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Função do jornalismo científico como suporte formativo

CAPÍTULO 4: Dialogando com professores de uma escola pública

3) Função do jornalismo científico como suporte formativo

Para a terceira categoria de análise, referente à função do jornalismo científico como suporte formativo, foram observados aspectos sobre como esses materiais de comunicação podem contribuir para a promoção do letramento científico ou de sua utilização no contexto de formação dos sujeitos para uma percepção ampliada sobre os processos de desenvolvimento da ciência. Através das respostas, novos elementos sobre as concepções que estes professores têm sobre ciência podem ser evidenciados, mas agora sob um enfoque das práticas de quem noticia as pesquisas científicas.

Os professores informaram que possuem pouco costume de acessar ou procurar conhecer e acompanhar canais específicos de divulgação científica ou de jornalismo científico especializado. Excluindo-se os exemplos trazidos no próprio roteiro da entrevista (as revistas Pesquisa Fapesp e Galileu), apenas três professores trouxeram referências próprias de veículos que disseram acessar (a professora de História se referiu à revista de História da Biblioteca Nacional; o professor de Matemática mencionou uma publicação que lia quando jovem e outra a que chegou a ter acesso dando aula em outro colégio, mas cujo nome não se lembra; e a professora de Inglês mencionou um aplicativo de celular sobre astronomia).

Quando instigados a refletir sobre qual é a função dos materiais de jornalismo

“Elas [as notícias de jornalismo científico] trazem as pesquisas, o que está ocorrendo na academia, nas universidades, nos centros de pesquisa (...). Antigamente, a pessoa estava estudando aquilo lá na academia, até chegar ao público já tinham descoberto outra coisa (...). Hoje em dia (...) a revista científica eu acho que tem esse papel de trazer essas informações o mais rápido possível para seu público em geral” (Ravel, História)

“Tem que ter função de alertar a sociedade, abrir um pouco a cabeça da sociedade, mostrar o que é importante que se faça para que se previna. Por exemplo, zika vírus, (...) essas matérias acho de suma importância para que também sejam desenvolvidas nas escolas” (João, ed. Física)

“Quando um jornal traz uma matéria desse nível, que você vê que teve uma pesquisa, um estudo, acho que o aluno se depara e [pensa] ‘caramba, tô muito longe disso, tenho que estudar muito para alcançar’ (...), ‘isso aí não é para mim’. E aí qual é o papel do professor: olha isso aqui teve um estudo, você é capaz, agora, a gente tem que pesquisar, e tem que ver as tuas afinidades com esse assunto. Mas eu acho que não precisa ser imposto ao aluno aquele conhecimento que ele profissionalmente não vai levar para a vida dele, vai levar conhecimento, mas não vai agregar valor para uma profissão, por exemplo. Tem aluno aqui que quer seguir carreira militar, o que ele vai querer ler na revista Galileu?” (Ligia, Artes)

“Acho que a função básica é propagar a ciência de forma simples para a população como um todo (...), você vai triar uma informação que muitas vezes está de forma acadêmica e tentar transformar isso que desde uma pessoa que é semialfabetizado para uma pessoa que vai ser letrado conseguirem entender a mesma informação” (Sônia, Biologia)

Estimulada durante a entrevista a refletir sobre ampliações do enfoque do jornalismo, essa mesma professora amplia também sua fala sobre o papel dessas matérias:

“Se você coloca um único conceito, você não permite, você não faz divulgação científica, a meu ver, por que? Porque se você coloca só um conceito, você não permite que a pessoa pense (...). E se for uma pessoa que não tenha meios, e não tenha muitas vezes capacidade cognitiva de buscar, ela vai ter só aquele único conceito, então a divulgação científica eu acho que, como obrigatoriedade, tem que trazer diferentes conceitos, diferentes pontos de vista, para que faça o leitor poder pensar e ter uma opinião, ele pode discordar totalmente do que está publicado ali, mas ele tem que fazer aquela construção. A função do jornalista científico é tentar transformar isso (...) publicar de forma que o público consiga fazer uma construção (...), você dá ferramentas para o seu leitor, que crie o próprio pensamento científico” (Sônia, Biologia)

