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1. Uma controvérsia estimulante

3.3.1 O exorcismo da morte

Interrogada, numa entrevista, sobre a razão das constantes recordações que surgem no romance, Teolinda Gersão responde:

A ideia que prevalece é de um enorme apego à vida, os mortos não querem morrer, não querem esquecer (...) Penso que é algo que se experimenta em determinada altura da vida quando já perdemos, como no meu caso, muitas pessoas próximas e queridas. Nós gostaríamos que não fosse assim. Percebemos e sentimos na pele e na carne que a vida é muito fugaz, que muita coisa desaparece, sem saber como ou quando (...) Lutamos contra a morte, porque sabemos que ela existe, o animal não o sabe. Esta é a única fatalidade que aparece no livro, o resto pode ser contornável.57

Contrariando esta visão da morte como uma realidade temida e inelutável, a existência vivida pelos habitantes invisíveis da Casa, tal como é inicialmente traçada pelo narrador, mas através da focalização interna de um deles (Ercília), nada tem de assustador ou angustiante, muito pelo contrário:

Na Sala das Nespereiras (...) Ercília acabou agora de alinhar as cartas sobre a mesa e susteve-se um instante, antes de as voltar. Sentindo como era suave estar ali, deitando cartas, conversando, contando histórias (...)58

Embora dedicando-se às mesmas actividades que os ocuparam durante a vida, e cumprindo parte da rotina (veja-se o ritual do chá) Ercília apercebe-se, com espanto, de um progresso considerável na forma de ela e os seus companheiros se relacionarem, muito mais liberal, tolerante e generosa do que durante a vida. Sendo assim, não admira que, no capítulo 4, Ercília interrompa Horária que se propunha contar "a questão da água do poço que desapareceu por causa do vizinho Cerdeira", para lhe sugerir "uma história mais alegre", a da sua própria morte. A Januário agrada tanto a ideia que alarga a proposta a todos os circunstantes: "Podia contar cada um por sua vez, como um jogo. A morte ou, pelo menos, a última recordação", considerando tratar-se de "uma conversa sedutora e leve que amenizava a hora de tomar o chá."59

Carmo é a primeira a contar a sua morte a qual, à primeira impressão, se lhe afigura como o desmanchar total e inexplicável do bordado, seguido de uma sensação de cansaço físico, aliada a alterações da rotina da sua vida. A forma como descreve o seu enterro, marcada pela ausência de léxico específico, revela que a realidade da morte lhe seria pouco familiar, mas nem por isso traumatizante, a ponto de não compreender por que razão chorariam algumas pessoas:

Estava agora deitada numa caixa, punham-me flores em volta, aos pés e à cabeceira, e falavam baixo, algumas pessoas choravam e eu olhava-as sem entender por que razão chorariam, o mundo era transparente e sereno e agora eu seguia por

57 FERNANDES, Elena, «Teolinda Gersão: A memória do tempo», entrevista publicada no Jornal de Letras n° 671, 3 de Julho de 1996, p. 17

58 C. C. C. , p. 29 59 C. C. C. , p. 37

um campo, era verão e eu caminhava no meio de um campo de flores, que de repente ficava fora da minha vida.60

A experiência relatada por Inácio e que ele considera de "incidente gracioso" é, nada mais, nada menos, que o seu velório antecipado. Acompanhando o relato com "um olhar bem humorado" sobre os outros e esfregando as mãos "como se estivesse muito satisfeito consigo e com o mundo",61 Inácio não se sente ofendido por a sua família ,

aproveitando o facto de estar reunida durante as férias de Verão, ter decidido antecipar o seu velório, associando-lhe um elemento de festa. Ao contrário de Carmo, Inácio não é um estreante, já tem experiência de outros enterros, como se vê na descrição que faz do seu próprio, em que revela um perfeito domínio do léxico e da situação em si. O jogo fónico resultante da insistência nos sons fricativos e no som vocálico i, atenuando a solenidade própria de um velório, como que prepara implicitamente para a introdução da insólita referência ao ambiente alegre que se vivia:

Então dei conta de que era realmente um funeral que celebravam e de que esse funeral era o meu.

