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O ESPAÇO E O TEMPO RECRIAR O PASSADO A PENSAR NO

3. A problematização da referência

Sobre esta questão da referência, pode ler-se a certo passo de Poética do Pós-

Modernismo:

Menos do que desgastar nosso "senso de história" e referência (Foster 1985, 132) o pós-modernismo desgasta nosso velho e firme senso sobre o que significavam a história e a referência. Ele nos pede que repensemos e critiquemos as noções que temos com relação às duas.580

Mais adiante, no capítulo 9 da referida obra, intitulado "O Problema da Referência", Linda Hutcheon tornará mais claro o que entende por desgaste do "nosso velho e firme senso sobre o que significavam a história e a referência", lembrando que a problematização da questão da referência, é feita, para além da ficção, pela filosofia, linguística, semiótica, historiografia e teoria literária, fazendo parte "de uma percepção contemporânea no sentido de que muitas coisas que antes tomávamos como certas por serem "naturais" e fazerem parte do senso comum (como o relacionamento palavra/mundo) devem ser examinadas com grande cuidado."

É nessa linha de pensamento que historiadores como Hayden White, em consonância com a ficção contemporânea, têm vindo insistentemente a formular questões que, embora não sendo novas, assumem maior importância e generalização:

O que é que constitui a natureza da referência na história e na ficção? (E a mesma coisa? É totalmente diferente? Tem alguma relação?) (...) Será que o signo linguístico se refere a um objecto real - na literatura, na história, na linguagem comum? Caso positivo, que tipo de acesso isso nos permite em relação a essa realidade? Afinal, referência não é correspondência (ver Eco 1979, 61). Será que alguma referência linguística pode ser direta, não ter intermediários?582

;0 HUTCHEON, Linda, Poética do Pós-Modernismo, p. 70. Quanto à obra de Foster citada por L. Hutcheon, a referência é a seguinte: FOSTER, Hal, Recordings: Art, Spectacle, Cultural Politics. Port Townsend, Wash. , Bay Press, 1985.

a HUTCHEON, Linda, Poética do Pós-Modernismo, p. 201

2 HUTCHEON, Linda, Poética do Pós-Modernismo, p. 186. Quanto à obra de Eco citada por L. Hutcheon, a referência é a seguinte: ECO, Umberto, The Role of the Reader: Explorations in the Semiotics of Texts, Bloomington, Indiana University Press, 1979

A este propósito, Linda Huícheon383 julga conveniente afirmar a sua discordância

relativamente a uma visão da linguagem da qual "parece originar-se a maioria das teorias do pós-modernismo". Essa visão consubstanciar-se-ia no "famoso exagero" de Roland Barthes: "Do ponto de vista referencial (a realidade), 'o que acontece' numa narrativa é literalmente nada; 'o que acontece' é apenas a linguagem, a aventura da linguagem, a incessante celebração da sua chegada."384 Para a autora de Poética do Pós-Modernismo,

esse formalismo é a expressão defmitória não do pós-modernismo, mas do modernismo, especialmente nas manifestações extremas da superficção americana, dos textos da Tel

Quel ou das obras do Gruppo 63 italiano. Citando Peter Brooks, Hutcheon observa que

tanto a arte como o discurso teórico contemporâneos manifestam um "certo anseio pelo retorno do referente", mas esse retorno jamais pode ser ingénuo e deixar de ser problemático: "chegou ao fim a inocência relativamente ao status do referente, e ao acesso a esse referente, em todos os tipos de discurso"385 Sendo assim não se trata, de

forma alguma, de uma "verdadeira desvalorização da dimensão referencial da linguagem, como afirmam muitos teóricos do pós-modernismo (...) Nem se trata de um deleite não problemático na imediação factual, como ocorre na chamada ficção factual ou de informação (a romantização da sociologia, da psiquiatria, da economia ou da antropologia.) A metaficção historiográfica torna problemáticas a negação e a afirmação da referência."586

