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Para que se possa fazer uma reflexão sobre a literalidade das retraduções selecionadas para o presente trabalho, utilizarei o que Berman (2007) propõe como um sistema de deformações (da letra) dos textos: as “tendências deformadoras”. Elas fazem parte do que ele chama de “analítica da tradução”. Para o autor, esta tendência de deformação textual “concerne em primeiro lugar à tradução etnocêntrica e hipertextual, onde o jogo de forças deformadoras se exerce livremente” (BERMAN, 2007, p. 45). Essas tendências deformadoras serão usadas como ferramentas para as análises do capítulo 5.

Primeiramente, devemos compreender que esse sistema analítico não nos liberta das deformações. Nas palavras de Berman (2007, p. 45):

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Retradução

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Primeira Tradução Revisão Adaptação

Todo tradutor está exposto a esse jogo de forças. Mais que isso: elas fazem parte do seu ser tradutor e determinam, a priori, seu desejo de traduzir. É ilusório pensar que poderia se desfazer dessas forças tomando simplesmente consciência delas. Apenas uma ‘análise de sua atividade permite neutralizá-las. É apenas ao submeter-se a ‘controles’ (no sentido psicanalítico) que os tradutores podem esperar libertar-se parcialmente desse sistema de deformação.

Da mesma forma, devemos ter em mente que elas não são fenômenos isolados. Cada tendência deformadora se ajusta a outras tendências como uma teia de comunicações. Uma exerce sua força de tal forma a poder desencadear outras tendências a partir dela. Vejamos as tendências propostas por ele:

a) Racionalização: trata-se de uma recomposição de frases e sequências frasais de maneira a arrumá-las conforme uma certa ideia de ordem de um discurso. Ela deforma o original por buscar linearizar suas estruturas sintáticas. Faz o original passar do concreto ao abstrato. Por exemplo, é a racionalização que faz com que o tradutor tenda a traduzir os verbos por substantivos. Também se aponta como parte da racionalização as alterações de sinais de pontuação.

b) Clarificação: um corolário da racionalização, mas que concerne particularmente à “clareza” sensível das palavras e dos sentidos. O autor usa como exemplo uma frase de Meschonnic (1973, p. 317, apud BERMAN, 2007, p.50) sobre a tradução de Dostoievski: “Para restituir as sugestões da frase russa, é necessário muitas vezes completá-la.”

A clarificação é inerente à tradução na medida em que todo ato de traduzir busca explicitar. “Num sentido negativo, ela visa a tornar claro o que não é e não quer ser no original” (BERMAN, 2007, p.50);

c) Alongamento: comum desde os primórdios dos Estudos de Tradução, pois toda tradução é tendencialmente mais longa do que o original. Consequência (em partes) das duas tendências anteriores. O alongamento tende a desdobrar o que está “dobrado” no original);

d) Enobrecimento: ponto culminante da tradução como captação platônica. É uma tendência muito corrente nas traduções clássicas: as famosas belles infidèles. Consiste em tornar as traduções “mais belas” (formalmente) que o original. “O enobrecimento é, portanto, somente uma reescritura, um exercício de estilo a partir (às custas) do original” (BERMAN, 2007, p.53);

e) Vulgarização*: esta tendência não está listada em separado no texto de Berman. Mas achamos pertinente marcá-la no presente trabalho por ser mencionada ao final da

explicação da tendência de enobrecimento, pois, justamente, trata-se do seu efeito oposto. Quando se vulgariza alguma passagem do texto em que se poderia dizer, digamos, “de fala popular”. Uma “pseudo-gíria” ou um “pseudo-regionalismo” que vulgariza o texto e trai a oralidade rural ou o código dos falares urbanos;

f) Empobrecimento qualitativo: substituição de termos, expressões, modos de dizer do original por expressões que não têm nem sua riqueza sonora, nem sua riqueza significante, ou icônica (palavras que “criam imagens”).Prosa e poesia, cada uma ao seu modo, produzem o que se pode chamar de superfícies de iconicidade. Algo que, parece- me, se assemelha com o conceito de Erza Pound (1954, apud Vizioli, 1983, p. 112), sobre “melopeia” (musicalidade do poema) e “fanopeia” (imagens que o poema suscita); g) Empobrecimento quantitativo: remete ao desperdício lexical. Quando, para um

significado, haja uma multiplicidade de significantes. O autor dá o exemplo da tradução francesa de Roberto Arlt, em que a tradução emprega apenas um significante (visage) para vários que aparecem no original, como semblante, rostro e cara.

Poderíamos pensar numa variação dessa tendência que fosse justamente o seu oposto. Numa situação em que, na falta de uma palavra exata para traduzir o original, se recorre a diferentes tipos para amenizar essa falta É o exemplo do trabalho de Pandime Barros (2014) sobre as diferentes maneiras da tradução de “malandro” para a versão francesa do livro “Capitães de Areia” de Jorge Amado;

h) Homogeneização: unifica em todos os planos o tecido do original. (resultante de todas as tendências anteriores). “o tradutor tem a tendência a homogeneizar o que é da ordem do diverso, mesmo do disparate” (BERMAN, 2007, p. 55).

