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4. A TEORIA DO DISCURSO DE JÜRGEN HABERMAS

4.1. A FUNÇÃO DO DIREITO NA SOCIEDADE

A interpretação do fenômeno da modernidade para Habermas é identificada como se a evolução social consistisse num processo de diferenciação de segunda ordem. Assim, analisa a modernidade sob duas perspectivas: a racionalidade do mundo da vida e a complexidade do sistema. Sob o ponto de vista do sistema, a sociedade moderna é caracterizada pelo desacoplamento do mundo da vida de dois sistemas específicos: o político e o econômico. O sistema econômico é visto principalmente como a evolução do sistema de intercâmbio característico das sociedades primitivas para o modo de produção capitalista. O sistema político está vinculado ao desligamento do poder político das formas de autoridade derivadas do sistema de parentesco, ao surgimento do Estado e ao monopólio que este passa a ter da sanção e do uso da força.

Segundo a visão de Habermas, sua teoria entende como funções integrativas do direito a regeneração de códigos dos sistemas políticos e econômicos, a viabilização da comunicação entre os sistemas e o mundo da vida, a formação de um sistema de ação através do qual as instituições de direito se reproduzem juntamente com as tradições jurídicas compartilhadas intersubjetivamente e a capacidade subjetiva de interpretação do direito no âmbito do mundo da vida.

Ressalta-se também a importância de dimensionar a validade do direito através de um quadro impositivo onde o Estado interliga-se com a força de um processo de normatização do direito, garantindo a liberdade, fundando a legitimidade, por via da racionalidade que se operacionaliza no comportamento.

Sobre as dimensões da validade do direito, Habermas analisa as idéias de Immanuel Kant161 que enfatiza a relação interna do direito baseada na coerção e liberdade.

“Para Kant, a relação entre facticidade e validade, estabilizada na validade jurídica, apresenta-se como uma relação interna entre coerção e liberdade, fundada pelo direito. De si mesmo, o direito está ligado à autorização para o uso da coerção; no entanto esse uso só se justifica quando ‘elimina empecilhos à liberdade’, portanto, quando se opõe a abusos na liberdade de cada um. Essa ‘relação interna entre o poder geral e recíproco de usar a força e a liberdade de cada um’ se manifesta na pretensão de validade do direito”.162

Kant e Rousseau163 desenvolveram um pensamento democrático segundo o qual a pretensão de legitimidade de uma ordem jurídica que foi desenvolvida sob o alicerce dos direitos subjetivos só pode ser atingida através da força integradora da sociedade que une todos os cidadãos livres e iguais.

Desta forma, nota-se que os dois componentes da validade do direito (coerção e liberdade) são delineados para os destinatários conforme a escolha e a visão do ator. Portanto, o conceito do direito moderno que operacionaliza e intensifica a tensão entre facticidade e validade na área do comportamento, absorve o pensamento democrático.

“Uma ordem jurídica não pode limitar-se apenas a garantir que toda pessoa seja reconhecida em seus direitos por todas as demais pessoas; o reconhecimento recíproco dos direitos de cada um por todos os outros deve apoiar-se, além disso, em leis legítimas que garantam a cada um liberdades iguais de modo que “a liberdade do arbítrio de cada um possa manter-se junto com a liberdade de todos”.164

Kant e Rousseau pretenderam fazer uma conciliação entre Direitos Humanos e soberania do povo para se chegar a uma resposta que se mostrasse consistente sob o espectro da modernidade, sendo que Habermas denominou de interpretação mútua, onde Kant entendeu que na prática legislativa não se poderia atribuir direito que infringisse a autonomia privada, posto que, seria um terrível contra-senso a idéia de alguém ser injusto consigo. Todavia, ao

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Immanuel Kant foi filósofo, nascido em Könisgsberg, Prússia (1724 - 1804), considerado como o último grande filósofo dos princípios da era moderna. É um ilustre representante do Iluminismo, tendo direcionado seus estudos para a teoria do conhecimento, epistemologia, metafísica e ética. Ficou famoso, sobretudo, pela sua concepção conhecida como transcendentalismo (todos nós trazemos forma e conceitos a priori para a experiência concreta do mundo, os quais seriam de outra forma impossíveis de determinar).

162 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. I, 2. ed., Rio de Janeiro: Tempo

Brasileiro, 2003, p. 48. HABERMAS, Jürgen. Faktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1998, p. 46.

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Jean-Jacques Rousseau nasceu na Suíça (1712 - 1778), foi filósofo, escritor, teórico, político e compositor musical. É uma das figuras marcantes do Iluminismo na França, sendo um precursor do romantismo. É associado freqüentemente às idéias anticapitalistas e considerado um antecessor do socialismo e comunismo. Suas idéias políticas tiveram grande influência nas inspirações ideológicas da Revolução Francesa.

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entender a soberania popular através de fórmula de leis gerais, Rousseau afirmava a necessidade de atribuição de iguais liberdades subjetivas.

