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O ESPAÇO E O TEMPO RECRIAR O PASSADO A PENSAR NO

2. A localização temporal entre a precisão e a referência vaga

2.1 A novela dos antepassados duas gerações, o mesmo tirano

2.2.1 Frequência: discursos iterativo e singulativo

É assim que, sobre a juventude das meninas da Casa, apenas se narram, para ilustrar a diversidade de temperamentos e comportamentos das duas irmãs, e recorrendo ao discurso iterativo, as festas da Casa:

Quando havia uma festa, Maria do Lado transferia para a Casa a atenção e os cuidados que Virita dirigia apenas para si, disse Horária. Mandava limpar vidros e cristais, polir metais e pratas [...]. Em tudo isso punha uma energia e um brio que depois não encontrava mais dentro de si quando a festa verdadeiramente começava

Virita fazia exactamente o contrário, disse Ercília. Ocupava-se apenas em ser olhada, o que conseguia sem dificuldade [...]560

Não surpreende, portanto, o que, em discurso singulativo, se conta, logo de seguida, sobre a primeira festa a que Filipe compareceu:

"A noite em que Filipe chegou não foi diferente, disse Januário. Como se tudo já estivesse de antemão previsto, ele escolheu-a entre todas e foi quase sempre o seu par"561

Já no capítulo 11, por exemplo, a humilhação da vida de casada de Maria do Lado, é referida através do relato, em discurso iterativo, dos sonhos que "durante muito tempo (...) lhe encheram as noites de angústia"562. No segundo desses sonhos, ela vestia-

se com a roupa de Virita, era Virita e, revestida dessa identidade, fazia amor com Filipe. Quanto à vida da irmã, anuncia-se, em prolepse, que "Virita não casou nunca", apesar de ter tido dois pretendentes, não se importando "de estragar a vida da irmã, do mesmo modo que acreditava que ela estragou a sua."

"Para reconstituir a verdade dos factos, mesmo dos que não foram conhecidos (...)"564, os narradores contam a tentativa frustrada de suicídio efectuada por Virita,

atirando-se da janela, na noite do casamento da irmã, e utilizam o discurso iterativo para

559 C. C. C. pp. 78-79 560 C. C. C. p. 82 561 C. C. C. , p. 83 562 C. C. C. , p. 105 563 C. C. C, , p. 106 564 C. C. C. , p. 106

resumirem a sua vida futura, pelo menos até ao momento em que, " de repente" se lembrou de ter lições de francês com o cunhado565 , estratégia de aproximação a que

recorreu depois de, através da sua beleza e arranjo pessoal, lhe ter feito um cerco de sedução com que a irmã não podia competir:

A partir daí, a sua vida decorreu sem acidentes visíveis, disse Carmo. Tal como sempre fizera, punha o maior cuidado em enfeitar-se, e tornou-se ainda mais

bonita [...]566

Por seu lado, a narrativa de um incidente ocorrido durante um almoço é, no entanto, exemplificativa do clima que habitualmente se vivia na Casa, motivado pelo ódio que Duarte Augusto sentia por Filipe e que se reflectia na relação conflituosa do sogro com o genro, nomeadamente acerca das línguas de cada um deles :

Houve aliás a esse propósito um incidente, num almoço em que apareceram narcejas perfiladas nas travessas e Filipe, servindo-se generosamente e gabando- Ihes o aroma, lhes chamou, mais uma vez, bécassines, disse Januário.

Duarte Augusto partiu logo para a discussão sobre a maior ou menor propriedade com que as duas línguas nomeavam essas aves. Filipe defendeu placidamente o francês [... ]

O advérbio "placidamente", colocado de forma estratégica, anuncia a atitude que Filipe manterá ao longo da discussão, falando num tom neutro, "distanciado", argumentando objectivamente que "não achava particularmente imaginativa a aproxima- ção [da palavra galinhola]) com a galinha" e optando por sorrir quando "Duarte Augusto refutou de novo, subindo de tom e fazendo questão de sublinhar que era forçado a desdizê-lo, contra sua vontade"

Este incidente, para além de funcionar como exemplo da vivência conturbada da Casa, por essa altura, contribui para caracterizar os dois homens, por oposição, salientando a superioridade do mais novo, em relação à atitude descontrolada do mais velho o qual, subindo de tom "até atingir o registo da paixão e da ira", entorna a travessa na mesa, exigindo que lhe sirvam o café na varanda.

Foi exactamente na varanda, frente ao café, que Duarte Augusto teve a ideia de que Filipe era maçon ou jacobino, facto que lhe provocou tal emoção que "ficou vários dias sem fala", só ao fim de uma semana reunindo condições para ir procurar, no sótão, entre os haveres com que Filipe chegou à Vila, a confirmação da sua suspeita.

