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Aqui comento o conceito de perverseness que, segundo os narradores de Poe, não teria sido encontrado pelos frenólogos e filósofos. Baseado no artigo de Acosta (2018), abordo os inícios da frenologia e a relação do escritor com a pseudociência.

A frenologia, cujo auge foi na década de 1830 (MACEDO, 2017), postulava que as boças (os caroços do crânio) pudessem refletir cada parte do cérebro que designava as faculdades mentais do indivíduo. “É como se fosse possível, apenas apalpando o crânio, compreender as qualidades e o caráter da pessoa.” (ACOSTA 2018, p.13)

O conto “The Imp of the Perverse” parece ter um olhar crítico à frenologia. Julio Cortázar (1956) já observava que “Poe, como quase todos em seu tempo aceitava em geral os princípios da frenologia; aqui, entretanto, parece advertir que se trata de uma pseudociência e não o oculta” (CORTÁZAR, 1956, p. 890, tradução minha55). Almeida (2012) vai mais além e afirma que o narrador de The Imp of the Perverse se porta como um “inimigo acirrado da frenologia” (ALMEIDA, 2012, p. 196).

Entretanto, o autor escreveu a resenha de um livro sobre frenologia para a Southern Literary Messenger, no dia 3 de março de 1836, intitulado Phrenology, and the Moral Influence of Phrenology com autoria de Mrs. L. Miles, da Filadélfia. Ele começa o texto dizendo que “a frenologia não é mais motivo de riso” (POE, 1836, p. 286, tradução minha56). Nessa resenha, podemos observar que ele possui um considerável conhecimento da história da frenologia, dos caminhos que ela percorreu desde a Europa às Américas e recomenda que “um de seus usos mais salutares é para o autoexame e autoconhecimento” (POE, 1836, p. 286, tradução minha57). Poe não apenas mostra que conhecia a terminologia frenológica ao falar de suas faculdades,

55 No original: “Poe, como casi todos en su tiempo aceptaba en general los principios de la frenología; aquí, sin embargo, parece advertir que se trata de una seudociencia y no lo oculta”.

56 No original: “phrenology is no longer to be laughed at”.

como também aproveita a oportunidade para comentar o termo Combativeness (POE, 1836, p. 286, tradução minha58), impulso que seria comparado, anos depois com o seu impulso em The Imp of the Perverse:

No capítulo de Combatividade, encontramo-nos com a observação muito sensata e necessária de que não devemos considerar a posse de propensões particulares e instintivas, como que nos absolvendo de responsabilidade na indulgência de ações culpáveis. Pelo contrário, é a perversão de nossas faculdades que causa o maior sofrimento que padecemos e ao qual (tendo o livre exercício da razão) somos responsáveis perante Deus.

Nesse fragmento da resenha, podemos ver o Poe crítico, dez anos antes de escrever os “contos perversos”, comentando que é a perversão dos impulsos que leva o indivíduo a padecer dos sofrimentos dos quais é responsável perante Deus. Tem-se a impressão de que esse texto prenuncia um espaço no qual o autor desenvolveria seu conceito de perverseness em sua literatura.

É importante compreendermos que a resenha tinha o propósito de divulgar um livro na revista em que o autor trabalhava. Esse texto foi escrito no auge da frenologia. Já seus contos foram escritos quase dez anos depois, quando essa pseudociência começa a cair em desuso. Outro elemento que corrobora com o descrédito que Poe dá a frenologia vem das edições do conto Murders in the Rue Morgue. O primeiro parágrafo do conto começava abordando um impulso frenológico de Análise, quando da primeira publicação do conto, em 1841. Já na versão de Tales 1845, este parágrafo é suprimido, assim como nas seguintes versões e traduções do conto. De qualquer forma, o narrador de The Imp of the Perverse demonstra ter não apenas bastante conhecimento do assunto, mas a perspicácia de apontar as suas limitações, a ponto de criar um impulso que fosse além da capacidade “científica” da época.

