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2 FREI DAMIÃO E O CATOLICISMO RURAL: A CONSTRUÇÃO DE UM

3.2 Santuário de Frei Damião e a sua importância como centro religioso de

Os rituais religiosos, as procissões, as romarias e até mesmo o próprio processo do turismo religioso conservam o teor da importância histórico-religiosa da cidade de Guarabira. Em seu sentido local, essa manutenção de tradições e importância se iniciou com a festa da padroeira da cidade, Nossa Senhora da Luz. E transcendendo o sentido local, e até o próprio valor simbólico religioso da devoção rural, o Santuário de Frei Damião surge como um poder mantenedor de tradições de um histórico de devoções populares da cultura rural nordestina. Um centro Figura 34: Devotos tocando a imagem de Frei Damião. Uma devota

passa a estola em sua enfermidade no pescoço.

religioso aonde se pode encontrar um pedaço de vasta tradição devocional de santos ao longo dos tempos.

Mesmo em tempos midiáticos, o tradicional e o devocional continuam tendo a sua importância como campo de atuação daqueles indivíduos cuja fé, e enquanto houver fé tradicional não apenas hereditária, mas de importância social, é o mantenedor de grande parte de suas vidas. O sentido, o fim, a “fortaleza”. Talvez este último, a “fortaleza”, seja o valor e função que os santuários cumprem com maior propriedade para com os fiéis. Lá, eles têm a oportunidade de se sentir seguros, recarregados e renovados na sua fé.

É nos santuários que os indivíduos buscam “conforto espiritual” ou psicológico para seus problemas. Curas para suas moléstias físicas e morais, como observamos na Figura 34, em que uma devota passa a estola da imagem de Frei Damião em seu pescoço doente.

Autodefinidos como necessitados e “pecadores”, os devotos buscam auxílio junto ao santo que acreditam possuir as virtudes de santidade que são incapazes de ter, mesmo que sejam apenas representações destes como, por exemplo, suas imagens e estátuas. Concordamos com Rosendahl (1996, p. 27) quando afirma: “O ser humano, ao aceitar a hierofania, experimenta um sentimento religioso em relação ao objeto sagrado. Não se trata de uma veneração do objeto enquanto tal, e sim da adoração de algo sagrado que ele contém e que os distingue dos demais”. Como podemos observar na Figura 34, de acordo com Rosendahl, o devoto contempla, toca e busca o poder transcendente, sobrenatural através da representação simbólica de objetos sagrados como, neste caso, a imagem ou a estátua de Frei Damião.

O santo de devoção é aquele indivíduo com o qual se sentem mais à vontade por ser este mais próximo de suas vidas mortais, porque viveu, sofreu e lutou e foi pessoa de carne e osso. Acreditam que através de sua fé em alguém com virtudes santíficas possam servir de intermediário com o todo-poderoso Deus, que por ser grande e inconcebível estaria muito distante de suas possibilidades para manter um diálogo mais próximo e pessoal.

Frei Damião surge então como um intermediador entre Deus e o homem religioso, “o devoto sertanejo, nordestino”. E com a vantagem de este pertencer a uma linhagem de santos nordestinos populares e imediatamente seus antecedentes: Ibiapina e Padre Cícero, cujo trabalho e atuação, apesar de serem distintos um do outro, possuem “a pertença nordestina”. A “pertença” independe de raça, credo, tonalidades de cores de pele e olhos e texturas capilares, regionalidades, nacionalidades e lógica racional, assim como o é a crendice popular. A fé popular é promovida por tal religiosidade; se a lógica e o racional fossem as notas mais importantes de tal religiosidade, Frei Damião estaria de fora dessa linhagem de santos

populares do Nordeste eleitos pelo próprio povo, por ele não ser brasileiro e muito menos nordestino, mas um gringo italiano.