Traziam-me com jeito pela escada para o andar inferior, deitavam-me no meio da sala, em cima de um esquife, com quatro velas acesas, duas aos pés e duas à cabeceira, e toda a gente circulava em volta, parentes, vizinhos, amigos, desfilavam, falando baixo, deixando cartões de visita na entrada, as mulheres estavam vestidas de preto, mas o ambiente era alegre, alguém pôs música de dança e ninguém chorava, era um misto de enterro e de festa, mas a parte da festa era sem dúvida a mais forte.62

É exactamente o conhecimento que tem de todos os pormenores do processo, a chegada dos gatos-pingados, o transporte do corpo para a igreja, a selagem do caixão que, a certa altura, o faz recear ser enterrado vivo, mas logo deixa de se preocupar quando ouve Môr, cheia de pragmatismo, explicar à Lolinha Macedo a razão da antecipação das cerimónias fúnebres: quando ele morrer de facto, o que só deverá ocorrer no outono, os familiares estarão longe e assim não terão de voltar de propósito. Quem estiver próximo chama o padre e faz-se sumariamente o enterro.

A única morte verdadeiramente traumatizante e com efeitos trágicos é a de Paulinho encontrado morto no ribeiro, o que, além de ter abalado profundamente a Casa,

acabou por consumar a tendência para a loucura da mãe da criança, Ercília, a qual, todas as madrugadas, abria a janela para chamar pelo filho. Fosse como fosse, embora Ercília não se lembrasse "se tinha sido, alguma vez sua mãe", o reencontro dos dois era agora efectivo, o mal parecia remediado:

C. C. C., p. 38

C. C. C. , p. 38

(...) e de qualquer modo ele aí estava, entrando outra vez na sala a correr, como se fosse madrugada e alguém o tivesse chamado da janela.63

A existência idílica vivida na Casa pelos espectros espanta Ercília, a ponto de lhe causar vertigens, levando-a a questionar-se sobre a possibilidade de se tratar de um estado definitivo.

Pareceu-lhe que o que faziam ali era um enorme exercício de silêncio e de atenção, e interrogou-se se isso seria um treino para qualquer coisa.

Trata-se, como se vê, de uma preocupação ligeira e pontual que não a impede de regressar quase logo à sua ocupação preferida de deitar as cartas, mas que não pode deixar de indiciar a possibilidade de uma mudança.

Sintomaticamente, será o fim da narrativa dos antepassados e nomeadamente o relato da morte de Virita que levará Ercília, no último capítulo da obra, a reflectir sobre a morte, a tomar consciência "do ponto em que agora estavam"65 e a fazer conjecturas

sobre o que os espera, imaginado como um mundo inteiramente diferente, mas sobre o qual nada sabem em concreto.

Poder-se-ia dizer que, até ao capítulo final da obra, assistimos como que a uma tentativa de exorcizar a morte, entendida como a anulação da pessoa que se foi em vida ou como a redução da mesma pessoa à parte espiritual, segundo preconizam as religiões da tradição judaico-cristã, apresentando-a como uma versão próxima, mas aperfeiçoada da vida. De facto, até esse momento, embora assumindo-se claramente um estado de não-vida, parece exisitir uma intenção propositada de rasurar da imagem dos habitantes invisíveis da Casa características demasiado distintivas, relativamente ao estatuto dos vivos. Só no capítulo final será referido, a propósito de Ercília, que ela podia olhar os seus companheiros sentados na sala, ao mesmo tempo que passeava ao longo do ribeiro, porque detinha prerrogativas dos "mortos", tais como o dom da ubiquidade, a faculdade de se moverem deslizando, de descerem um lance de escadas de uma só vez ou de passarem através das portas sem as abrir.