O dicionário on-line Webster’s 1828 define perverseness como: “Disposition to cross or vex; untractableness; crossness of temper; a disposition uncomplying, unaccommodating or acting in opposition to what is proper or what is desired by others [...] Perversion. [Not used.]” (PERVERSENESS, 1828, s.p.). Traduzindo para o português, significa a) disposição para opor- se ou para perturbar; b) intratabilidade; c) temperamento contraditório; d) disposição em discordar, agir em oposição ao que é apropriado ou desejado pelos outros. Logo após,

58 No original: “In the chapter on Combativeness, we meet with the very sensible and necessary observation that we must not consider the possession of particular and instinctive propensities, as acquitting us of responsibility in the indulgence of culpable actions. On the contrary it is the perversion of our faculties which causes the greatest misery we endure, and for which (having the free exercise of reason) we are accountable to God”.

curiosamente temos perversion (não usado). O que significa que, embora considerado como ‘não usado’, “perversão” também é sinônimo de perverseness.

Doron (2011) afirma que os conceitos de perverse, perversion e perversité estavam em processo de progressiva estabilização no âmbito médico no período em que Poe escrevia estes dois contos (DORON, 2011, p. 13). Além disso, é importante lembrarmos que o conceito de “perversão” adquiriu uma forte associação com as perversões sexuais a partir dos estudos de Freud sobre a sexualidade. Todavia, deve-se levar em conta que os seus textos foram publicados cinquenta anos antes das primeiras publicações de Freud. Portanto, é necessário desassociar “perversão” de “perversão sexual”, pois os textos de Poe, assim como as traduções de Baudelaire, foram escritos muito tempo antes.

Corrêa (2006), autor de “Perversão: trajetória de um conceito”, traz algumas considerações sobre os primórdios do conceito “perversão” e sua ligação inicial com o erro. Segundo seus estudos (CORRÊA, 2006, p. 85):

Em sua origem, a palavra perversão está carregada de juízo de valor. O substantivo perverso já nomeia adjetivando, pois este Verso é de verter, verter para o caminho errado. Sair do que é direito e bom. Literalmente, o perverso é contrário aos padrões aceitos, ou, o que é ainda mais forte, contrário à direção do juízo, ou à lei.

Pode-se dizer que, a despeito da associação de “perversão” com a sexualidade nos textos psicanalíticos, o termo “perversão” está bem próximo do que Poe está propondo com perverseness.

Não obstante, não há razão para que nos furtemos da visão primária da psicanálise em relação à perversão. Em seu texto de 1905 “Três ensaios sobre a sexualidade”, Sigmund Freud diz que a união dos genitais no ato sexual seria a descrição de um alvo sexual normal. Mas os desvios que ocorrem durante o ato como o beijo na boca, “não pertencem ao aparelho sexual, mas constituem a entrada do tubo digestivo. Aí estão, portanto, fatores que permitem ligar as perversões à vida social normal” (FREUD, 1996, p. 142). Basicamente, as perversões sexuais eram entendidas como “(a) transgressões anatômicas quanto à região do corpo destinadas à união sexual e (b) demoras nas relações intermediárias com o objeto sexual” (FREUD, 1996, p. 142). Portanto, mesmo nos primórdios da psicanálise, as perversões eram vistas como desvios, transgressões da normalidade da vida sexual.

Além de perverseness, há a seguinte definição para perverse: “1. [...] distorted from the right; 2. Obstinate in the wrong [...]” (PERVERSE, 1828, s.p.). Em português, significa distorcido do que é certo – obstinado no que é errado/ruim/mal. Ou seja, está-se lidando com um conceito limítrofe entre “fazer o mal” e “fazer algo errado”, pois é possível associar ambas

as coisas à palavra wrong. Sobre essa relação polissêmica da palavra, Acosta (2018, p. 18-19) diz que:

Ao traduzir por “perversidade”, perverseness se aproxima muito mais do aspecto maligno do que do aspecto “errôneo”. Soa como se estivesse sendo incorporada uma acepção mais próxima do vocábulo evil do que de wrong. É possível pensar que qualquer coisa que seja evil será inevitavelmente wrong, mas nem tudo que é wrong deverá ser, obrigatoriamente, evil. Parece-nos que a palavra em inglês está muito mais ligada ao delito do que à maldade em si.

