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3 A CONTRIBUIÇÃO DE FREUD

3.1 Freud: Complexo de Castração e Complexo de Édipo

Abordar a subjetivação do ser, considerando as abordagens de Freud e Lacan de maneiras distintas não é possível. Mesmo Lacan tendo avançado em relação à teoria freudiana, ele só o fez porque seguia os mesmos conceitos. Logo, houve um avanço e não uma negação da teoria. Uma maneira de esclarecer isto é a própria declaração de Lacan no “Seminário 5”, ao afirmar: “Estou falando da metáfora paterna. Espero que tenham se dado conta de que falo do complexo de castração” (Lacan, 1957-58/1999, p. 204).

Esclarece-se, então, que a escolha em tratar primeiramente do complexo de Édipo e do complexo de castração, segundo Freud, existe por razões de facilitar a compreensão dos avanços galgados por Lacan, ao retomar a teoria psicanalítica de Freud sob o prisma de seus conceitos.

Assim que, em seu texto “Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos”, Freud (1925/1980) demarca, de forma concisa, a relação existente entre o complexo de Édipo e o complexo de castração nas meninas e nos meninos, afirmando que “Enquanto nos meninos, o complexo de Édipo é destruído pelo

complexo de castração17, nas meninas ele se faz possível e é introduzido pelo complexo de castração” (Freud, 1925/1980, p. 318).

A partir da passagem de Freud, deve-se atentar para duas nuances, uma que o complexo de castração se entremeia com o complexo de Édipo e; outra, que há

17 O texto apresenta uma nota de rodapé que informa que esta passagem se encontra também no texto

diferenças em relação a como se organizam o menino e a menina diante de tais complexos. Por isso, a relação entre estes complexos será abordada a partir de como eles se processam nos meninos e nas meninas separadamente, em virtude de suas particularidades.

Em se tratando de complexos que participam da constituição do sujeito, é necessário, então, situar como a criança se encontra no seu desenvolvimento psicossexual, quando da passagem por estes complexos. O próprio Freud (1924/1980) afirma que há uma contemporaneidade entre a fase fálica e o complexo de Édipo e, conseqüentemente, com o complexo de castração.

Desta forma, é preciso fazer uma breve retrospectiva. Na fase fálica, há o primado do falo e a criança acredita que todos os seres possuem falo, que, em Freud, é referido inicialmente como o pênis. Com a noção de a possibilidade de castração fazer efeito de ameaça, “o conceito psicanalítico de falo começa a se deslocar, assim, do órgão peniano, ganhando o estatuto de representante psíquico da falta (perdas narcísicas ou insatisfação)” (Prates, 2001, p. 36). Este deslocamento pode ser, inclusive, notado em Hans, ao investigar a presença ou não do ‘pipi’ nos objetos, nos animais e nas pessoas18.

Após a fase fálica, a criança alcança o período de latência, onde a pulsão está voltada para as questões culturais, o que Freud (1905/1980) tratará como a pulsão de saber. Como o desenvolvimento, para a psicanálise, não ocorre de forma estanque, “... a pulsão de saber é atraída, de maneira insuspeitadamente precoce e inesperadamente intensa, pelos problemas sexuais, e talvez seja até despertada por eles” (Freud, 1905/1980, p. 182). Daí surge a pergunta: a que problemas, na infância, Freud está se reportando?

Assim como as primeiras revelações de Freud sobre a sexualidade infantil impressionaram a sociedade, talvez a idéia de que estas crianças tenham problemas, conflitos psíquicos, também inquiete a alguns. É desta inquietação que chegam as demandas para os atendimentos psicológicos. Na psicologia, a demanda será tratada como um pedido de ajuda para que se desfaça o problema infantil. Para a psicanálise,

a leitura da demanda, ou melhor, do sintoma, pode ser, da ordem da problemática da separação, a condição do surgimento do sujeito, como aquele que passa a escrever a sua história, saindo do estado de alienação ao Outro.

Então, Freud irá apresentar duas preocupações infantis, na forma de perguntas: uma, “De onde vêm os bebês?”; e outra, que trata do enigma dos sexos e que se ilustra com a pergunta de Hans à sua mãe: “... ‘Mamãe, você também tem um pipi?’” (Freud, 1909/1980, p. 17). Em se tratando de questões que despertam da curiosidade infantil, elas não possuem uma ordem para o seu surgimento, nem uma idade específica. Além disto, o próprio Freud apresenta tais questionamentos com uma seqüência diversa, ou seja, por vezes ele declara que a primeira questão infantil é a origem dos bebês (Freud, 1905,1908/1980); outras vezes, é o enigma dos sexos (Freud, 1907/1980).

