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2 (NÃO) HÁ FRONTEIRA ENTRE OS GÊNEROS?

2.1 Um Poliedro de diálogos

Publicado em 1972, o Poliedro insere-se na fase europeia de Murilo Mendes, aspecto, aliás, que é concretamente visível em várias passagens dos poemas por meio da citação de espaços específicos, relações com artistas diversos, bem como da menção ao ofício de professor em Roma. Os textos, escritos entre 1965-1966, datam do mesmo período dos memorialísticos de

A idade do serrote, publicados somente em 1968. Dividido em quatro Setores: “Setor Microzoo”,

“Setor Microlições de Coisas”, “Setor A Palavra Circular”, “Setor Texto Délfico”; a primeira edição trazia ainda, abrindo o volume, a “Microdefinição do autor”.

Alguns vislumbres iniciais da crítica à obra de Murilo Mendes como um todo são prova da dificuldade de enquadrá-la sob uma insígnia específica do ponto de vista da forma. O Poliedro não foge a essa dificuldade: nas “Notas e variantes”, ao final da Poesia completa e prosa, lê-se que este é um “[...] livro difícil e estranho, na sua estrutura de prosa-poesia, [que] interessou no Brasil especialmente os adeptos da poesia experimental”. (MENDES, 1994, p.1694). Já em “Murilo Mendes e o Poliedro”, que faz as vezes de introdução à primeira edição, Eliane Zagury (1972, p.xii), embora se valha do termo “prosa lírica”, parece descrever perfeitamente a mecânica dos poemas em prosa que vemos pelo menos nos três primeiros Setores:

19 Como procuramos demonstrar na seção intitulada “Do poema em prosa, do texto-coisa, poema-objeto” de As vozes e as coisas (ANTONIO, 2013).

[u]m confronto de obra poética com obra em prosa pode oferecer-nos, por fusão e abstração, um espectro mais aproximado dessa realidade linguística inefável que há pouco chamávamos de zona de convergências. E Poliedro se presta especialmente a isso, uma vez que inaugura para nós um novo subgênero literário: não se trata de uma simples coletânea de fragmentos de prosa lírica, mas sim de uma estrutura cerrada, orgânica, bem montada sobre os alicerces de toda a obra anterior, outras partes do poliedro agora vislumbrado.

O trechos citados espelham, por um lado, o grau de inovação dos textos inseridos no

Poliedro; por outro, o amálgama entre prosa e poesia, além da capacidade de presentificar,

conteudisticamente, a poesia em versos produzida por Murilo até o fim dos anos 40. Inovação e diálogo implícitos, portanto. São leituras certeiras, ainda que recusemos veementemente a expressão “prosa lírica” ou “prosa poética”, esta última lançada por Irene de Miranda Franco (2002, p.50), na obra intitulada Murilo Mendes: pânico e flor que faz uma coerente leitura do

Poliedro. Evidentemente, que esses poemas são escritos em prosa poética, são prosa somente em

sua função adjetiva; mas a sua função substantiva, que lhes define a essência, é poética. Cabe dizer que é muito mais visível a potência de síntese da obra poética muriliana (aquela inicial de

As metamorfoses), marcada pela metáfora aguda, pela imagem plástica. Em seu teor

multifacetado, poliédrico mesmo, fica muito clara tal contenção no desejo de apresentar as faces múltiplas das coisas. Portanto, ainda que tenhamos no Poliedro uma movimentação de formas, e é natural que a tenhamos, preferimos encará-los como poemas em prosa20. Na esteira disso, vale citar a estrutura fechada em Setores, bem como a importância da disposição gráfica dos poemas. Ao título, segue-se sempre um conjunto de blocos, ou um bloco único, separados por bolas pretas, enquadrados pelo branco da página à semelhança do que se vê ao final dos versos. Esses espaços significam na medida em que colocam o objeto-poema no tempo e no espaço, mas, ao focalizá-los sob diferentes ângulos, cinematograficamente, no passar de um a outro bloco ou face da coisa, proporciona construir uma diversidade de objetos outros, agenciados pelo ponto de vista do eu-lírico. Existe um processo vivo no Poliedro que valoriza o aspecto gráfico dos textos na junção (muito poética, diga-se de passagem) de forma e conteúdo. Os poemas vão desvelando poliedricamente, matematicamente, essas faces das coisas – à moda pongiana, poderíamos dizer, os objetos são como que girados pelas mãos do eu-lírico e apresentados em seu aspecto mais concreto.

