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O tradutor e teórico da tradução Antoine Berman, na obra “A Tradução e a Letra ou O Albergue do Longínquo (2007) propõe dois conceitos fundamentais para entender como se desenvolveu a tradução literária desde a antiguidade: a “tradução etnocêntrica” e a “tradução hipertextual”. Para ele, são conceitos complementares, pois a tradução etnocêntrica seria a “que traz tudo à sua própria cultura, às suas normas e valores, e considera o que se encontra fora dela – o estrangeiro – como negativo ou, no máximo, bom para ser anexado, adaptado, para aumentar a riqueza desta cultura” (BERMAN, 2007, p. 28). O conceito de “tradução hipertextual” se desenvolve a partir de um texto gerado por imitação, paródia, pastiche, adaptação, plágio, ou qualquer transformação formal a partir de um [outro] texto já existente. Ambos os conceitos são complementares, pois “a tradução etnocêntrica é necessariamente hipertextual, e a tradução hipertextual, necessariamente etnocêntrica” (Idem, 2007, p. 28).

O autor afirma que o nascimento da “tradução etnocêntrica” ocorre em Roma. Para o autor, a cultura romana é, em si, uma “cultura-da-tradução” (no caso, uma “latinização da cultura grega”). A “Grécia cativa” pode ter cativado Roma, mas muito de sua cultura foi adaptada para, justamente, engrandecer a cultura romana. Para Berman (2007, p. 30):

Após o período em que os autores escrevem em grego, vem aquele no qual todo corpus de textos gregos é traduzido [...] A tradução se efetua pela anexação sistemática dos textos, das formas, dos termos gregos, o todo sendo latinizado e, de certa maneira, tornando-se irreconhecível por esta mescla. É uma das formas do sincretismo da Antiguidade tardia.

O sincretismo é justamente uma característica da tradução etnocêntrica e hipertextual. A condição para que a hipertextualidade aconteça é através da primazia do “sentido” em detrimento da “letra”, o que ele chama de “captação platônica de sentido”. Esse modus operandi, que nasce em tempos pagãos e tem em Cícero um de seus propagadores, estende-se ainda durante o período em que Roma se cristianiza, graças à tradução da Vulgata de São Jerônimo, que visava “non uerbum e uerbo, sed sensum exprimere de sensu, [não traduzir uma palavra a partir de outra palavra, mas o sentido a partir de sentido]” (BERMAN, 2007, p.31). Fugia-se do fantasma da intraduzibilidade universal, pois todas as línguas eram uma só, visto que nelas reina o logos. O sentido do texto reina em detrimento da letra (o significante), como uma mera casca a ser descartada para que haja possibilidade do traduzir. “A fidelidade ao sentido é obrigatoriamente uma infidelidade à letra.” (BERMAN, 2007, p. 32). Esse ponto de vista mostra claramente que, nesse momento, na tradução subjaz um objetivo claro: aqui não se traduz “por”, mas se traduz “para”.

Berman (2007) ainda explora dois princípios da “tradução etnocêntrica”: a) deve-se traduzir a obra estrangeira de forma que o leitor não “sinta” a tradução; b) deve-se traduzir de modo a que pareça que é assim que o autor teria dito se escrevesse na língua em que foi traduzido.

Além do conceito de “tradução etnocêntrica e hipertextual”, Berman (2007) aborda um outro tipo de tradução que, para ele, é a que se abre ao estrangeiro: a “tradução literal”. Primeiramente, não se pode entender o conceito bermaniano de “tradução literal” como uma tradução “palavra por palavra”, ou, como dizem os espanhóis, traducción servil. A “tradução literal” é o momento em que se opta por refletir sobre a hierarquia proposta pela captação platônica de sentido, em que se dá primazia ao universal (o sentido) em detrimento do particular (a letra). Desse modo, a “tradução literal” busca abrir-se mais ao estrangeiro, buscar um retorno à sua letra como seu corpo, sua “casca terrestre”40.A busca pela literalidade no texto traduzido pode, por certo, recair sobre algum tipo de neologismo, e isso dependerá do texto que se traduz. De qualquer forma, essa literalidade do traduzir “não consiste somente em violentar a sintaxe ou em neogizá-la: ela também mantém, no texto da tradução, a obscuridade inerente ao original” (BERMAN, 2007, p. 101). Eis que a “tradução literal” tende a ir ao particular, ao estrangeiro, ao outro, longe do âmbito doméstico e confortável que a “tradução etnocêntrica”

40 No texto original (BERMAN, 1999), está descrito como “gangue terrestre”: e gangue, que em português há o sinônimo “ganga”, pode ser invólucro, como um tecido, talvez algo menos frágil que a “casca”, proposta pela tradução de 2007.

propõe. Berman (2007) utiliza o exemplo da tradução de provérbios, pois os provérbios de uma língua têm quase sempre equivalentes na outra língua. O autor ilustra com um provérbio citado por Roa Bastos em espanhol: a cada día basta su pena, a cada año su daño. Ele propõe traduzi- lo ao francês da seguinte forma: À chaque jour suffit sa peine, à chaque année sa déveine. A interpretação do Berman (2007, p. 16) para isso é a seguinte:

[Esta seria] uma tradução ao mesmo tempo literal e livre: [...] O jogo duplo aliterativo do original, día/pena, año/daño desaparece, mas para ser substituído por uma outra aliteração peine/déveine. Não se trata, pois, de uma tradução palavra por palavra ‘servil’, mas da estrutura aliterativa do provérbio original que reaparece sob outra forma. Tal me parece ser o trabalho sobre a letra: nem calco, nem (problemática) reprodução, mas atenção voltada para o jogo dos significantes.

Berman (2007) coloca-se fora do quadro conceitual fornecido pela dupla teoria/prática. Para ele, o que é proposto em seu livro, “não se trata de teoria de nenhuma espécie. Mas sim de reflexão” (BERMAN, 2007, p.17). Ele propõe que se substitua a dupla teoria/prática pela dupla experiência/reflexão, compreendendo que a tradução é uma experiência que é capaz de se abrir e se (re)encontrar na reflexão.

Portanto, o trabalho sobre a letra, ou seja, a “tradução literal” é um trabalho reflexivo. Assim como o é a retradução. Para o Berman (2007, p. 97-98):

A tradução literal é obrigatoriamente uma retradução e vice-versa. [...] Tudo acontece como se, face ao original e à sua língua, o primeiro movimento fosse de anexação, e o segundo (a retradução) de invasão da língua materna pela língua estrangeira, A literalidade e a retradução são portanto sinais de uma relação amadurecida com a língua materna; amadurecida significando: capaz de aceitar, buscar a ‘comoção’ da língua estrangeira.

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