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3. REPRESENTATIVIDADE ELEITORAL: DIREITO POLÍTICO

3.2 REPRESENTATIVIDADE: FUNÇÃO LEGISLATIVA E INTERESSE

3.2.1 Função legislativa: desvio de finalidade na busca pelo interesse

Em se tratando de Poder Legislativo, a constatação de existência de desvio de finalidade no exercício de sua função é tarefa mais complexa se comparada à seara do Poder Executivo. Em primeiro lugar por ser aquele um órgão colegiado, enquanto este outro Poder,

apesar da existência de Conselhos Administrativos, via de regra, toma suas decisões singularmente.

O simples fato de termos como objeto de estudo um órgão colegiado já traz em si a problemática inerente a todo órgão dessa natureza: a dissipação de responsabilidade entre seus membros. Ao lidarmos com os membros do Poder Executivo, estes têm suas condutas mais facilmente apuradas e responsabilizadas. Ao passo que, quando lidamos com órgãos do Poder Legislativo, por vezes a apuração da responsabilidade de atos praticado é dissipada em razão de ser órgãos colegiados, o que dificulta a individualização das condutas dos parlamentares.

Quando uma decisão é tomada por um membro do Poder Executivo em qualquer dos níveis da federação, a essa decisão é possível atribuir-se um rosto e um nome que será responsabilizado diretamente por ela. Por sua vez, isso não acontece quando se trata do Poder Legislativo. A decisão é atribuída genericamente à Casa Legislativa, o que dificulta a individualização da responsabilidade de cada membro.

Para dar um exemplo dessa discrepância entre as responsabilizações dos membros desses Poderes, basta lembrar que se o chefe do Poder Executivo não enviar o projeto da Lei Orçamentária Anual para o Poder Legislativo dentro do prazo legal, estará ele sujeito a responder pelo crime de responsabilidade, nos termos do art. 10 da Lei nº 1.079 de 1950. Por sua vez, caso o Poder Legislativo não devolva esse mesmo projeto de Lei Orçamentária dentro do prazo legal previsto para sanção presidencial, seja em razão de delongas ocasionadas pelos debates, seja por pura má-fé política para dificultar a gestão do chefe do Poder Executivo no ano seguinte, não há penalidade prevista para a desídia dos membros do Poder Legislativo.

O segundo obstáculo a ser superado quando lidamos com o Poder Legislativo se dá em razão das particularidades que revestem a natureza de sua atividade típica de legislar, atividade necessariamente criativa, e, portanto, com amplo espaço discricionário. Ao contrário do que ocorre com o Poder Executivo que por desempenhar função executiva e não criativa, possui discricionariedade com contornos mais nítidos que permitem mais facilmente a identificação do vício ocasionado pelo desvio de finalidade.

Para Pedro Estevam112, a margem de liberdade do legislador não seria necessariamente mais “ampla” que a do administrador. A diferença entre elas na visão deste autor é de caráter

112 SERRANO, Pedro Estevam Alves Pinto. O desvio de poder na função legislativa. Coleção juristas da

qualitativamente distintos em razão de na primeira desempenhar uma atividade criativa que agrega criação de valores à ordem jurídica. Dessa forma, a diferença se daria na substância e não apenas no grau, na medida em que um cria e o outro apenas escolhe.

De fato, reconhecemos que a discricionariedade relativa ao Poder Legislativo, para além de uma mera questão de grau, possui sua distinção primordial na substância que envolve a atividade criativa. O que não significa dizer que essa liberdade criativa corra livre sem margens de vinculação e limites a serem observados, como os limites formas, materiais e circunstanciais previstos pela Constituição.

Hart Ely ao discorrer sobre a possibilidade de um ato do Poder Público ser declarado nulo porque foi efetuado por motivos inconstitucionais, destaca o caso Palmer vs. Thompson julgado em 1971 em que apesar de haver forte demonstração de motivação racial nos fechamentos das piscinas municipais em Jackson, Mississippi, a Suprema Corte Norte Americana decidiu que “em nenhum caso proposto à sua apreciação houve constatação de que o ato legislativo violara a igualdade de proteção unicamente em virtude das motivações dos homens que votaram a favor dele”.113

Anos depois, a Suprema Corte Norte Americana tomou rumo oposto ao julgar

Washington vs. Davis em 1976, e Village of Arlington Heights vs. Metropolitan Housing Development Corp em 1977, ao decidir que “é necessário provar a intenção ou o objetivo de

discriminação racial para demonstrar que houve violação da Cláusula de Igual Proteção”.114