A respeito da tradução de perverseness para as línguas latinas, Julio Cortázar compartilha uma importante observação em suas notas de tradução desse conto (CORTÁZAR, 1956, p. 890, tradução minha59):

Acertadamente Emile Lauvrière alerta o leitor sobre a diferença de sentido que a palavra perverse tem para um inglês e um francês. A distinção se aplica igualmente em nosso caso. Perverseness, perversidade, não é “grande maldade ou corrupção” (ainda que possa sê-lo), mas – citamos Lauvrière – “o sentido de obstinação em fazer algo que não se quer e que não se deve fazer”. Por seu lado, Poe o explica no início do relato; na tradução, entretanto, subsiste o inconveniente de não dispor de um termo mais preciso.

Essa nota de Cortázar demonstra a dificuldade de encontrar uma tradução exata nas línguas latinas para perverseness. Isto explica o porquê de os tradutores brasileiros mais contemporâneos começarem a evitar a sua tradução por “perversidade”. Acredito que, para eludir uma interpretação ligada à maldade, os tradutores empregaram “obstinação” e “impulsividade”. Ao traduzi-lo por “obstinação”, Guilherme da Silva Braga (POE, 2009) evita associar o impulso à maldade, mas afasta-o do aspecto errôneo contido em perverseness, visto que, como lembra Cortázar, trata-se da “obstinação em fazer algo que não se quer ou que não se deve fazer”. Pode-se, dessa forma, dizer que essa tradução contempla apenas parte do significado, mas não o todo. Já a “impulsividade”, de Rodrigo Breunig (POE, 2011), ainda que evite o aspecto de maldade contido em “perversidade”, não liga o impulso ao erro, mas a algo impulsivo. A “impulsividade” parece estar mais ligada à pressa, à ansiedade de fazer algo sem medir as consequências. Entretanto, o conceito de Poe parece ser algo pensado. O sujeito sabe que não é certo fazê-lo, mas mesmo assim o faz. Para Squallice et al (2011), “a impulsividade, em sentido estrito, consiste no agir rápido e irreflexivo, atento aos ganhos presentes, sem prestar

59 No original: “Acertadamente previene Emile Lauvrière al lector sobre la diferencia del sentido que la palabra perverse tiene para un inglés y un francés. El distingo se aplica igualmente en nuestro caso. Perverseness, perversidad, no es gran maldad o corrupción (aunque pueda serlo), sino – citamos a Lauvrière– 'el sentido de encarnizamiento en hacer lo que no se quisiera y no se debiera hacer’. Por su parte, Poe lo explica al comienzo del relato; en la traducción, empero, subsiste el inconveniente de no disponer de un término más preciso”.

atenção nas consequências a médio e longo prazo” (SQUILLACE; JANEIRO; SCHMIDT, 2011, p. 10, tradução minha60).

De qualquer maneira, diante dessa complexa tarefa de traduzir esse conceito, acredito que “obstinação” e “impulsividade” são soluções tradutórias interessantes. Elas demonstram que os tradutores contemporâneos não apenas buscam formas de traduzir o texto de Poe que se afastem das opções que perduram desde os tempos de Baudelaire, mas também que esses tradutores estão refletindo as considerações feitas pelos tradutores que os precederam. Dito em outras palavras, se eles não leram as notas de Cortázar e as observações de Lauvrière, por exemplo, pode-se, ao menos, pensar que [eles] chegaram às mesmas conclusões.

Também é importante levar em conta, pelo menos no caso do conto “The Imp of the Perverse”, que o conceito de perverseness é explicitado de maneira minuciosa pelo narrador durante a primeira parte do conto, auxiliando o leitor a compreendê-lo.

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