Mas, a religiosidade popular elege seus santos e suas formas de culto, independentemente de oficialidades religiosas, e até de dogmas oficiais do cristianismo. Quando observamos as disposições de crença do povo cearense elegendo Frei Damião à reencarnação de Padre Cícero43, mesmo essa doutrina reencarnacionista não pertencendo à fé cristã, por outro lado, essa crença de que Frei Damião seria a reencarnação do Padre Cícero também não se encaixa na própria doutrina espírita, porque seria lógica e fisicamente impossível. Padre Cícero morreu em 1934 quando Frei Damião com 36 anos de idade já estava no Nordeste havia três anos. Mas, a crendice popular e sua curiosa religiosidade tida pela oficialidade da Igreja Católica por muito tempo como ignorância fanática a ser rechaçada e combatida, atualmente, em tempos midiáticos e consumistas é uma ferramenta importantíssima para essa mesma oficialidade. Porque se trata de um grande poder, o poder popular proveniente da crendice e da fé do povo simples que elege santos e erige monumentos e santuários para o contínuo empreendimento de sua fé.

A fé é sustentada pela crença na eficácia e competência divina do santo para a solução de seus problemas. Em meio às orações, “pedidos” e rezas, a promessa é típica, em especial, do romeiro devoto do meio rural. E é através destas que o romeiro pede principalmente a cura de doenças que em muitos casos é o último recurso, depois que médicos examinam e desenganam, como é o caso de Glécio Felismino dos Santos:

Eu tive um problema de um câncer, na face do rosto. E com muita fé em Frei Damião rezei muito, pedi muito. E graças a Deus, primeiramente Deus e segundo Frei Damião eu venci, né. Hoje eu to curado, praticamente curado. Continuo ainda fazendo o tratamento, mas graças a Deus e a Frei Damião fui curado.[...]

É, como se diz, o importante é a gente ter fé, acreditar, não baixar a cabeça, colocar a cabeça pra frente e pedir mesmo com fé que você consegue. [...]

No início foi feita uma operação pra tirar na face do rosto, em todo o rosto. Era por dentro, no caso interno. Aí fui fazer uma operação para retirar. Foi retirado, mas não todo. Daí gerou aquele problema todo que infeccionou.

Os médicos falaram, não falaram pra mim, falaram pra minha esposa, que não tinha mais cura. Pra eu voltar pra casa e eu esperar só a hora. Porque não tinha mais jeito, já tinha

43 Veja OLIVEIRA, Gildson. Frei Damião: o santo das missões. São Paulo: FTD, 1997. p. 79.

Figura 35: Glécio Felismino dos Santos, devoto de Frei Damião.

comprometido tudo, o rosto, o cérebro tudo já. Mas com muita fé, a gente rezando tudo, graças a Deus. [...]

Fiquei um período internado. Sai. Tive outro médico e através desse outro médico consegui realmente a ver o problema e comecei a fazer a quimioterapia. Graças a Deus não fiquei abatido. Fiz promessa e através da promessa consegui e hoje sou curado. [...]

Eles falaram que era um milagre. Porque não tinha explicação. Porque eu volto lá e ele olha pra mim e vê o que eu era pra o que eu tô hoje? Cheguei a pesar 49 quilos. (Informação verbal) 44.

Entre tantos casos diferentes de promessas feitas ao santo a cura de enfermidades é dos pedidos mais comuns. Casos como este de Glécio, como a cura do câncer, não são raros entre os acordos feitos entre o fiel e o santo deflagrados nas chamadas “promessas”. Neste caso, quando a doença chega ao extremo do desengano de médicos e o fiel recorre à promessa ao santo para a sua cura, quando esta é alcançada é tida como um milagre. Um milagre graças à intercessão do santo a quem fez o pedido. A esperança da cura levada pela fé no santo aciona um mecanismo de “barganha devocional” ou troca de favores entre o santo e o indivíduo. Mas também há casos em que esta “barganha devocional” é acionada no início do problema, sem deixá-lo para a última hora. Como no caso de Maria Elizete:

Agora em novembro vai fazer um ano que meu irmão adoeceu de repente. Câncer do estômago. (E mostra a foto do irmão) Ele fez a cirurgia, vai fazer um ano agora em novembro. Graças a Deus ele agora tá curado. Ele trabalha no estado, já voltou a trabalhar. Eu falei pro meu padim Frei Damião, se for pela vontade de Deus, se não for uma doença mandada por Deus que voltasse a saúde dele, né? Até o dia que Deus quiser. Aí que paguei uma promessa. Aí você vê que ele já tá trabalhando. Já come tudo. Se recuperou do dia pra noite. Foi por causa de quem? Frei... Primeiramente Jesus né, primeiramente Jesus. E segundo Frei Damião. Aí eu trousse (a foto do irmão) pra mostrar pra deixar aqui. Também o agradecimento (uma carta escrita) por uma graça alcançada, né. Minha fé é grande, viu? Minha fé é muito grande, minha fé! (Informação verbal) 45.