Independente de qual é a primeira pergunta formulada pela criança sobre a sexualidade, a questão é que os pais ou os adultos oferecem respostas não satisfatórias às crianças. Desta maneira, elas culminam em elaborar as suas próprias teorias sobre a sexualidade humana, com o intuito de preencherem a lacuna deixada pelo outro. E este ‘outro’ pode ser o pai, a mãe, a babá ou até uma criança mais velha, aquela que a criança acredita ser mais ‘experiente’, no contexto freudiano da palavra. Isto significa que a criança buscará aquele que já vivenciou este momento e que, por esta razão, deve saber a resposta.

O pequeno Hans, aos três anos e meio, deduz a chegada de sua irmã, conforme as informações obtidas anteriormente, como anotara o seu pai: “Ele acordou às sete horas e, ao ouvir sua mãe gemer, perguntou: ‘Por que é que a mamãe está tossindo?’ E após um intervalo: ‘A cegonha vai vir hoje, com certeza’” (Freud, 1909/1980, p. 20). Contudo, mais tarde, Freud faz uma interpretação sobre as ‘mentiras’ de Hans, em relação à presença de sua irmã na viagem para Gmunden. Tais ‘mentiras’ demonstram a incredulidade do garoto a respeito das informações obtidas sobre o nascimento dos bebês.

Qual pode ser o significado da persistência obstinada do menino em toda essa bobagem ? Oh, não, não era bobagem: era uma paródia, era a vingança de Hans sobre seu pai. Era o mesmo que dizer:

‘Se você realmente espera que eu acredite que a cegonha trouxe Hanna em outubro, enquanto estávamos viajando para Gmunden, eu notei como o estômago de mamãe estava grande – então, espero que você acredite nas minhas mentiras.’. (Freud, 1909/1980, p. 79).

Abre-se um parêntese para chamar a atenção de que talvez, no caso clínico D., assim como em Hans, a mentira se apresente no lugar de uma resposta negada, de um vazio; sendo crianças, estas se utilizam da fantasia para dar conta da sua realidade, que se presentifica no real. Mais uma vez, o caso de Hans e o caso D. se aproximam diante do impasse do saber. Através da mentira, eles podem velar a verdade sobre a castração do Outro, e a incidência da falta sobre si mesmo.

Lavigne (1997) aborda as teorias sexuais infantis e as articula com o gozo e o saber. Para ela, “O saber construído está ligado à função fálica e se opõe à verdade, que é sempre verdade da castração” (Lavigne, 1997, p. 89). Esta autora então continua sua afirmação, entendendo que o papel da fantasia infantil é regular esse gozo e permitir que a castração funcione.

Vale lembrar que, uma das queixas sobre D. era atribuída às suas mentiras sobre a própria família, a mesma que se encontrava no presídio, cumprindo pena judicial. Apresentando-se como um sintoma, a mentira pode servir como recurso para se dar conta do real, ou até para reinscrever a própria falta e a falta no Outro, a castração.

Ao retomar as questões de Hans sobre o nascimento de sua irmã, aponta-se para ele duas situações: uma referente à reanimação dos prazeres que havia desfrutado, quando bebê, em virtude de sua irmã agora ser tratada com os cuidados maternos; e outra, em que ele se depara com o grande enigma do nascimento dos bebês.

Quanto a este enigma, Hans irá chegar à conclusão de que o pai não só tinha algo a ver com o nascimento, mas que o ‘pipi’, tinha algo a ver com isso, tendo que ser inclusive um ‘pipi’ maior do que o dele para fazer isso. Apesar de tal hipótese, o pequeno Hans não se depara aí com a castração, pois, para ele, sua mãe possuía o ‘pipi’, tal como ele (Freud, 1909/1980). Além disto, a criança também acreditava que o seu ‘pipi’ cresceria.

Apesar da elaboração de suas teorias, Hans procura obter informações mais seguras com o seu pai, que apresenta uma posição bastante gentil em relação às suas questões sobre a sexualidade. Isto o leva, ao decorrer do tratamento, à formação da sua fobia de cavalos, na “... tentativa de evitar a castração” (Lobianco & Mendes, 1999, p. 127), para dar conta de suas fantasias.

Em se tratando da questão sobre o enigma dos sexos, ou seja, da diferença entre os sexos, “a suposição de uma genitália idêntica (masculina) em todos os seres humanos é a primeira das notáveis e momentosas teorias sexuais infantis” (Freud, 1905/1980, p. 183). Então, chega-se o período do primado do falo e do complexo de Édipo.

Freud dá um panorama geral deste complexo em “Sexualidade feminina” (1931/1980), afirmando que, “durante a fase do complexo de Édipo normal, encontramos a criança ternamente ligada ao genitor do sexo oposto, ao passo que seu relacionamento com o do seu próprio sexo é predominantemente hostil” (p. 259).

Ao ler a passagem supracitada, é necessário chamar a atenção para o fato de que é neste mesmo texto que Freud, após anos de trabalho sobre a situação edipiana, revela a trajetória da menina, já baseada em material clínico, demonstrando mais uma vez a diferença entre o Édipo no menino e na menina. Isto significa que a forma de lidar com a própria castração e a castração materna terá efeito diferente para os meninos e para as meninas.