20 Uma análise mais detida acerca da forma do poema em prosa no Poliedro, especificamente, pode ser encontrada

A liberdade estrutural oferecida pelo poema em prosa permite, pela via da prosa, mais objetiva, que o eu-lírico dialogue criticamente quase o tempo todo com as outras artes. De um modo geral, o esticar da poesia às artes plásticas, à música, à dança, é marca da poesia de Murilo Mendes desde sua estreia. No entanto, esse contato torna-se mais intenso a partir da chamada segunda face, a que começaria com Siciliana21, publicado em 1959, justamente pela conversa mais acentuada de Murilo com artistas, pintores e autores, levando-se em consideração o ambiente de trocas artísticas, literárias e culturais no qual ele estava inserido na Itália. Daí porque em Poliedro praticamente todos os poemas já contêm uma referência a um poeta, escritor ou artista e suas respectivas obras, fazendo com que observemos cada um dos objetos sob uma ótica outra, a da ligação direta que se faz com o citado. A questão da citação é muito importante para as inclinações críticas da obra do poeta juiz-forano, mas não cabe discuti-las agora. De todo modo, a eleição daquilo que será citado, e o modo como o é, apontam uma conduta também crítica da parte do eu-lírico.

Os poemas do Poliedro tratam de objetos do cotidiano, animais, pessoas. Todavia, em alguns momentos, a menção a algum autor ou pintor abre espaço para uma inflexão marcadamente analítica, muitas vezes não explícita, mas presente de modo a orientar e direcionar a leitura em curso do objeto e a própria forma do poema. A análise do estado da questão é importante porque, de certa maneira, apresenta por contraste o caráter quase que completamente crítico de outras obras, por exemplo, Convergência de 1970. No caso, quanto maior a liberdade formal, maior a abertura crítica, ainda que se esteja falando de um experimentalismo voltado ao verso. Como o que nos interessa é a crítica da poesia (e não das artes plásticas, da música ou da narrativa – e elas estão muito presentes desde sempre), vejamos como se dá o processo muriliano de eleger essas obras e inseri-las no contexto do poema e, mais importante ainda, como se dá o diálogo criativo entre a poesia e a sua crítica.

Primeiramente, chama a atenção o fato de que os Setores do Poliedro são todos dedicados a personalidades ligadas à esfera literária brasileira. O “Setor Microzoo”, a José Geraldo Vieira (1897-1977), romancista que, segundo Alfredo Bosi (2006), era uma voz diferente nos anos 30 e 40. Por seu turno, o “Setor Microlições de Coisas” é dedicado ao poeta e crítico Paulo Mendes de

21 A divisão dessas faces, segundo Augusto Massi (1995) e Murilo Marcondes de Moura (1995), dar-se-ia da

seguinte forma: de Poemas (1930) a Poesias (1959) e de Siciliana (1959) a Ipotesi (1977). Sobre tal divisão não há um consenso entre os críticos: outros vão incluir ou retirar obras desta ou daquela face.

Almeida (1905-1986). Já o “Setor A Palavra Circular” dedica-se a Haroldo de Campos (1929- 2003), poeta, crítico e tradutor que dispensa apresentações. O último deles, o “Setor Texto Délfico”, é dedicado ao crítico José Guilherme Merquior (1941-1991). A evocação dos nomes na abertura de cada um dos Setores da obra lança-a numa vereda gestacional completamente literária de relações. Em grande medida, o aspecto crítico da obra de Murilo Mendes passa pelo diálogo (indireto, às vezes) com figuras que fazem parte da esfera mais global da cultura – artistas plásticos, pintores, músicos, dançarinos, estudiosos e críticos. Numa outra direção, fica claro o quanto essas evocações, dedicatórias e citações, são pessoais, críticas e criativas – fazem parte da everfescência literária daquele momento, mas o extrapolam em direção à própria intimidade do homem e do poeta Murilo. Pessoais, porque resvalam numa quantidade imensa de relações afetivas; relações essas que não admitiam fronteiras nem língua. Partindo da escolha, elas são também críticas ao darem a ver o juízo de valor personificado (muitas vezes negativamente). Nesse sentido, as escolhas do eu-lírico partem a seu modo do eu-civil Murilo Mendes e dele dependem, transformando uma simples citação num jogo de ficcionalidade entre eu e homem, poeta e crítico que seleciona, decompõe e avalia a obra ou o poeta citado. É claro que, nesse sentido, o paideuma muriliano é presente e atuante. Sob vários aspectos, tais movimentos podem ser vistos não só no Poliedro, mas em quase toda a obra. Nesse vão de posturas, o poema é criativo, no sentido crítico, no ato mesmo do eu-lírico de mencionar, de citar, um poeta, um poema, ou indiretamente uma fala determinada, porque, com o processo de seleção faz dialogarem texto e subtexto, numa teia em que se constrói o novo. Além disso, ao citar, direta ou indiretamente, o eu-lírico assume uma determinada postura perante o citado. É o que temos em “O tigre” do “Setor Microzoo”:

O TIGRE

O tigre, segundo Valéry, é um fato grandioso, uma vera instituição, um poder organizadíssimo, uma espécie de razão de estado, de monarquia totalitária; o animal absoluto. Por estes e outros motivos afins já se vê que le tigre ce n’est pas moi.

O tigre, mamífero (sic) da família real dos Felídeos, calcula seus atos com rigor extremo; não se passa a limpo, não se desdiz, nem se corrige. O tigre é autocronometrado. Mesmo quando opera durante a noite opera diurno.

William Blake maravilha-se com razão, perguntando-se que olho imortal ousou a terrível simetria do tigre; e se o tigre poderia agradar ao próprio Deus que criou o Cordeiro.

O tigre devorará tua metáfora antes do seu acabamento. O tigre não espera o homem. Os deuses esperam o tigre.

• O tigre, compasso em forma de tigre.

• Não há tigre vice: o leão é vice-tigre.

O tigre: tão bem organizado que até os tigres de papel fazem-se temer. •

Agredirei a majestade desse animal definitivo, aludindo à tigricidade da dupla Stalinhitler.

• O tigre, esse cosmotigre.

O tigre é belo. Inadiável. Sibilino. Calmo. Intransferível.

A tigresa eternidade avança para mim sob a forma de uma tesoura: Átropos. (MENDES, 1994, p.981, grifo do autor).

O poema concretiza a própria noção de gênero híbrido: composto de dez partes separadas por sinais gráficos, cuja forma se alterna entre prosa e poesia, entre descrição (poética) e verso. Essas dez partes concorrem para a formação da definição do que seja o tigre, além de terem autonomia própria. Cada uma delas poderia figurar como um aforismo de O discípulo de Emaús ou mesmo um verso da fase carioca de Murilo. Constrasta com a prosificação do poema a insistência na palavra “tigre” e a forma fixa de algumas das partes. Vejamos que é no espaço liberto do poema em prosa que Murilo provoca variações claras entre poesia e prosa, configurando um amálgama inseparável. Nesse sentido, atente-se para a potência da imagem do animal, bem como à sonoridade e ao corte da frase-verso. A composição da imagem do tigre se dá, portanto, na espacialização dos discurso da prosa, rompendo com a sua linearidade, fazendo sobressair o movimento das partes ao todo. Aliás, a presença do eu-lírico está por oposição ao desejo palidíssimo de contar uma história. A narrativa pulverizada, o poema pulverizado (visivelmente na separação e aglutinação em prosa), o espaço que se abre é mesmo o do poema

em prosa, este, um campo em que o eu-lírico relacionará a outros elementos, e com plena liberdade, aquilo que analisa, define e cria.

Nos poemas do Poliedro, o surgimento das coisas parte das visadas do eu-lírico – o que não é diferente em “O tigre”. Todavia, o que nos interessa é o modo como a criação do animal apoia-se em citações indiretas da poética de outros poetas (para que fiquemos somente na literatura): Paul Valéry (1871-1945) e William Blake (1757-1827). O poema abre-se praticamente com uma definição do tigre pelo poeta francês. Mais precisamente, o texto a que se refere é o que segue:

TIGER

<Londres – Tigre au Zoo – Admirable bête, à tête d’un sérieux formidable et ce masque connu, où il y a du Mongol, une puissance royale, une possibilité, expression fermée de pouvoir – quelque chose d’au-delà de la cruauté – une expression de fatalité – Tête de maître absolu au repos – Ennuyé, formidable, chargé – Impossible d’être plus soi-même, plus ce qu’il faut pour être tigre.