565 Cf. no capítulo 18, a narrativa das lições de francês que constituem também um bom exemplo de discurso iterativo

566 C. C. C. ,p. 110 567 C. C. C. ,pp. 113-114

2.2.2 Duração: elipses e sumários

No caso atrás referido, estamos perante uma elipse, mas, por vezes, também se recorre ao sumário como meio de acelerar o ritmo narrativo. É o que se passa com o relato do período de um mês decorrido entre a entrevista de Filipe com Duarte Augusto e a data do seu casamento com a mulher cuja mão não pedira, o qual é condensado numa página, assim introduzida:

E de repente era a data marcada, disse Januário.

O tempo intermédio passou tumultuoso e confuso, para uns com a velocidade dos sonhos, para outros com a lentidão dos pesadelos.

Como se vê, também nesta história, o tempo é, por vezes, redimensionado na sua duração, através das vivências psicológicas das personagens.

Outro exemplo de elipse, desta vez relativo a um período de dezoito anos, é a que apaga da narração os factos ocorridos entre 1849, ano da morte de Filipe, e a viagem de Virita a Vichy, em 1867, apenas se referindo, acerca desse período, as disputas das duas irmãs sobre o direito ao luto pelo desaparecido.

2.2.3 Ordem : anacronias

Se a análise que temos vindo a fazer até ao momento, nos permite classificar a história dos antepassados como uma novela, há, no entanto, um aspecto em que ela se afasta da novela canónica569. De facto, o tempo não é linear, havendo um frequente

recurso a anacronias, sobretudo analepses, embora as prolepses também manifestem a sua presença.

As analepses não surgem apenas para introduzir os factos ocorridos no início do século XIX, também são frequentemente usadas na narração do sucedido depois de

1830. Recorre-se a uma interessante estratégia narrativa, muito de acordo com a situação enunciativa, uma vez que, tratando-se de uma narrativa oral e, para mais, da responsabilidade de vários narradores (os espectros que contam histórias, conversando), os factos vão surgindo menos organizadamente e, por vezes, é necessário acrescentar informação importante para o prosseguimento da história. É essa a necessidade sentida por Januário, no final do capítulo 8 quando, depois de ter feito referência à entrevista entre Filipe e Duarte Augusto, algum tempo depois da festa na Casa da Cabeça de Cavalo, juntando à necessidade o efeito de suspense, anuncia o assunto do capítulo

s C. C. C. p. 101

9 Cf. REIS, Carlos e LOPES, Ana Cristina, Dicionário de Narratologia, Coimbra, Almedina, 1987, p. 295: "(••) na novela, o tempo representa-se quase sempre de forma linear, sem desvios bruscos nem anacronias, assim acompanhando a relativa simplicidade da acção"

seguinte: "Antes, porém, de contar o que se passou na entrevista teremos de falar de Duarte Augusto."

Nesse mesmo capítulo 8, Carmo aperceber-se-á ainda de outra omissão, que será remediada, em seguida, através da narração, em analepse, da vida e morte de Umbelina:

Mas saltámos sobre a sua mulher Umbelina, sem falar nela, disse Carmo, como se a sua vida não tivesse passado pela Casa. O que seria uma forma demasiado injusta de contar a história:

Umbelina chegou à Casa da Cabeça de Cavalo por altura de uma festa do Senhor dos Aflitos [...]570

Como se pode ver, estamos perante analepses bem sinalizadas e que esgotam o que há a dizer sobre o assunto, facto que contrasta com as surgidas nos dois primeiros romances de Teolinda Gersão, assim caracterizadas por Inês Alves de Sousa, na obra atrás citada:

"As múltiplas analepses, sempre fragmentárias, incompletas e constantemente interrompidas, são com frequência introduzidas por verbos de memória ou referências temporais que assinalam o transporte da narrativa para um outro tempo, mas surgem também de forma abrupta, sem qualquer transição"571

Caso interessante a nível do tratamento do tempo é o da longa analepse abrangendo os capítulos 15 a 17 em que depois de, nos capítulos 13 e 14, terem apresentado Carlota, separada do seu amado Gaudêncio, bordando um lençol, fazendo feitiços e sonhando juntar-se-lhe do outro lado do mar, em 1807 e "durante muitos anos" que se lhe seguiram "2, os narradores contam o que se passou durante o verão em que se

conheceram, namoraram e foram separados pela tirania de Duarte Augusto.