A maioria dos professores indicou a importância de promover o acesso compreensível das informações produzidas nas pesquisas, de forma que o conhecimento não fique restrito apenas àqueles que compreendem a linguagem mais técnica e especializada. Também foram mencionados aspectos para ampliar o entendimento sobre temas variados, agilizar a difusão de informações e alertar para medidas de prevenção (em saúde, por exemplo). Como se vê pela fala da professora de Artes, voltam a aparecer colocações de que o interesse por temas da ciência ocorreria apenas entre quem tem ou terá uma ocupação em áreas vinculadas, ou seja, uma relação mais marcada pelo mundo do trabalho. Apesar desse aspecto, o mesmo depoimento permite identificar um tratamento pedagógico que poderia ser dado a um material de jornalismo científico que se diferencia do uso para exposição conceitual ou da mera ilustração de assuntos trabalhados em uma aula de ciência. Nesse sentido, apesar de estar questionando o potencial de uso desses materiais para quaisquer alunos, a professora indica que essa função pode ser dada no sentido de aproximar o jovem do fazer científico, de refletir

sobre o que é preciso para se relacionar com o conhecimento da ciência, algo que vai mais ao encontro do que propõe o letramento científico.

Da mesma forma que se nota nos trechos da entrevista da professora de Biologia, ao longo dos encontros outras duas professoras pareceram reformular sua definição sobre qual deve ser o papel que o jornalismo científico deve desempenhar, passando de uma perspectiva apenas informativa para a perspectiva ampliada, que provoca reflexões, auxilia o leitor a construir seus posicionamentos sobre temas científicos, a perceber as articulações que o cientista precisa fazer com outras esferas da sociedade para realizar seu trabalho, e as dificuldades que enfrenta nesse processo – e que até o humanizam. Em alguns momentos, informados pela pesquisadora sobre a existência de produções com enfoque ampliado (do modo como foi debatido a partir das referências de Carlos Fioravanti e Bruno de Pierro no Capítulo 1, incluindo, por exemplo, a abordagem sobre o processo de construção de um conhecimento científico, seus dilemas e incertezas, as características humanas envolvidas na atuação do cientista, entre outras), a maioria dos professores se posicionou positivamente, como se vê nas passagens:

“Muito interessante! Na universidade, por exemplo, (..) uma professora minha (...) fez um estudo sobre túneis do Rio de Janeiro e entregou para a prefeitura (...) nada foi feito e teve um ano que um túnel (...) desmoronou aí alguns carros ficaram soterrados (...). Naquele momento eu entendi: ‘caramba, ela é tão inteligente, tão influente no meio científico e às vezes não tem voz no meio político’, (...) se ela não tivesse dito naquele momento talvez até hoje eu não tivesse percebido isso; então se a mídia trouxer pra gente realmente os processos, porque uma pesquisa tem tal dinheiro para financiamento e outra não tem? Qual o interesse para que se descubra a cura de uma doença e o interesse para que descubra a importância do movimento feminista no Rio de Janeiro? (...) acho que se trouxesse todos os processos, o quanto as pessoas têm que se articular para que uma pesquisa seja feita e o poder público, qual atenção dá para determinados temas, acho que seria bem interessante” (Silvia, Geografia)

A mesma professora também afirma:

“O ideal acho que é (...) você colocar o conceito e fazer a pessoa refletir sobre ele, (...) se você trouxer pesquisadores que pensam de formas totalmente diferentes, você abre caminho para que a pessoa perceba isso (...) as pessoas vão começar realmente a refletir” (Silvia, Geografia)

“Eu acho legal, sabe por que? Porque traz o cientista para a realidade da gente, sabe? (...) para muita gente o cientista é aquele que está naquele ambiente que (...) tem todo suporte para trabalhar (...), vai assistir um congresso; mas o que está por trás disso (...)? É fácil, é difícil de conseguir apoio financeiro para isso tudo? Para ele desenvolver aquela pesquisa que levou, sei lá, dez anos e talvez fosse em menos tempo se tivesse suporte financeiro maior, então quando está trazendo o cientista ao dia a dia dele (...) pra gente, pra gente que digo é para o comum, o povo comum, o mortal, né? (...) isso provoca aquela sementinha de a sociedade se movimentar para ajudar essa ciência. (...) Quando você conhece todas as mazelas pelas quais ele passa, os problemas, as dificuldades, isso é importante, que a ciência não é uma coisa que está pronta, você tem vários, tem caminhos a seguir” (Carmen, Física)

Já a professora de Inglês demonstrou dúvidas sobre a pertinência de se ampliar a abordagem das notícias:

“Acho que seria bom, mas eu fico pensando se todos teriam paciência para esse tipo de leitura. Talvez fosse interessante dar a informação, uma coisa sucinta, (...) e oferecer locais para você pesquisar mais,

‘ver mais no link tal’ (...), fica sabendo que existe alguém que trabalhou cientificamente naquilo (...) se você quiser (...) lê mais a respeito” (Joana, Inglês)

Neste ponto, é importante ressaltar que prevalece uma indicação dos professores de que esse procedimento seria vantajoso para qualquer leitor, e não apenas para aqueles que trabalham com pesquisa ou possuem interesses em seguir carreiras na área da ciência. Assim, parece haver um entendimento diferenciado quando comparamos algumas respostas sobre o letramento científico nas aulas (normalmente entendido como válido especialmente para alunos que queiram ser cientistas, como se viu anteriormente) e nos meios de comunicação (aqui, entendido como válido para os leitores em geral).