Aqui poderíamos pensar, como exemplo dessa tendência, no Satíricon de Petrônio49. A tradução de 2016 (traduzida por Alessandro Zir) tem muito mais palavrões e do que a versão de 2005 (traduzida por Alex Marins). Tendo em mente que o texto lida com a sátira e vulgaridade de personagens decadentes e de nobres indignos de tal alcunha (como é o caso de Trimalquião e seu banquete), é possível que a retradução mais recente tenha tido a intenção de trazer-nos a potência da vulgaridade satírica do original; i) Destruição dos ritmos: embora a tradução tenha certa dificuldade de quebrar a tensão

rítmica da prosa, Berman acha que elementos como a pontuação podem afetá-la consideravelmente. Berman (2007, p. 56) Dá o exemplo de uma tradução de Willian

49 Publicado pela Editora Martins Claret, São Paulo (tradução de Alex Martins), 2005 e pela L&PM, Porto Alegre, (tradução de Alessandro Zir), 2016.

Faulkner (não há detalhes da edição): enquanto o original conta com apenas quatro sinais de pontuação, a tradução apresenta 22, dentre os quais 18 são vírgulas;

j) Destruição das redes significantes subjacentes: toda obra comporta um texto “subjacente”, onde certos significantes chave se correspondem e se encadeiam, formam redes sob a “superfície” do texto: o subtexto que constitui uma das faces da rítmica e da significância da obra. Esse é um caso bastante comum na tradução poética. O que não quer dizer que não possa ocorrer na prosa também. A peça teatral The Importance of Being Earnest, A Trivial Comedy for Serious People de Oscar Wilde é um ótimo exemplo: o personagem principal é chamado de Ernest, o que faz com que a comicidade da peça gire em torno desse jogo de palavra Earnest/Ernest. A palavra earnest tem um significado cuja tradução repousaria entre “sério” e “sincero”. Ao traduzir o nome simplesmente por “Ernesto”, perde-se a rede de significantes que subjaz o nome da personagem.;

k) Destruição dos sistematismos textuais: os sistematismos se referem às construções frasais. Quando se deforma a estrutura de uma frase utilizando como recurso alguma oração subordinada. A racionalização, clarificação e alongamento tendem a destruir esse sistema justamente por introduzirem elementos na frase que não estão no original. Aqui é um caso claro de que essas tendências se relacionam como um “efeito dominó”. l) Destruição (ou a exotização) das redes de linguagens vernaculares: o projeto plurilíngue da prosa inclui obrigatoriamente uma pluralidade de elementos vernaculares. O apagamento dos vernaculares é um grave atentado à textualidade dessas obras. Sobretudo quando a prosa tem como objetivo explícito a retomada da oralidade vernacular, caso das literaturas latino-americanas do século XX.

Tradicionalmente, existem duas maneiras de conservar os vernaculares exotizando-os:

- Usa-se a expressão em itálico. A tradução de “Trilogia Suja de Havana”, de Pedro Juan Gutierrez (2017), traduzido por Ari Roitman e Paulina Wacht deixa em itálico compadre, mami, e papi, típico dos falares cubanos, tendo os dois últimos uma conotação não só carinhosa, mas sexual;

- Usa-se um vernáculo localizado. A tradução do texto de Poe, “O escaravelho de Ouro”, de Rodrigo Breunig (In POE, 2011) localiza o falar do negro que acompanha o personagem principal na aventura. O negro várias vezes chama o homem de “sinhô” (sem itálico).

Para Berman, “Tal exotização, que transpõe o estrangeiro de fora pelo de dentro, só consegue ridicularizar o original” (BERMAN, 2007, p.59).

m) Destruição das locuções e idiotismos: refere-se às locuções e fraseologias típicas de uma língua. Se se substitui uma locução ou fraseologia por sua “equivalente” em grande escala, para Berman (2007, p.60) isso “levaria à absurdidade [...]. As equivalências de uma locução ou de um provérbio não os substituem”. Vemos esse dilema de perto na nota explicativa de Baudelaire para a expressão death by visitation of God, no conto The Imp of the Perverse. Alguns tradutores apenas traduzem palavra por palavra, sem indicar seu significado no texto. Outros simplesmente o traduzem pelo seu equivalente em português: “morte natural”. A questão é que se perde o duplo sentido irônico do texto inteiro ao falar que o impulso que faz o narrador cometer seu delito escapou à frenologia justamente por estes ditarem as tendências do homem de acordo com os ditames divinos, e não pela observação a posteriori do comportamento humano. Retomarei esse assunto no capítulo de análise.

n) Apagamento das superposições de línguas: a superposição das línguas é sempre ameaçada pela tradução. Aqui temos dois tipos:

- Dialetos coexistem com uma coiné (é o caso de Guimarães Rosa em que há o português padrão e os falares do nordeste);

- Vários coinés coexistem (o autor dá o exemplo de Roa Bastos, em que coexistem no texto o Espanhol, o Quechua e o Guarani. O caso mais extremo desse apagamento certamente fica a cargo de alguma tradução do Finnegans Wake de James Joice, em que várias línguas européias coexistem no texto). No caso dos contos analisados, há mais de uma língua usada por Poe: algumas expressões latinas, em alemão e francês aparecem nos dois contos. Muitos tradutores, inclusive Baudelaire, apagaram essas diferenças entre as línguas dentro dos contos simplesmente traduzindo tudo para a língua de chegada; o que acaba achatando as camadas que o autor propositalmente colocou no texto. Veremos melhor no capítulo de análise.

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