44 Glécio Felismino dos Santos, devoto de Frei Damião. Guarabira. Santuário de Frei Damião. Maio de 2011. 45 Maria Elizete, devota de Frei Damião. Guarabira. Santuário de Frei Damião. Maio de 2011.

Figura 36: Maria Elizete, devota de Frei Damião, mostra a foto de seu irmão. Fonte: Arquivo do autor, Guarabira. S.F.D. Maio de 2011.

Nesse tipo de promessa o acionamento da “barganha devocional” nasce no início do problema e não como no caso anterior do Glécio que foi utilizado como último recurso. Mas mesmo nesse caso de Maria Elizete, a cura, ou o milagre é atribuído ao santo intercessor. Mesmo que no processo da doença os tratamentos médicos sejam administrados em conjunto com a promessa do devoto, ou sua fé.

Os mecanismos de “barganha devocional” também acionam pedidos nem tanto urgentes, como nos dois casos supracitados. Muitas vezes é problema de ordem moral como a cura de vícios como a bebida, de ambição pessoal como pedir uma casa, um automóvel, um emprego, ou até problemas como dores ocasionadas pela velhice, são colocadas no mecanismo da “barganha devocional”. Basta apenas visitar o salão de ex-votos para ver a natureza de tais promessas.

Um exemplo de promessa não muito urgente é o caso de Osmário Medeiros:

Eu tenho um problema sério nesse joelho, eu quebrei o tendão há muitos anos. E agora recentemente voltou a doer bastante, né, e eu num tava em condição de andar nem em lugar plano. E resolvi vim, quer dizer já vinha sempre, eu vim com esse intuito de vir fazer a visita a Frei Damião, e subir a serra a pé. Cheguei aqui e graças a Deus e não senti nenhuma pequena dor na perna porque não tava podendo nem me movimentar. [...] A perna não podia nem dobrar e agora já to me movimentando. (Informação verbal)46.

Outro relato é da devota Maria José do Nascimento de 75 anos moradora de Macaparana em Pernambuco. Ela disse que através da água benta pelo próprio Frei Damião em uma das suas missões no Condado, interior de Pernambuco, o seu marido, doente do coração e com constantes inchaços nas pernas, ficou curado de tais inchaços ao passar a água nos pés. “Tudo o que eu peço a ele eu alcanço [...] eu sinto muita alegria quando venho aqui” (Informação verbal)47, diz Maria José.

46 Osmário da Costa, devoto de Frei Damião. Guarabira. Santuário de Frei Damião. Maio de 2011.

47 Maria José do Nascimento, devota de Frei Damião. Guarabira. Santuário de Frei Damião. Maio de 2011. Figura 37: Osmário da Costa, devoto de Frei Damião.

Fonte: Arquivo do autor, Guarabira. S.F.D. Maio de 2011.

Figura 38: Maria José do Nascimento, devota de Frei Damião. Fonte: Arquivo do autor, Guarabira. S.F.D. Maio de 2011.

Acima tivemos exemplos de devotos do Santuário de Frei Damião que relatam suas experiências devocionais através de promessas, buscas e depoimentos de curas que atribuem a Frei Damião. O que move essas buscas dos devotos? O que o santuário pode oferecer? O que recebem é realmente o que esperavam receber? O que dão em troca dessa recompensa? E o que recebem é realmente a recompensa almejada ou são compensadores que recebem? E o que são recompensas e compensadores no universo religioso de um santuário?

Os santuários fornecem meios e mecanismos para colocar a fé dos indivíduos em ação e através desse acionamento, o seu fortalecimento. E, também, é o lugar sagrado onde o mito se renova e se fortalece. Nos santuários os indivíduos buscam “compensadores” e “recompensas” 48.