3.1 O espaço - a ilusão referencial debilitada

A forma como é tratado o espaço em A Casa da Cabeça de Cavalo, especialmente na novela dos antepassados, integra-se nesta linha do pensamento contemporâneo, uma vez que, ao inserir e só depois subverter o seu envolvimento mimético com o mundo, problematiza tanto a negação como a afirmação da referência. Efectivamente, como veremos na análise que se seguirá, de acordo com a época em que se situa a diegese, a história contada pelos espectros parece adoptar as convenções da narrativa realista-naturalista, através da criação da ilusão do real, baseada num trabalho de cuidada documentação sobre o século XIX. Parece mesmo haver a pretensão de reforçar o crédito dessa reconstituição, através de repetidas afirmações de fidelidade à verdade, por parte dos narradores. Torna-se, assim, inegável a referência à realidade, só que ela é feita por intermédio dos textos que a veiculam.

3 Cf. HUTCHEON, Linda, Poética do Pós-Modemismo, p. 187

4 BARTHES, Roland, Image Music Text, trad. Stephen Heath. Nova Iorque, Hill & Wang, 1977, p. 124, citado por Linda Hutcheon in Poética do Pós-Modernismo, p. 187

5 BROOKS, Peter. «Ficion and its Referents: A Reappraisal», Poetics Today 4, 1, 1983, pp. 73-74, citado por Linda Hutcheon in Poética do Pós-Modernismo, p. 187

Consciente da impossibilidade da correspondência entre palavra e coisa, a obra não recorre, no entanto, a comentários reflexivos sobre o problema da referência, são as próprias descrições que, por vezes, se encarregarão de a questionar: quanto mais esforçadamente pretendem criar a ilusão de representar o real, mais se afirmam como objectos linguísticos, assim debilitando os efeitos da ilusão referencial.

3.1.1 A reconstituição do espaço vivido - um processo ambíguo

Passando à análise do espaço, um exemplo comprovativo de que a ficção, em busca de um efeito de verosimilhança, vai colher elementos a outros textos, pode ser retirado da comparação do relato da viagem entre o Porto e o Solar da Mó que Chora efectuada por Filipe, a convite de Floriano, com o texto em que Raul Brandão traça o estado das vias de comunicação em Portugal, em época não muito anterior à referida em

A Casa. Lê-se o seguinte em El-Rei Junot :

Quem viaja fá-lo em muares por caminhos péssimos, leitos de torrentes, com o credo na boca. Alguém pergunta a Wellington: - Então como viajam os portugueses no inverno? - E ele responde: - Decerto não saem de casa. - Estradas regulares há- -as nos arredores de Lisboa, mandadas fazer por Pombal e Manique. (...) Por Alvará de 28 de Março de 1791 ordena-se a conclusão da estrada de Lisboa ao Porto, passando por Lisboa e Coimbra e o encanamento do Mondego. Manda-se que a estrada tenha 40 palmos de largura.

Quanto ao texto ficcional, enquanto que, na versão do capítulo 6, se afirma que a viagem, feita de liteira e "aos solavancos pela estrada", "demorou três dias, porque não se conseguia avançar mais de cinco léguas por dia", o narrador Inácio, na nova versão apresentada, no capítulo 7, como forma de atestação da veracidade, tem a preocupação de clarificar:

Para tanto ele colocava Floriano e Filipe mais atrás, avançando penosamente pelo terreno acidentado. Mantinha a liteira, porque de facto sempre se contara que tinham chegado de liteira, embora naturalmente esse meio de transporte só devesse ter sido usado numa pequena parte do caminho.588

Ocorrendo esta viagem de Filipe em 1834, bem piores ainda seriam as que Umbelina teve de efectuar, umas décadas atrás, nas raras vezes que desceu da sua serra para a Casa da Cabeça de Cavalo, "até porque a distância parecia então considerável, já que era preciso transpô-la aos solavancos, em velhos carros de cavalos que se desconjuntavam pelas estradas esburacadas da serra."