É essa visão eufórica da existência post mortem, presente nos capítulos 3 e 4 da narrativa encaixante, que se estende à novela encaixada, através da apresentação da morte de Maria do Lado como uma experiência diferente, uma viagem a cavalo, premiando uma vida de tensão e canseira.67 A primeira coisa em que Maria do Lado

C. C. C. , p. 41 C. C. C. , p. 35 C. C. C. , p. 240

Cf. C. C. C. , p. 240 . Confirmando a intenção de, até este momento, se procurar rasurar a ideia da morte, pode aduzir-se o facto de, só no capítulo final, os espectros serem designados como "mortos", sendo até aí referidos, e uma única vez, como "habitantes invisíveis" (cf. título do cap. 3).

repara, enquanto aguarda o início da viagem , ao sol de outono, é que "esquecia tudo", nomeadamente a sua rival, embora irmã, Virita. Mas a esse prazer associam-se outros, como o de deixar de se sentir responsável e receber as primeiras flores da sua vida, do meio das quais surge o cavalo preto que lhe é trazido pela rédea. Apesar de não saber andar a cavalo, ajudam-na a montar e, à medida que avança, levada pelo trote rápido e cadenciado do animal, deixa de se preocupar com o que ficou para trás, sentindo-se existir cada vez com mais força, ela que toda a vida se anulara perante os outros, vivendo na dependência da aprovação dos que a rodeavam, em relação às tarefas domésticas que procurava desempenhar na perfeição. Paradoxalmente, a morte representa para ela o nascimento, afirmando-se, igualmente, como a companhia que nunca tivera.

Mas ela existia cada vez com mais força. Ela - ela nascia, soube, de olhos fechados, com o rosto vermelho de lágrimas, chorando por si mesma, porque nesse momento decisivo não queria ficar só. Como estivera sempre.

Mas não estava só. Havia aquela presença à sua volta, e o trote cadenciado do cavalo, que imitava um coração batendo.68

Porém se, até ao capítulo final, é essa visão tranquilizante da morte que se impõe, a imagem que, no último capítulo, Ercília inventa para a explicar permite descobrir que as experiências idílicas entretanto apresentadas, não passam, afinal, de etapas de um processo gradual a que ela chama degraus, antecedido por um "espaço vazio, como um sono, depois do qual se acordava separado do mundo dos vivos por uma parede de vidro ou de água"69, mas conduzindo, inevitavelmente, a um último estádio ainda

inexperimentado e, por isso mesmo, profundamente temido.

Para comprovar a pertinência do "sistema teórico" arquitectado por Ercília, é possível verificar como ele corresponde bastante fielmente a experiências vividas pelas personagens e entretanto relatadas na narrativa encaixante.

Em consonância com a ideia de sono preliminar, espécie de antecâmara da morte, apresenta-se a descrição que Carmo faz da sua própria morte, no capítulo 4:

Foi quando senti um cansaço, uma moleza no corpo e o bordado ficou muito longe de mim (...)70

Igualmente em consonância com a descrição do primeiro degrau da morte, em que Ercília assinala uma grande atenção pelos vivos e uma grande lucidez sobre a existência terrena, contrastante com a cegueira que, durante a vida, "os fizera, as mais

C. C. C. , p. 236 C C. C. , p. 239 C. C. C. . p. 38

das vezes, errar tudo" são as suas próprias reflexões, surgidas enquanto deita as cartas, facto que lhe sugere a comparação do tempo com um jogo:

Também o tempo era um jogo. Simultaneamente perdido e ganho. Só que essa era uma verdade que, enquanto estavam vivos, não sabiam.

Lembrou-se da febre, da ansiedade e da tensão com que Inácio e Januário tinham jogado toda a vida, como se ganhar significasse uma mudança. Mas ganhar ou perder não mudava nada.71

Associando os sucessivos degraus da morte a um progressivo afastamento do mundo dos vivos, Ercília apresenta a transposição da parede não como um regresso à vida, mas como uma passagem a um outro estádio da morte, caracterizado pelo esfumar de muita coisa na lembrança, "embora se recordassem, com grande nitidez, pormenores aparentemente sem importância a que gostavam de apegar-se, porque sentiam que, se os esquecessem, ficavam desligados do universo que lhes continuava a ser familiar, e entravam no desconhecido."72

A atitude de Januário, testando a sua própria memória ou a dos seus companheiros, relativamente aos instrumentos, plantas e trabalhos agrícolas, no capítulo 5, encaixa perfeitamente no estádio acima descrito. É nesse degrau que a própria Ercília e os seus companheiros se encontram quando o narrador os surpreende, no capítulo 3, convivendo pacificamente, na Casa (aparentemente) vazia. É nele que permanecerão até ao fim da narrativa dos seus antepassados e é nele que procurarão deseperadamente manter-se, a partir desse momento, em que sentem as lembranças fugir-lhes perigosamente.