Ao refletir sobre quais as condições para que uma matéria de jornalismo científico cumpra seu papel na promoção de reflexões sobre a ciência, algumas características podem ser destacadas:

“Se o jornalismo científico quer atingir a pessoa comum, a linguagem dele tem que ser acessível. Tem que ser fácil de entender para chamar a atenção do leitor (...). Se (...) não vou entender nem 10% do que ele está falando, (...) Então não vai atingir o tal do letramento científico, (...) tem que dialogar com quem vai ter acesso àquela revista, e fazer com que a partir daquele texto o leitor se interesse em saber mais” (Carmen, Física)

“Eu acho que todo mundo tem que ter acesso a isso (...). Então tem que estar com uma leitura não tão pesada como a que eles usam, que só eles entendem, mas proporcionar aos outros uma leitura mais fácil, como forma de atrair mais (...). Porque uma linguagem tão fechada (...) isso já viu que furou, então está na hora de integrar todas as áreas” (Helena, Matemática)

“Quando (...) a notícia é muito resumida, às vezes não é nem culpa do jornalista, ele quer passar aquela informação de forma clara para o público em geral, (...) às vezes passa coisa muito simples e pode parecer que a ciência seja uma coisa muito superficial quando não é” (Ravel, História)

“Você não vive fora da ciência, você está no meio da ciência, mas você não a entende (...) e se afasta porque a ciência é dada como verdade absoluta e distante da realidade, acho que toda pessoa tem que ter a capacidade para perceber a ciência do dia a dia, ela pode até não saber todos os termos e todas as reações, isso não é obrigatório, mas ele tem que entender que aquilo ocorre (...). Agora, se o jornalismo não consegue fazer isso, aí acho que é um grande buraco que cria” (Sônia, Biologia)

Parece ser importante para os professores, assim, que essa forma de comunicação atente para as questões da linguagem utilizada, sendo acessível e rompendo com a alta especialização muitas vezes refletida nos termos utilizados em discursos de cientistas, o que tende a restringir a compreensão de um tema apenas àqueles que são da mesma área. Ao mesmo tempo em que deve ser compreensível, o material precisa tomar cuidado para não simplificar excessivamente o conteúdo, transmitindo uma visão superficial de ciência. Também cabe destacar a importância de que o jornalismo não propague a imagem de ciência como inquestionável e isolada do restante da sociedade.

Entre as condições para um bom uso desses materiais, os professores também mencionam que, mais do que oferecer disponibilidade a um veículo ou uma notícia, é essencial que o acesso seja acompanhado por momentos reflexivos, situações em que se articula informações e instiga o sujeito a problematizar o que foi transmitido, algo distante de uma leitura de fruição ou passiva, como se vê nos seguintes trechos:

“Isso precisa ser levado ao aluno, isso tem que ser o professor o mediador, porque se você simplesmente entregar um material desse na mão de um aluno, ele bota debaixo da cadeira dele e não olha mais. Então não adianta, não é isso, tem que ser trabalhado. Não adianta você ter disponibilidade, (...) se ninguém trabalha. Às vezes é preferível ter menos material, mas aquele material você trabalhar bastante com o aluno” (Marcos, Matemática)

“Primeiro tem que levar o leitor a pensar criticamente, para depois você conseguir fazer divulgação, o leitor pode ter isso em qualquer momento. Ver um filme e conseguir ter essa visão, ver um jornal (...) conseguir perceber isso, mas aí a gente volta para a questão da educação: ele tem que ter a base para pensar criticamente, e para olhar para aquilo e se posicionar (...). Acho que a importância desses meios, facilmente divulgados, o cinema, um blog na internet, é exatamente se posicionar em relação a isso e mostrar as diferentes visões” (Sônia, Biologia)

“Os meios mais tradicionais, (...) grandes conglomerados que dominam a mídia também, talvez não tenham interesse em mudar a visão que passam para a gente, então esses outros surgem nesses nichos e tem que surgir, tem que ter mesmo, de repente os livros didáticos poderiam fazer menção a eles também” (Silvia, Geografia)