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2 FREI DAMIÃO E O CATOLICISMO RURAL: A CONSTRUÇÃO DE UM

2.4 Frei Damião e sua importância no catolicismo rural paraibano

Os devotados fiéis, sobretudo os moradores da zona rural, viam em Frei Damião um exemplo de santidade e reflexo de paradigmas católicos e sacralidade. O seu discurso, contudo, era típico do discurso dos capuchinhos com características escatológicas e messiânicas. Sobre isso, já comentou o teólogo belga José Comblin (2011, p. 35):

As pregações dos capuchinhos italianos eram de tipo mais apocalíptico. Estavam centradas na pregação dos fins últimos. Criavam um ambiente de expectativa do fim do mundo e do advento final de Jesus. Apelavam para o profundo das aspirações messiânicas do povo sertanejo, imbuídas certamente de um inconsciente indígena. O formato da pregação de Frei Damião era típico da sua ordem, os capuchinhos. Esse “ideal” de vida, de certa forma com traços estoicos, enfatizava as virtudes da simplicidade e da abnegação do mundo. Os sofrimentos e misérias são aceitos com resignação, e a pobreza é

vista, nesse discurso, até como aliada para aquele que renuncia às riquezas e aos prazeres da vida mundana em prol do “reino de Deus”. O trabalho de Frei Damião estava na esfera da pregação evangélica missionária, que incluía rituais litúrgicos e sacramentos como missas, batizados e casamentos. No caso de Frei Damião, todas essas ações eram realizadas, em sua grande maioria, de forma coletiva, devido a atender ao grande número de pessoas, que enchiam as cidades aonde o pequeno capuchinho colocava os pés. Ele expressava uma liderança carismática natural.

Uma importante análise do carisma e da liderança natural está em Max Weber (1982). Em Weber (1982, p. 283) vemos:

[...] os líderes “naturais” – em épocas de dificuldades psíquicas, físicas, econômicas, éticas, religiosas ou políticas – não foram os ocupantes de cargos nem os titulares de uma “ocupação” no sentido atual da palavra, isto é, homens que adquiriram um conhecimento especializado e que servem em troco de uma remuneração.

Podemos identificar esse caráter carismático de líder natural em Frei Damião ao observarmos alguns pontos de sua ação missionária. Weber diz que o líder natural “em épocas de dificuldades psíquicas, físicas, econômicas, éticas, religiosas ou políticas” atua junto ao povo, sem que com isso ocupe a sua liderança, “dependa de cargos remunerados”. Frei Damião não tinha uma ocupação oficial que cobrasse pelos seus serviços, como cargos públicos por exemplo. Além disso, ele atuava em um palco de misérias sociais junto aos pobres. Contudo, ele não tinha como foco tais problemas e misérias de ordem trivial, física com a intenção de saná-las. Ele agia no sentido de dar conforto psíquico ao aconselhar e sacramentar, e de conformidade com situações de privações ao discursar.

No pensar de um capuchinho, pobreza não é defeito, muito pelo contrário, é uma virtude que suplanta a vaidade e fundamenta a humildade. É possível que o voto de pobreza que todo franciscano capuchinho observa, a exemplo de São Francisco de Assis que abandonou a riqueza de sua família para ser mendigo, tenha raiz nas atitudes de Frei Damião de focar exclusivamente na espiritualidade e nas rezas, nos sacramentos e devoções, além das características de sua ordem que tem como missão o viver eremita e as peregrinações levando o evangelho para as cidades e lugarejos. As motivações e disposições morais do povo rural se realizavam nas palavras do capuchinho Damião. Estes são fragmentos de seus sermões:

Eu condeno sempre a minissaia. Essa roupa não presta não. É causa de muitos pecados. Muitos homens já perderam a cabeça por causa desse exagero das mulheres.

Um beijo dado no rosto da namorada, como um beijo dado numa parente, não tem nada demais, estão ouvindo? Agora, um beijo na boca, um beijo de língua, isso não. É pecado.

Sofrimento não é indiferença de Deus. Esta vida é apenas uma preparação para outra; esta sim é importante. Daí, precisamos sofrer nessa existência para termos merecimento na outra.

Viver com uma mulher sem ser casado com ela na igreja está errado. O casamento na justiça não é o bastante. Deus não confirma essa união, ela não existe. Estão ouvindo? Tem que casar na igreja.

Os jovens fazem o que não deveria ser feito, em pecados, prazeres sinistros, desonestidades, conversas inúteis, visitas supérfluas, danças, jogos, divertimentos. Correm atrás dos bens efêmeros desta vida até merecerem a condenação eterna. Para eles, está mais vivo o fogo do inferno.

No inferno só há sofrimento. Lá, o calor é bilhões de vezes pior do que no Nordeste no tempo da seca. As labaredas sobem e queimam sem parar o corpo dos adúlteros, das prostitutas, dos efeminados, dos criminosos. Lá é o lugar onde vive o demônio. (OLIVEIRA, 1997, p. 81-83).

Palavras como estas refletem muito a constituição de vida do sertanejo. E revelam, como anteriormente já se falou, o formato do discurso apocalíptico e de resignação diante da pobreza e do sofrimento. Quando Frei Damião diz: “Sofrimento não é indiferença de Deus. Esta vida é apenas uma preparação para outra; esta sim é importante. Daí precisamos sofrer nessa existência para termos merecimento na outra”, discursos como esse eram absorvidos pelos pobres e carentes, até como uma forma de confirmar o seu conformismo com sua situação de pobreza, encontrando alívio para suas carências, que muitas vezes eram do básico, como comida e água. Tal discurso dizia para os indivíduos se resignarem com seus sofrimentos, aceitá-los e suportá-los como prerrogativa da salvação da sua alma, em prol de uma vida extrafísica de bem-aventurança.

O discurso de Frei Damião, sua pregação encontrava nesse povo uma espécie de “ressonância” e empatia. Tal comportamento pode ter nascido da herança histórica de anos de abandono de ordem e cuidados sociais por parte de governos e da própria Igreja. A vida de missionário que tinha o social como principal foco, como é o caso do Padre Ibiapina, pode revelar muito do que estamos falando. Um verdadeiro nascedouro de crendices e cultura do modo de ser de antepassados sertanejos e que repercute ainda no atual povo rural manifestado em seus semblantes, suas “credulidades” e éthos. O morador da zona rural tradicionalmente é um povo mais observador das tradições dos seus antepassados. Seus costumes, seus ritmos e rituais fazem o povo camponês possuir características próprias.

2.5 Frei Damião: do homem religioso ao herói sertanejo, do herói ao santo, do santo ao