A primeira a ser afectada por essa incómoda sensação é Ercília. Gozando da prerrogativa dos mortos de poderem ouvir-se de lugares afastados, como se ficassem perto, (e, como se viu, não é por acaso que só agora é feita referência a essa e outras prerrogativas) Ercília, passeando ao longo do ribeiro, ouve Inácio queixar-se aos outros, na sala, pelo facto de alguns dos seus companheiros durante a vida - Môr, Cipriano, Timóteo José - ainda não terem chegado junto deles, mas não lhe presta atenção. Desconhecendo a inutilidade do seu esforço perante a lei inexorável do Letes que a separa da outra margem, ela "queria concentrar-se no que olhava, tentando recuperar a lembrança de imagens antigas."73

Quanto à descrição do que lhe é dado observar - o ribeiro, o céu, a outra margem - entrecruzada pelas isotopias da obscuridade e da decomposição, surge em perfeita sintonia com as imagens que habitualmente se associam à morte. É assim que a água do ribeiro é "escura", as penas do pássaro morto arrastado pela corrente

71 C. C. C. , p. 35 72 C. C. C. , p. 240 73 C. C. C. ,p. 241

"cinzentas", o céu "cor de chumbo" e a terra avistada na outra margem "um risco negro". É assim que a corrente transporta "pedaços de madeira", "ramos caídos", "caixotes desfeitos", "pedaços de algas", às vezes, "um pássaro morto, meio decomposto, as penas cinzentas misturadas no lodo". É assim que, no céu, as nuvens se encastelam para logo se "desfazerem" no vento e que a "folhagem podre" cobre o chão da outra margem.74

Apesar do ambiente pouco convidativo, Ercília sente vontade de atravessar o curso de água e de "vaguear do outro lado, no escuro". Começando por se deter à beira do ribeiro, com os pés enterrados na "lama escura", chega mesmo a avançar dentro da água, mas acaba por recuar para a margem, toda molhada, tentando desdramatizar a sua perda de memória, sem o conseguir, como deixam perceber as perguntas obsessivas do seu monólogo interior que, no texto, são reproduzidas entre parêntesis:

Está bem, disse ela bruscamente. Não me vou afligir mais por não me recordar. (Mas o que era, pensou, o que era que o ribeiro, no inverno, me lembrava? De que estava eu à procura?)75

O exorcismo da morte falhou. A morte faz valer os seus direitos, apresentando-se como um processo inelutável de obliteração das lembranças, mesmo das mais profundas e dolorosas, como acontece com Ercília, incapaz de recordar o facto mais importante da sua vida e razão da sua definitiva loucura - a morte do filho, no ribeiro.

Partilhando a mesma angústia, Januário formula a mesma interrogação que Ercília ('T)e que estava eu à procura?"), a seguir a um branco tipográfico, através do qual se chama a atenção para o desvio da focalização da narrativa de uma personagem para a outra. Como que despertando de um estádio de alheamento que se lhe afigura agora muito longo, Januário descobre que, quais bonecreiros, no final de uma etapa da digressão, "tinham estado ali apenas de passagem" e que a partida se aproxima, não havendo tempo para contar mais histórias. Tomando viva consciência do momento presente, cuja importância decisiva é marcada pela insistente repetição do advérbio "agora", Januário apercebe-se de que, embora lá fora tudo pareça igual a si próprio, dentro deles ocorre uma mudança fundamental e avassaladora: "agora esqueciam vertiginosamente as coisas".76

Para transmitir o geral, total e progressivo descalabro que atinge as suas memórias, o discurso lança mão de uma série de recursos que reforçam a enumeração dos esquecimentos de cada um deles - o polissíndeto anafórico, a insistente repetição da expressão "já não se lembrava", as vírgulas seguidas de mudança de linha, as duas últimas frases truncadas e seguidas de travessão:

Idem, Ibidem C. C. C. , p. 242 C. C. C. , p. 243

(...) Inácio já não conseguia lembrar-se do nome do cão que o Adérito tinha sepultado no quintal, embora se lembrasse ainda perfeitamente da lápide, e do desgosto do Adérito, que ficara ofendido porque o Zé Mota não lhe tinha dado os pêsames quando fizera um ano que o animal falecera.

