyriques, proématiques et poétiques, et ceci ouvertment, pédagogiquement pourrait-on dire, en évitant si posible le recours aux facilités magiques. En pleine lumière. En montrant plutôt qu’en hypnotisant [...]18

Vejamos que o Pour un Malherbe se debruça sobre a obra e a herança do mestre francês de modo que o empenho do juízo crítico ali estabelecido recaia sobre a língua francesa (e não somente, frise-se). O ato, então, configura-se por meio da manipulação de uma matéria linguística que é viva, que continua, na leitura do leitor e do crítico Francis Ponge. Mas, assim como em Murilo Mendes, há uma reverberação do material, desse ato, disseminado por toda a obra e que se constitui enfim numa prática literária assumindo os foros quase que de um novo gênero literário. Nesse sentido, a prática pongiana é um tanto mais matizada que a muriliana. Coisa que não se dá de modo diverso com o longo livro-poema La table, cujas provas, rascunhos e caminhos do processo de escrita, ali estão, como se a todo momento o texto se criticasse a si próprio, apresentando as suas tentativas no correr do seu ato de construção, tornando-se inclusivo porque pressupõe o leitor (que imagina e compõe o livro) e também uma voz crítica que faz dialogar o texto com o seu avesso e possibilidade.

Interessante é notar que, se Murilo Mendes procede com muito mais frequência a um posicionamento crítico externo, Ponge vai numa direção em que a crítica se internaliza. O poeta francês se volta ao literário muito mais no sentido de uma autocrítica, ou metacrítica. Os textos incluídos em Méthodes, bem como os Proêmes, são grande prova de uma prática indistinta de

18 “[...] Ponge recusava, de sua parte, a distinção muito marcada entre isso que ele chama de seus ‘momentos críticos’

(os proemas) e seus ‘momentos líricos’ (os poemas). Prática, portanto, como noção que designa um texto, e não simplesmente um poema; ou seja, um trabalho, um ato, ou melhor, pois o plural é aqui importante, uma série de atos que estão, ao mesmo tempo, simultaneamente, indissoluvelmente, ligados uns ao outros, críticos e líricos, proemáticos e poéticos, e isso abertamente, pedagogicamente poderíamos dizer, evitando se possível o recurso às facilidades mágicas. Em plena luz. Mostrando muito mais que hipnotizando.” (GLEIZE; VECK, 1984, p.19, grifo do autor).

poeta e crítico dobrado quase exclusivamente sobre si mesmo, empenhando-se numa atividade que toma, inclusive, ares de preparação, proemática, de proêmio.

Leda Tenório da Motta (2000a, p.40, grifo do autor) é taxativa nesse sentido:

[t]odos os seus escritos realizando, ao mesmo tempo, um discurso da obra e um discurso sobre a obra, que nos volta a dupla face da poesia e da crítica, da performance e da autocrítica. Toda a obra é, nesse sentido, rigorosamente meta. “Metalógica”, especifica Ponge, acrescentando que é graças à “metalogia” que ele desata os nós da posição trágica que se origina na verificação da infidelidade dos meios de expressão não se deixando empurrar como tantos outros – nada menos que Valéry, o Mallarmé de Igitur, Rimbaud e Lautréamont, refira-se – para os extremos de uma “não-significação do mundo”.

No caminho que esses poetas empreendem, cabe observar a intensidade do trânsito e da indistinção da forma e do estatuto dos textos, bem como do posicionamento da voz (seja lírica, crítica ou biográfica). Acaba se rarefazendo o vão entre o poeta e o crítico, que é não só crítico de literatura, mas também de artes plásticas, de música e de cultura. Assim, cabe também investigar de que modo se posicionam essas vozes lírico-críticas. Enquanto críticos, Murilo Mendes e Francis Ponge procedem também como leitores-críticos da própria obra e de outras. O ato da leitura guarda em si o da recriação, da possibilidade de estabelecer uma variação do texto lido porque começa com a posse – é um ato de criação e doação ao mesmo tempo. O poeta-crítico se situa também numa zona eminentemente criativa em que estabelece juízos, avaliações, em que age de acordo com uma experiência tanto literária quanto individual. Nesse caso, o embaralhamento de posições é mais complexo já que dispõe, num mesmo centro, uma voz ficcional, mas que se quer analítica e por vezes imparcial. Então, é que estes sujeitos poetas- críticos se encontram no centro de uma prática criativa da literatura, à qual se chega pela via de vários atos (poéticos e críticos), manipulando a gestação da própria criação literária, a sua análise e a sua crítica. Ambos os sujeitos estabelecem um corpo-a-corpo criativo com o texto (próprio e de outros). Isto sempre num mesmo corpo literário, que surge da palavra e é palavra. Poderíamos nos perguntar: que espécie de sujeito é este? Crítico, biográfico, poético? Evidentemente, este sujeito é sempre ficcional e age de modo dialético, ocupando uma posição privilegiada, que lhe confere a capacidade de tudo agenciar – a lógica, a palavra, as coisas, o objeto poético-crítico.

Volta a questão: o que se depreende da aproximação ou do distanciamento entre Murilo Mendes e Francis Ponge? A ideia principal que nos orienta é a de poesia e crítica como práticas

cuja natureza é totalmente criadora. E não só a literatura, mas ainda as artes plásticas (que, de fato, não são nosso objetivo). É então que podemos afirmar: poesia e crítica se juntam, irmanam- se, no sentido de uma poiesis. Nessa tensão, cujo lugar é sempre na palavra, no texto, na linguagem, está implicada a crise do estatuto lírico e do crítico. Nesse caminho criativo, vê-se a crise, que é inerente ao poético, cuja força está em produzi-la ao mesmo tempo em que se produz a si mesmo – crise do lugar do sujeito lírico e do crítico, crise do estatuto da poesia e da prosa. Esse, o nosso horizonte de perspectivas, cuja relevância está, não na novidade da proposição, mas na execução (que se quer mais detida e profunda) de uma aproximação muitas vezes ensaiada pela fortuna crítica de Murilo Mendes e de Francis Ponge. Uma relevância que se sobressai, ainda, ao observar os poetas a partir de uma postura lírica e crítica disseminada em toda a obra completa (e que pontuaremos em livros determinados) e que coloca em questão não só a figura do poeta e do crítico, mas do ato e da prática da literatura. Vamos às análises.