Hart Ely ao comentar esses precedentes reconhece a dificuldade na comprovação dos motivos determinantes de um ato legislativo, apesar de o ato estar sendo praticado por motivos inconstitucionais, como a discriminação racial. Nesse sentido, defende ele que a Corte não deve buscar uma motivação única ou determinante, mas analisar se uma motivação inconstitucional parece ter influenciado de modo significativo o processo de escolha. Havendo tal influência o procedimento foi ilegítimo por negar o devido processo legislativo, e seu resultado deve ser declarado nulo.115

O fato é que ainda que se considere as competências legislativas vinculadas ao texto constitucional, a discricionariedade legislativa confere aos membros do Poder Legislativo uma infinidade de projetos de leis e emendas, sem que sequer tenha-se uma ordem de

113 ELY, John Hart. Democracia e Desconfiança: uma teoria do controle judicial de constitucionalidade. São

Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 183.

114 Idem, Ibdem, p. 183. 115 Idem, Ibdem, p. 184-85.

prioridade116 de tramitação entre eles. Apesar a Constituição Federal contar com décadas de promulgação e, conforme classificação de José Afonso da Silva117, possuir normas de eficácia limitada, as quais para que haja efetividade requerem a edição de normas infraconstitucionais que disciplinem a matéria, muitas dessas normas até hoje ainda não foram editadas.

Observe que apesar de haver expressamente o dever constitucional para que o legislador legisle sobre determinadas matérias, sua discricionariedade vai além de preceituar “como” determinado tema será tratado, abarcando também o “quando” ele será tratado.

Em razão da inércia discricionária do Legislativo, o Supremo Tribunal Federal118 viu- se obrigado a encontrar uma solução para que os servidores públicos pudessem exercer seu direito de greve quando julgou os Mandados de Injunção 670, 708 e 712, ante a omissão do Congresso em legislar sobre o tema, conforme determinado pela Constituição Federal, e a impossibilidade de compelir este Poder a legislar, em respeito a separação dos poderes.

A discricionariedade legislativa possui alguns limites que são exercidos por meio do controle de constitucionalidade, assunto que será melhor analisado no próximo capítulo. Além dos vícios formais e materiais, se entende que há também o de “vício de legitimidade”, que seria equivalente ao vício de excesso de poder administrativo, no sentido de que:

A lei poderá estar viciada de inconstitucionalidade não somente quando o interesse perseguido contrasta com aquele imposto pela Constituição, mas também nos casos em que o próprio teor da lei resulta em absoluta incongruência com a norma editada e o fim do interesse público a ser perseguido e o próprio legislador afirma pretender perseguir. Verifica-se, nesta última hipótese, uma modalidade de vício de legitimidade assimilável ao excesso de poder administrativo.119

Nesse sentido, o chamado “vício de legitimidade” se aproxima do que vem sendo chamado de “vício por corrupção/quebra de decoro parlamentar” em razão do cometimento da improbidade legislativa, ante o nítido desvirtuamento entre a finalidade declarada pelo legislador para a aprovação do ato e sua real motivação (recebimento de vantagem indevida na perspectiva aqui trabalhada).

116 Ressalvadas algumas exceções em que há expressa previsão para tramitação em regime de urgência, como

nos casos que trate de matéria que envolva a defesa da sociedade democrática e das liberdades fundamentais; tratar-se de providência para atender a calamidade pública; de Declaração de Guerra, Estado de Defesa, Estado de Sítio ou Intervenção Federal nos estados, entre outros.

117 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 8 ed, São Paulo: Malheiros, 2012, p.

266.

118 STF. Mandado de Injunção – um instrumento republicano para sanar eventuais omissões legislativas.

Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=165753. Acesso em: 08 fev 2017.

119 SERRANO, Pedro Estevam Alves Pinto. O desvio de poder na função legislativa. Coleção juristas da

Nos casos de improbidade legislativa/quebra de decoro parlamentar para aprovação de espécie normativa o agente corruptor, interessado na aprovação, por vezes utiliza-se de mecanismos aparentemente legais, como a intermediação feita por lobistas, doações de campanha (quando era permitido), tudo com o objetivo de ocultar o desvio de finalidade que por consequência daria ensejo a uma crise de legitimidade ante a ausência de real representatividade eleitoral, como veremos no próximo item.