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2 FREI DAMIÃO E O CATOLICISMO RURAL: A CONSTRUÇÃO DE UM

2.3 Os ritmos e os ritos do camponês e as convergências das culturas do campo e

Primeiramente atentemos para o fato de que a grande maioria das comunidades humanas nasceu do universo rural. Depois é que adveio o crescimento das cidades e as migrações em massa de pessoas do campo para as capitais e cidades, colocando a “atenção” da sociedade moderna na cultura das cidades que se tornaram sinônimo de facilidades tecnológicas, praticidades domésticas e “prosperidades artificiais” em curto prazo, além de trabalhos menos árduos (o que nem sempre era um fato em muitos dos casos) e mais rentáveis para os trabalhadores pobres, posseiros, boias-frias e de trabalho alugado no meio rural. Isso mostra que o termo popular era sinônimo de povo e o povo era o camponês.

De acordo com Peter Burke (2010, p. 57): “Para os descobridores da cultura popular, o „povo‟ eram os camponeses. Os camponeses compunham de 80% a 90% da população da Europa”. Burke ainda expõe importantíssimos exemplos de que as canções, as danças e os contos populares estavam baseados no folclore dessas comunidades rurais da Europa e que por isso eram primeiramente entendidos por estudiosos e pesquisadores da cultura popular como sendo uniformes. Ou seja, aplicados como sinônimo de significado para tudo o que diz respeito a “popular”.

Mas, com o crescimento das cidades e o desenvolvimento industrial, tecnológico e sistemático das sociedades, o termo popular tornou-se de uma complexidade ainda mais ampla. Da mesma forma que podemos falar em catolicismos populares, podemos conceber a partir dessas configurações modernas sociais de “culturas populares”, devido a sua complexidade e heterogeneidade. Estão configuradas no conceito do termo “popular”, entidades de cultura popular, distinções de crenças e idiossincrasias locais e linguísticas de seus ritmos e rituais de vida cotidiana como um todo.

Quando se fala em rituais a tendência é imaginar que se trata logo de rituais religiosos ou mágicos. Mas as sociedades, sejam elas antigas ou modernas como as que presenciamos na contemporaneidade, são constituídas por seus próprios rituais em uma escala que vai da pessoal, familiar à comunitária ou coletiva. Ritual é ação coordenada que se repete. “Ora, todo movimento resulta de uma ação, é ação. Por isso o rito é entendido como ação ordenada” (VILHENA, 2005, p. 21). E ainda, o rito é de fundamental importância para a formação, manutenção e sobrevivência da sociedade. Com um importante caráter de reestruturação e transformação social de acordo com as circunstâncias e acontecimentos históricos, os ritos sociais podem ser alterados ou ressignificados de acordo com o tempo e as necessidades culturais da sociedade. Uma boa explicação sobre esse assunto está nas palavras de Vilhena (2005, p. 22-23):

Conforme as circunstâncias e as necessidades sociais, novos ritos podem ser criados, ou re-criados ou re-significados, outros ainda podem desaparecer quando não tiverem mais sentido para uma comunidade ou para a sociedade em geral. O rito situa-se, portanto, na articulação entre tradição, memória, conservação e transformação.

Na esfera rural da sociedade, essas mudanças de ritmos e ritos foram ocasionadas ou intensificadas de forma bastante significativa pelos meios de comunicação de massa, através primeiramente do rádio e logo depois, da televisão, mudando os costumes e ritmos de vida das pessoas do meio rural.

A começar por seu dialeto e seu sotaque, o camponês, o caipira, é reconhecido, em um primeiro contato, por aqueles que são da capital. As suas crenças e crendices só são perceptíveis por uma proximidade mais efetiva e um diálogo mais aprofundado. Por sua vez, os moradores da capital também são reconhecidos por esses mesmos mecanismos de percepção pelos camponeses. Antigamente essa distinção era deflagrada pelo modo de vestir, pelo comportamento e até pelos gestos. Atualmente, a moda e os costumes são difundidos e distribuídos aonde quer que exista um pequeno rádio ou aparelho de TV, excitando a cobiça

do mais humilde aos mais abastados dos moradores do campo ou da cidade, convidando-os a comprar, a se comportar e a se portar como os mocinhos e mocinhas da novela e dos seriados de TV. As propagandas comerciais bombardeiam a todo o momento excitando e criando necessidades que antes eram totalmente desnecessárias à vida simples do campo.