E Carmo já não se lembrava onde costumava arrumar o ovo de marfim, de passajar as meias,

e Horária já não se lembrava que santos havia na capela (...)

e Benta já não se lembrava para quem Hemitério tinha posto uma vez de propósito na sala uma cadeira partida, que logo foi ao chão com quem lá se sentou (mas quem seria? Adelina? Bernardo António? Maria Ermita?)

e Horária já não se lembrava - e ele próprio já não se lembrava -77

Aliando a consciência de ele próprio estar a perder a memória ao comportamento da natureza, primeiro agitada, depois parada, mas tensa e expectante, Januário pressente a aproximação dum momento decisivo, confirmada pelos ruídos do vento e por um "som compassado, distante, como se lâminas se lhe espetassem nos ouvidos" .

Em busca de algo a que agarrar-se, uma espécie de bóia de salvação, não surpreende que a última lembrança que Januário consegue arrancar da sua memória quase extinta seja uma história de morte - o fim trágico da mulher e dos filhos de Heitor, a meio da viagem para o Brasil, onde ele os esperava para acabar de realizar o sonho de emigrante bem sucedido, de cujo início tivemos conhecimento no capítulo 9.

No absurdo e revoltante destino da família de Heitor, mandada lançar ao mar por um apoiante de D. Miguel que capitaneava o barco em que ia ter com ele ao Brasil, quando soube das ideias liberais do chefe da família, é possível descobrir um paralelismo com o que está a acontecer a Januário e aos seus companheiros :

E assim morreram quando já eram passados vários dias de viagem e estava feito mais de metade do caminho79

Também os habitantes invisíveis da Casa, tendo ultrapassado vários degraus da morte e experimentado uma vivência surpreendentemente agradável, se sentem agora, a mais de meio do caminho, ameaçados pelo desconhecido, por eles imaginado como "uma grande viagem, uma passagem para um mundo inteiramente diferente" , ao qual procuram, em vão, resistir.

De facto, como se só agora fossem verdadeiramente morrer, empalidecem ao distinguirem o tropel de um cavalo ecoando na calçada, reduzidos a "pedaços de velas sumindo, restos de memória que acabava"81. No entanto, a chama não se apaga

docemente até à completa extinção, antes se assiste ao precipitar de um processo

C. C. C. , p. 243-244 C. C. C. , p. 245 C. C. C. , p. 246 C. C. C. , p. 240

agónico, traduzido na catadupa de súplicas angustiadas dirigidas a Januário para que registe, por escrito, salvando-os do esquecimento, factos das suas existências, dos mais anódinos aos mais insólitos. O recurso a uma série de processos estilísticos muito semelhantes aos utilizados no rol dos esquecimentos referidos um pouco atrás, não é senão a forma encontrada pelo discurso para, através de uma espécie de litania, acompanhar os últimos estertores das memórias agonizantes:

Deixa escrito que o meu vestido, que apareceu dentro de um bule, era lilás, disse Carmo. E que eu ia à missa do meio dia, e era Abril.

E que eu inventava palavras, disse Ercília. Que na escola me batiam com a palmatória, porque eram palavras que não havia, sarcopalhal e limantrógico, cerilhéu, rodaminto e passamante.E não te esqueças -

Da voz de Mafalda gritando, disse Benta. De Roberto, abrindo de repente a porta.

Da carta do tio Hermenegildo, disse Carmo.

(...)

Da pistola carregada que Roberto pôs sobre a mesa de jogo, disse Inácio. Do tom de voz em que disse: Alguém vai morrer esta noite.

Daquele dia em que Maria Felicíssima -

A última evocação - abortada - seguida da repetição do símile da vela de cera, para transmitir a ideia da memória "que se ia gastando", marcando com o seu termo o fim definitivo dos habitantes da Casa, aponta, premonitoriamente, para a impossibilidade de deterem o inevitável, que se concretiza momentos depois: o contacto com algo que, vertiginosamente lhes toca no rosto, como uma labareda, identificado como cavalo

devido a um relincho que atroou os ares, deixa-os às escuras e privados do espaço

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