581 BRANDÃO, Raul, El-Rei Junot, p. 114

588 C. C. C. , p. 67. Idênticas referências às péssimas estradas surgem a propósito da que ligava a serra

em que Umbelina vivia à Casa da Cabeça de Cavalo, (cf. pp. 87 e 90-91)

Apesar de as estradas e os carros de cavalo ern que Virita e os primos circularam em Vichy, em 1867, oferecerem, por certo, muito mais garantias de conforto e segurança que os de Umbelina ou Filipe, atrás referidos, tal facto não impediu que, logo à chegada, uma roda do carro em que viajavam saltasse, facto que constituiu o primeiro de uma série de contratempos ocorridos na estância termal francesa. Esse carro deveria ser em tudo semelhante àquele em que Virita entrou, no dia a seguir ao da chegada, de manhã muito cedo, em busca de um "là-bas, sous les arbres", onde a imaginação doente lhe dizia que a esperaria o seu amado, morto há vários anos, e que acabou por lhe valer ser assaltada e deixada em terra pelo cocheiro, num local recôndito do parque,590 vendo

assim desmoronadas todas as suas ilusões.

A sugestiva evocação, no capítulo 22, da confortável vida a bordo do vapor inglês que levou Virita até Marselha, reflexo da visível idealização correspondente ao período de ilusão / alienação vivido pela personagem, contrasta com a seca referência à chegada de Filipe ao Porto, no barco a vapor, vindo da capital, no início do capítulo 6. Essa diferença explica-se pelo estatuto das personagens e pelos motivos que as levam a viajar: enquanto Virita faz uma viagem de turismo para satisfazer um velho sonho, Filipe viaja na tentativa de dar um rumo à sua vida cujas condições não podiam ser piores, naquele momento.

Em oposição ao rigor posto na transmissão das condições da viagem, do Porto para o Solar da Mó que Chora, o narrador Januário, acerca das cidades de Lisboa e Porto limita-se, quase exclusivamente, nesta altura, à menção dos seus nomes, sem que haja a menor informação sobre a sua fisionomia, em 1834 .

Sintomaticamente, a evocação que Floriano faz de Lisboa é inventada e reflecte os lugares-comuns que qualquer pessoa dessa época poderia produzir sobre a capital, uma vez que, querendo embora dar a impressão contrária ao seu convidado, Floriano nunca lá esteve:

(...) Floriano (...) evocou ainda uma vez a capital, sublinhando sobretudo a sua predilecção pela Ópera, falou da música, das primas-donas, da sala dourada, do camarote onde ficava, das noites gloriosas das estreias.591

Lisboa voltará a ser evocada, mais adiante, no início do capítulo 14 , mas relativamente a um momento histórico mais recuado, através das informações pouco seguras, o "disse que disse" que chega à Vila, sobre a situação da capital ocupada pelos franceses, em 1807.

Quanto ao Porto, a nova referência que lhe é feita, no capítulo 15, surge a propósito de Gaudêncio, o pretendente pobre de Carlota que, anos antes do Verão de

0 C. C. C.,p. 231 11 C. C. C. , p. 62

1802, em que os seus amores floresceram, fora acolhido por uma tia velha, "no terceiro andar de uma casa torta, numa rua escura e estreitinha como as há no Porto" , depois de, por causa da sua má cabeça, (pelo menos, na perspectiva da narradora Horária, em nada coincidente com a do próprio 394) ter sido despedido de uma firma inglesa. Trata-se,

como se vê, de uma referência curta e estereotipada, mas onde é possível 1er traços típicos do referente, coincidente, aliás, com o tratamento habitual do espaço na novela.

Noutros momentos, porém, sobressai o carácter vago das referências espaciais, como é o caso da Vila em que se situa a Casa da Cabeça de Cavalo, cujo nome ou localização aproximada nunca são referidos.