Entretanto, o fato de o Direito adequar-se a moral permaneceu como encargo que essas concepções não modificaram como, por exemplo, o sujeito coletivo (o povo) expresso na obra Contrato Social ou o sujeito singular (o “eu”) narrado na Crítica da Razão Pura.

Assim, chega-se a conclusão que Direitos Humanos e soberania popular não podem ser interpretados de modo absoluto, tendo em vista que isso reduziria o Direito à moral. Portanto, esses valores devem ser relativizados através de uma pressuposição mútua, e não simplesmente interpretados.

Na análise de Habermas, a típica tradição platônica de oposição entre idéia e realidade foi superada e agora passam a serem concebidas incorporadas à linguagem ligadas internamente através da facticidade dos signos.

“Após a guinada analítica da linguagem, levada a cabo por Frege e Peirce, foi superada a oposição clássica entre idéia e realidade, típica da tradição platônica, interpretada inicialmente de modo ontológico e, a seguir, segundo os parâmetros da filosofia da consciência. As idéias passam a ser concebidas como incorporadas na linguagem, de tal modo que a facticidade dos signos e expressões lingüísticas que surgem no mundo liga-se internamente com a idealidade da universalidade do significado e da validade em termos de verdade. A generalidade semântica de significados lingüísticos obtém sua determinabilidade ideal no médium de sinais e expressões que sobressaem, como tipos reconhecíveis, da corrente de eventos lingüísticos e processos de fala (por exemplo, testemunhos escritos), seguindo regras gramaticais”.165

É através dos mercados e do poder administrativo que as sociedades modernas são integradas, inclusive mediante normas e processos de entendimento. Os mecanismos de integração social e formadores de sistema (dinheiro e poder administrativo) que coordenam as ações de modo objetivo.

Alicerçados nas ordens do mundo da vida que se integram à sociedade através do agir comunicativo, guiando-se pelos caminhos da institucionalização do direito. Assim, pode-se observar que existe uma tensão entre o idealismo do direito constitucional e o materialismo de uma ordem jurídica, que espelha a desigualdade do poder social e sua má distribuição que se assemelha às abordagens filosóficas e empíricas do direito.

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HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, v. I, 2. ed., Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 55. HABERMAS, Jürgen. Faktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1998, p. 53.

Torna-se extremamente necessária a análise do trabalho de Otfried Höffe166 sobre a filosofia de Kant que simboliza e sedimenta o pensamento filosófico ocidental, influenciando várias gerações rumo à modernidade.

Kant desenvolveu uma compreensão das idéias iluministas que se manteve eqüidistante de um iluminismo ingênuo e de uma atitude contra-iluminista, segundo a qual tudo o que existe é bom e belo. A filosofia de Immanuel Kant representa não só o apogeu intelectual, mas também uma transformação do iluminismo europeu.

“Kant fundamenta as limitações do domínio, estabelece para a idéia moderna dos Direitos Humanos o mais elevado padrão de medida e desenvolve os elementos filosóficos do direito privado e do direito público, nomeadamente da propriedade, do Estado como instância de garantia e de arbitragem para a propriedade e a pena criminal. Também no pensamento jurídico e estatal Kant encontra-se na tradição do Esclarecimento, que aqui conduz de Grócio e Hobbes, por Pufendorf, Locke, Thomasius e Wolff, a Hume e Rousseau. Mas, como na crítica da razão teórica e da razão prática, Kant procura não simplesmente integrar os diversos elementos metodológicos, e então também temáticos do Esclarecimento. Muito antes, ele adota uma posição diferenciada. Ele seleciona os elementos racionais de seus predecessores, e com isso não apenas segue sua idéia fundamental da filosofia como conhecimento a priori, mas também a crítica racional prática com sua legislação independente da experiência”.167

Kant fundamenta Direito e Estado a partir de princípios jurídicos, ou seja, uma razão prática pura. O direito natural abriga a filosofia kantiana, sendo esse um direito racional crítico. As instituições básicas do Direito como propriedade, Estado, pena criminal não podem ser deduzidas da experiência que o indivíduo tem de si mesmo e do mundo, tendo em vista ser essa experiência duvidosa, na medida em que é mutável, sendo considerada a mãe da ilusão.

“Em oposição a um excessivo racionalismo, que quer deduzir o direito positivo de fundamentos racionais, Kant sabe que a Filosofia está limitada à pequena parte da determinação fundamental de conceitos e princípios. Como ciência independente da experiência, a Filosofia do Direito não pode substituir nem o legislador nem o juiz ou erudito em Direito. Por outro lado, estes dependem do filósofo, a saber, da fundamentação de princípios a priori do Direito, em que a constituição e as leis se provam como racionais”.168

Finaliza o raciocínio dizendo que os elementos empíricos são de extrema importância para a doutrina filosófica jurídica que irão fundamentar o conceito de Direito e seus institutos como vida, família, propriedade, etc..

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HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. XVII.

167

idem., ibidem., p. 232.

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