Mais cet animal admirable croise et décroise ses bras, on voit des muscles rouler parfois légèrement sous la robe fauve fouettée de noir – La queue vit – Ont-ils conscience de ces mouvements éloignés ? – Cet animal a l’air d’un grand empire – tout à coup il s’unit.

Le « pétillement » des réflexes locaux – Chercher à déchiffrer cette vie intérieure contenue.

Je ne puis m’attarder et étudier longtemps cette bête – le plus beau tigre que j'aie vu.

Je pense à la « littérature » possible sur ce sujet. Aux images que l’on chercherait et que je ne chercherais pas. Je chercherais à le posséder dans son état de vie et de forme mobile, déformable par l’acte, avant que de le traiter par écriture.>

Mouvement pendulaire des fauves le long des grilles où leurs stries frôlent les barreaux.

Il ouvre la gueule. Bâillement – Présence et absence de l’âme du tigre, qui attend éternellement l’événement.

LE MÊME

L’énorme fauve est couché tout contre les barres de sa cage. Son immobilité me fixe. Sa beauté me cristallise. Je tombe en rêverie devant cette personne animale impénétrable. Je compose dans mon esprit les forces et les formes de ce magnifique seigneur qu’une robe si noble et si souple enveloppe.

Il porte sur ce qu’il voit un regard incurieux. Je cherche ingénument à lire des attributs humains sur son mufle admirable. Je m’attache à l’expression

de supériorité fermée, de puissance et d’absence, que je trouve à cette face de maître absolu, étrangement voilée, ou ornée d’une dentelle très déliée d’arabesques noires très élégantes, comme peintes sur le masque de poils dorés.

Point de férocité : quelque chose de plus formidable, – je ne sais quelle certitude d’être fatal.

Quelle plénitude, quel égotisme sans défaut, quel isolement souverain ! L’imminence de tout ce qu’il vaut est avec lui. Cet être me fait songer vaguement à un grand empire.

Il n’est pas possible d’être plus soi-même, plus exactement armé, doué, chargé, instruit de tout ce qu’il faut pour être parfaitement tigre. Il ne peut lui venir d’appétit ni de tentation qui ne trouvent en lui leurs moyens les plus prompts.

Je lui donne cette devise : SANS PHRASES !

(VALÉRY, 1957, v.I, p.293-295, grifo do autor).

TIGRE

<Londres – Tigre no Zoo – Admirável animal, fronte de uma gravidade formidável e esta máscara conhecida, onde há traços mongóis, uma potência régia, uma possibilidade, expressão fechada de poder – alguma coisa para além da crueldade – uma expressão de fatalidade – Fronte de mestre absoluto em repouso – Entediado, formidável, carregado – Impossível ser mais si-mesmo, mais o que é necessário para ser tigre.

Mas este animal admirável cruza e descruza seus braços, vemos os músculos às vezes rolar ligeiramente sob a toga fulva açoitada de negro – A cauda vive – Têm eles consciência desses movimentos distantes? – Este animal tem a aparência de um grande império – de repente se une.

A “cintilação” dos reflexos locais – Buscar decifrar esta contida vida interior.

Eu não posso me demorar e estudar muito tempo esta fera – o mais belo tigre que vi.

Eu penso na “literatura” possível sobre esse sujeito. Nas imagens que se buscariam e que eu não buscaria. Eu buscaria possuí-lo em sua condição de vida e de forma móvel, deformável pela ação, ao invés de o tratar por escrita>.

Movimento pendular das feras ao longo das grades onde suas listras roçam as barras.

Ele abre a goela. Bocejo – Presença e ausência da alma do tigre, que espera eternamente o acontecimento.

O MESMO

A enorme fera está deitada totalmente contra as barras de sua jaula. Sua imobilidade me fixa. Sua beleza me cristaliza. Caio em devaneio diante dessa pessoa animal impenetrável. Componho em meu espírito as forças e as formas desse magnífico senhor que uma toga tão nobre e tão flexível envolve.

Ele lança sobre aquilo que vê um olhar incurioso. Eu procuro ingenuamente ler atributos humanos em sua focinheira admirável. Eu me prendo à expressão de superioridade fechada, de potência e ausência, que encontro nessa face de mestre absoluto, estranhamente velada, ou ornada de uma renda muito fina de arabescos negros muito elegantes, como pinturas sobre a máscara de pelos dourados.