As zonas rurais, atualmente, não são mais as mesmas dos últimos séculos. Não existe mais o isolamento do mundo. Os seus ritmos musicais entram em harmonia com os ritmos das grandes cidades do mundo. O forró convive e até se misturou com o rock and roll, o chamado forró enlatado. O acordar cedo, às cinco da manhã para fazer o café e trabalhar, ir para o roçado, para a lida com o gado; o dormir cedo e a reunião familiar no alpendre da casa depois do almoço e à noite antes de dormir, ainda são ritmos do interiorano em sua maioria. A ida às missas aos domingos, o rezar ou o orar ao pé da cama, e em alguns casos raros, a reza e o acender de velas diante do oratório da família, também ainda o são. Contudo, a televisão chegou para contrabalançar esses ritmos e ritos familiares em comum. O almoço pode ser em frente à TV e não mais à mesa, também o alpendre foi largamente substituído pela sala de estar com o acréscimo do aparelho de TV.

Apesar dos costumes estritamente locais e suas tradições, assim como também a moda, perderam a sua “autenticidade local” com o advento das novas tecnologias comunicacionais, que encurtaram caminhos e tornaram as culturas mais próximas, havendo não mais a distribuição do centro para as periferias, mas o seu inverso, como diz Mcluhan (2007, p.112):

A aceleração de hoje não é uma lenta explosão centrífuga do centro para as margens, mas uma implosão imediata e uma interfusão do espaço e das funções. Nossa civilização especializada e fragmentada, baseada na estrutura centro-margem, subitamente está experimentando uma reunificação instantânea de todas as suas partes mecanizadas num todo orgânico. Este é o mundo novo da aldeia global. Essa aldeia global de que fala Mcluham é uma nova configuração de ordem planetária em que as culturas, as crenças e os costumes se interpenetram e se misturam como se fosse uma aldeia. Nisso, o que era exclusivo do interior hoje não é mais. Por sua vez, o que era exclusivo das capitais desenvolvidas, também se vê no interior.

A tipicidade está perdendo cada vez mais o seu caráter típico. Contudo, ainda encontramos neste século tradições, crenças e crendices profundamente arraigadas no interior do estado, havendo apenas uma transformação nos moldes e nas suas estruturas deflagrada na política e na economia capitalista. Nessa profusão consumista, o sagrado se envolve na corrida do capital, e se utiliza de forma deflagrada e urgente dos mass media. São as instituições religiosas, que se utilizam da mídia, dos meios de comunicação, da política e do

marketing para alcançar dimensões de alcance antes jamais sonhado, para arrecadar donativos

e fiéis “salvando suas almas”, evangelizando eletronicamente. Essa modernidade, apesar de sua mudança estrutural, mantém o seu cunho e sua razão sacralizada.

É no turismo religioso que se encontra a confluência ou o encontro da tradição e da modernidade na sua mais rica expressão popular de mercado, de mídia, de marketing em um espaço sagrado, entre promessas e atos de fé e ritos como os deambulatórios que são antiquíssimos. O Santuário de Frei Damião em Guarabira, Paraíba, surge como uma forte expressão, no interior, desse encontro do religioso, do moderno e do tradicional com o elemento mercadológico, em um campo em que o sagrado e o profano convivem de forma socialmente harmoniosa.

Um elemento que pode unificar o mundo rural religioso e os aparatos modernos, nesse conjunto ou campo religioso, está na figura do próprio ícone de devoção do homem do campo do Nordeste: Frei Damião. Porque, ao mesmo tempo em que este “ídolo atrai os devotos”, ele “é usado” como “atração turística em forma de ícone”. E a sua importância no meio rural nordestino e em especial para a região do Brejo Paraibano é tamanha que de acordo com monsenhor Nicodemos, ex-pároco da igreja de Nossa Senhora da Luz, em Guarabira, amigo de Frei Damião e idealizador do santuário, todas as casas dessa região, como expressão de carinho e devoção, ficaram de luto, colocando bandeirolas, pedaços de pano ou fitas pretas homenageando o capuchinho em sua morte.