Ao longo desses três capítulos, fica-se a saber que "Gaudêncio chegou no mesmo verão que os saltimbancos", que "passou meteoricamente na Vila durante um verão" e que "quando partiu, no fim do verão, só restava a Carlota a espera, e a promessa de ele voltar"573, mas as indicações temporais são propositadamente vagas, só no final do

capítulo 17 surgindo a indicação do ano de 1802, em que esse verão se situa 574. Tal

indicação é associada a uma alusão a factos narrados anteriormente, seguida, por sua vez, de prolepses sobre o futuro dos dois namorados, com que se fecha a sua história.

0 C. C. C. p. 87

1 SOUSA, Inês Alves de, op. cit., p. 37 2 C. C. C. , p. 135, capítulo 14

3 C. C. C. , respectivamente pp. 144, 146 e 161

4 Verifica-se uma incompatibilidade entre estes dados cronológicos do capítulo 17 com outros do

capítulo 15. em que se situa uma cena passada no jardim da Casa durante a primeira invasão francesa, "num domingo de Agosto de 1808" (cf. p. 148 de C. C. C.) e se refere a presença de Gaudêncio, falando com Carlota e Umbelina. Tal facto seria impossível, uma vez que Gaudêncio partiu para o Brasil em 1802 e os narradores contam que, no inverno de 1807, Carlota continua a esperar por ele e assim continuará durante muitos anos (cf. pp. 130-135).

Tudo isto se passou em mil oitocentos e dois, disse Inácio, Carlota tinha então dezanove anos, menos dezasseis que Duarte Augusto. E já contámos o que vai na sua cabeça no inverno de mil oitocentos e sete, e se manteve ainda por muito tempo mais. Diremos ainda que ela não se casou nunca [...]

Acerca de Gaudêncio, disse Januário, podemos garantir que ele tinha toda a intenção de voltar, e que de esquecer Carlota ele não será no fundo grandemente culpado, porque a vida tem razões que a cabeça da gente desconhece.

Como facilmente se depreende, a longa analepse relativa ao verão de 1802 tem, entre outras, a função de evidenciar toda a extensão da prepotência de Duarte Augusto o qual, insensível à infelicidade trazida à vida da irmã pela sua actuação, insiste, trinta anos mais tarde, em exercer sobre a filha mais nova o mesmo tipo de domínio.

O verão, estação da plenitude da vida, é uma época privilegiada ao longo da novela, nela se situando também a chegada à Vila do estrangeiro que, pouco depois, casou inesperadamente com Maria do Lado.

Já o primeiro filho surgido deste casamento, cuja gestação é situada em 1840 , nascerá numa madrugada de Dezembro, como não podia deixar de ser, se se atender à importância que seu avô, Duarte Augusto, atribui ao facto de ter um neto macho, esperando por ele como pelo Messias:

Assim, o seu nascimento marcou para ele o início de outra era, como se tivesse sido anunciado por estrelas, magos e pastores, e viesse mudar os destinos do mundo y".

A propósito do nascimento desta criança ocorre uma anacronia que, aliás, como já se viu, só vem reforçar a impressão de grande naturalidade com que flui a narração da história, feita alternadamente por diversos narradores: Januário é forçado a chamar a atenção de Inácio por este, embalado pelo ritmo da narrativa, adiantar todo o assunto das promessas da criada Agripina ao Senhor dos Aflitos, relativamente aos sucessivos partos de Maria do Lado, no momento em que estão a narrar apenas o primeiro.

Mas esses partos ainda vêm longe, disse Januário, ainda nem sequer chegou a parteira de Francisco [... ]3 7 8

Uma última referência à prolepse de maior alcance, a relativa ao caso de Gilberto, neto de Filipe, com Ariette Grangier, que as bocas da Vila ainda teimaram em associar, exasperantemente, à história da "antepassada" Filipa Rapada, acabando por, segundo alguns, conduzir ao aportuguesamento do nome da família, enquanto, para outros, essa história já estaria completamente esquecida e a mudança do nome se deveria a razões pragmáticas.579 575 C. C. C. ,pp. 165-166 576 C. C. C. , p 190 577 C. C. C. ,p,194 578 C. C. C. p. 201 579 C. C. C. pp. 74-76

A impossibilidade de se apurar a verdade, mesmo em casos tão comezinhos como o da existência de Filipa Rapada, ou o da razão do aportuguesamento do nome da família, é apenas um exemplo, entre outros de que a obra se serve, para problematizar o conhecimento histórico. Esta problematização, considerada por Linda Hutcheon como típica do pós-modernismo, é por esta autora intimamente associada à da referência, de que nos ocuparemos seguidamente, uma vez que esta se prende com a forma como o espaço é tratado em A Casa.

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