Nada de ferocidade: algo mais formidável, – não sei que certeza de ser fatal.

Que plenitude, que egoísmo sem defeitos, que isolamento soberano! A iminência de tudo que vale está com ele. Este ser me faz pensar vagamente num grande império.

Não é possível ser mais si-mesmo, mais exatamente armado, dotado, carregado, instruído de tudo que é preciso para ser perfeitamente tigre. Não lhe pode ocorrer apetite nem tentação que nele não encontrem seus modos mais imediatos.

Eu lhe dou esta divisa: SEM FRASES! (VALÉRY, 1957, v.I, p.293-295, grifo do autor).

“Tiger” e « Le même » aparecem em sequência e, como as primeiras linhas deixam entrever, começa com uma visita ao zoológico de Londres22. Digna de nota é a proximidade entre esses dois textos de Valéry e os do Poliedro: o tom de reverência perante o animal, a estrutura (em que o do brasileiro recorre às bolinhas e o do francês aos travessões), a concepção do felino como um ser duplo. No caso do primeiro texto, pesa para o diálogo estabelecido por Murilo expressões que dão conta do poder da fera, do seu caráter real, e especialmente do seu “ar de grande império”. Mais importante ainda é a afirmação valeriana de que pensa na literatura possível (entre aspas, frise-se) sobre esse tema, o que, em grande medida, tornaria possível o

22 É variada a quantidade de autores que se prestaram a falar sobre o tigre. No entanto, vale mencionar, pela

similaridade no que toca à forma, pela variação dos tipos de texto, e, sobretudo, pela manifestação de uma heteronímia supreendente, o póstumo Ave, palavra de Guimarães Rosa (1970). Ali, chamam atenção os textos em que o autor do Grande Sertão: Veredas trata de suas visitas ao zoológico e descreve impressões num misto de prosa e verso: “Zoo (Whipsnade Park, Londres)”, “Zoo (Rio, Quinta da Boa Vista)”, “Zoo (Hagenbecks Tierpark, Hamburgo Stellingen)”, “Zoo (Jardim des Plantes)” e “Zoo (Parc Zoologique du Bois de Vincennes)”. Neste último, a figura do tigre aparece num fragmento dedicado à fauverie: “Na fauverie, as feras enjauladas se ofendem, com seus odores inconciliáveis. / O acocorar-se dos leões. Seus ílions, como asas. Leão e leoa. Sempre se aconchegam, no triclínio. / Pantera negra: na luz esverdeada de seus olhos, lê-se que a crueldade é uma loucura tão fria, que precisa do calor de sangue alheio. / A massa dura de um tigre. Sua máscara de pajé tatuado. / O tigre quase relinchou.” (ROSA, 1970, p.248, grifo nosso).

poema de Murilo Mendes fazer as vezes uma espécie de réplica (ou tréplica) ao texto lido, que o continua na procura e na criação de novas imagens acerca do tigre. O ato do poeta brasileiro é antes o de, nas palavras de Valéry, « le traiter par écriture », coisa que, de fato, o próprio francês executa em seguida com « Le même ». Neste, as imagens, trabalhadas com um cuidado aparentemente maior, num processo de ironia em relação ao escrito anterior, marcam a perfeição do animal, tentando encontrar-lhe qualquer atributo que seja humano. A impenetrabilidade do tigre manifesta-se do ponto de vista literário e culmina com a única divisa aceitável, “SEM FRASES”. A literatura e a palavra não podem, portanto, alcançá-lo, nem o sujeito, já que não existe um correlato linguístico adequado para que se designe o animal. Tais posturas acenam à insuficiência da linguagem que rivaliza à superlatividade do tigre – em última análise, o mesmo que asseverar a força do exercício de se fazer poesia, ao qual o tigre equivale.

Em certa medida, o estado absoluto do animal, seja ele linguístico ou não, reflete-se na autonegação do eu-lírico muriliano, múltiplo, incompleto e em constante mudança, ao afirmar: “Por estes e outros motivos afins já se vê que le tigre ce n’est pas moi.” A contraparte a esse tigre, que guarda fortes semelhanças com o de Valéry, é o “moi”, apequenado e presente ainda