Dir-se-ia que a preocupação com a objectividade é apenas aparente e um bom exemplo disso pode ler-se no excerto que refere a localização da Casa na Vila, em que a sobrecarga toponímica e o carácter simbólico da mesma, apontando para a possibilidade de a Casa estar assombrada, subvertem a verosimilhança, fazendo encarar a realidade descrita como uma construção verbal :

Ficava (e por enquanto ainda fica) no extremo da Vila, na Travessa do Assombro, não muito longe da Azinhaga da Torre, passada a Fonte do Cabo e o Campo da Vessada, depois do largo {...f95

3.1.1.1 A Casa - o espaço nuclear

Quanto à Casa da Cabeça de Cavalo, e estendendo, agora, a análise a todo o romance, apesar de ser o espaço aglutinador e fundamental da obra, as referências que a ela se fazem também não são muito concretas nem pormenorizadas, quer no momento da sua construção, quer durante a época em que era habitada pelos antepassados dos habitantes invisíveis, quer na época em que estes a ocuparam enquanto vivos, quer, finalmente, no momento em que, aos olhos de todos, está fechada e (aparentemente) desabitada.

O primeiro elemento referido logo na primeira página é, como não podia deixar de ser, " a cabeça escura, voltada para leste" do cavalo que, umas páginas adiante , depois de muitas dúvidas sobre o seu estatuto e insinuações sobre o seu carácter fantástico, se afirma tratar-se de "uma muito real cabeça de cavalo, de bronze escuro, cravada na parede de pedra, junto à porta de entrada", da qual pende uma argola de ferro "que em tempos serviu para prender os cavalos".

No momento em que a narração se processa, apesar de a casa estar fechada há muito tempo, o seu aspecto exterior é convidativo -"o riso escancarado das varandas, a

C.C. C. ,p.l46

C. C. C. , pp. 147 e 155-156 respectivamente

C. C. C. , p. 20 C.C. C. ,p. 21

porta de madeira escura, as suas muitas janelas, o grande portão de ferro que marca o começo da quinta e a separa da estrada" - se bem que, pelo facto de estar fechada, o narratário seja avisado de que, no seu interior, faltam os sinais de vida (pelo menos, numa observação à distância)597.

O desenho à pena e a planta que surge na parte de trás do desenho parecem apontar para uma casa antiga, de tipo senhorial, mas a descrição da planta só permite saber aquilo que ela não tem, em relação ao projectado: uma parte que englobava três janelas e a escada de acesso à porta principal 598 (isto, claro, se o documento

corresponder à Casa, facto acerca do qual, como se viu, o narrador afirma subsistirem dúvidas...)

Antes de penetrarmos no interior da Casa, detenhamo-nos um pouco no espaço que a cerca. Ao longo da obra, vão surgindo referências ao quintal e às laranjeiras, por exemplo, no final do capítulo 1 e no início do capítulo 8, em que o jardim surge varrido e preparado para a festa a que Filipe comparecerá pela primeira vez, bem como no 13, em que se conta que, no quintal, se enterraram os haveres que Duarte Augusto queria esconder da cobiça dos franceses. Esse espaço, característico do século XIX, adquirirá alguma importância no momento em que servirá de cenário à conversa de Gaudêncio com as senhoras da Casa, sobre o Brasil, enquanto que, em cima, na varanda, mais resguardados do calor, Duarte Augusto conversa com o padre:

(...) Umbelina abrira a sombrinha e caminhava no jardim, de vestido verde claro, disse Carmo. Gaudêncio caminhava a seu lado, e a certa altura ofereceu-se para lhe segurar a sombrinha. Carlota seguia atrás, e todos pisavam a relva, atravessando o jardim fora dos trilhos, para fugir mais depressa ao calor, a caminho do caramanchão e das nogueiras.3"

Para além disso, representará um espaço de liberdade, em que os homens se reúnem para conversar de assuntos a que os ouvidos femininos não deveriam ter acesso, tal como a explicação do nome de Filipa Rapada que, como muitas outras histórias, constituía matéria de "ao fundo do quintal".

Através da alusão às tarefas que Maria do Lado dirigia ou realizava, antes das festas, adivinha-se uma casa rica e bem recheada:

Mandava limpar vidros e cristais, polir metais e pratas, sacudir tapetes, engomar cortinas e toalhas de renda, pensava e organizava em pormenor o banquete, reservando para si própria a tarefa de fazer a maior parte dos doces.601

C. C. C. , pp. 20-21 Cf. C. C. C. , p. 23 C. C. C. , p. 149 C. C. C. , p. 69 C. C. C. , p. 82

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