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2 CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE A ENTIDADE CONTÁBIL

2.4 INTERESSE PÚBLICO E LEGITIMAÇÃO DO CONTRATUALISM O

2.4.3 Função Legitimidora da Contabilidade

Pereira (J., 2003) afirma que o estado nacional extrapola o conjunto de instituições, constituindo-se, igualmente, em uma rede de relações sociais de dominação, tendente a reproduzir a estrutura de classes. Ainda que se reconheça o estado como um pacto de dominação, seria possível, no seu entender, fixar o estudo no aparato institucional e evitar as discussões teóricas sobre a dimensão política.

O sucesso dos processos de acumulação de capital justifica a existência do estado nacional, cabendo à contabilidade legitimar as ações governamentais e os seus efeitos, conferindo-lhes credibilidade, sob pena de emergirem sistemas concorrentes de legitimação (BROADBENT; LAUGHLIN, 2002; GRAMSCI, [198-?]). Importa averiguar os efeitos da disputa pelo prestígio legitimador da função contábil na entidade contábil governamental.

Segundo Carpenter e Feroz (2001), a falta de utilidade decisória das informações coletadas e divulgadas, assim como o descolamento entre os dados orçamentários e as demais demonstrações contábeis, evidencia e simboliza a busca de legitimação dos governos, por intermédio da contabilidade. Apesar disso, os principais doutrinadores contábeis procuram

conceituar Contabilidade como um esforço objetivo e científico, livre dos julgamentos valorativo-subjetivos dos seus praticantes (HUNT III; HOGLER, 1990).

M eyer e Rowan (1977, apud CARPENTER; FEROZ, 2001) inscrevem a contabilidade entre as técnicas institucionais usadas como mito pela burocracia, visando a aparentar comportamento responsável, próprio e adequado. Nesse sentido, a adoção de procedimentos contábeis reconhecidos, ainda que ineficientes e sem efetividade, faculta a defesa contra a percepção de irracionalidade e aumenta a confiança moral e o respaldo financeiro externo. A premissa básica da Teoria Institucional sugere que os governos de sucesso ganham apoio e legitimação pela conformidade com as pressões sociais; a divulgação de informações irrelevantes para o processo decisório visa à legitimação institucional, mediante ritos apaziguadores das comunidades financeiras (CARPENTER; FEROZ, 2001).

As palavras de Silva (L., 1996, p. 164) reforçam essa posição:

É exatamente por isso que proliferam na administração pública controles paralelos que muitas vezes levam a decisões que posteriormente o órgão de contabilidade não confirma. Nesse sentido, aqueles que são responsáveis pela Contabilidade no âmbito do Governo devem estar convencidos de que a mesma é um meio útil e eficaz à medida que quem a realiza sabe interpretar as exigências e as necessidades de quem tem de servir-se dela.

Por necessidade de quem deles deve usufruir, entende-se o valor da informação para o usuário-receptor, não para o usuário-emissor (DIAS FILHO; NAKAGAWA, 2001), isto é, “fornecer informação econômica relevante para que cada usuário possa tomar suas decisões e realizar seus julgamentos com segurança” (IUDÍCIBUS, 1997, p. 28). Para Goddard (2002), ao alterar o corpo de conhecimentos e as visões de mundo dos seus praticantes, a contabilidade reafirma o caráter hegemônico da sua atuação, pois reflete e interage com as ideologias e as abordagens consensuais.

Young (1994, apud KENT, 2003) define o construto espaço regulatório (regulatory space) como um locus conceitual abstrato, em que o órgão regulador contábil prescreve

padrões, de modo a expandir os limites da sua competência. Kent (2003), utilizando esse construto, descreve os embates travados na Austrália, desde a década de 1970, visando à constituição de um órgão regulador específico para o setor governamental. O seu surgimento, em agosto de 1983, “confirmou a intenção da classe contábil organizada em ocupar uma posição chave no espaço regulatório, juntamente com os legisladores” (KENT, 2003, tradução nossa). Mas, editados os padrões do setor governamental, adotado o regime de competência no setor e reconhecidos como reguladores, os órgãos supervisores governamental e privado reuniram-se, em outubro de 1999, sob argumentos de eficiência.

Karan (2003a) examina o conflito de dois representantes da corporação contábil, quanto à privatização da auditoria governamental do estado de Victoria, na Austrália, em 1996 e 1997. Os dois alegavam o interesse público (KARAN, 2003a, tradução nossa), mas

Uma análise desse paradoxo mostra que os contabilistas perseguiam seus interesses comerciais, mediante cooperação e conflito profissionais, por detrás dos argumentos comuns de interesse público, e exibiram pouca preocupação com a accountability da auditoria do setor governamental e as exigências de divulgação.

O caráter comercial da disputa transpareceu na coerência entre as posições adotadas pelos órgãos e a distribuição dos respectivos membros por setores e atividades (KARAN, 2003a). Aliás, a adoção de padrões patrocinados pela classe contábil e aceitos como racionais pelos cidadãos e pelos emprestadores nacionais e internacionais é apresentada como forma de simbolizar a prática de um gerenciamento fiscal sólido e de melhorar a capacidade de financiamento governamental (CARPENTER; FEROZ, 2001).

Para Karan (2003b), a inadequação do tradicional sistema de fundos da contabilidade governamental australiana resultou da mudança de paradigmas associados ao advento da NPM e à emergência do pensamento neoliberal. A accountability baseada em desempenho econômico necessitava que o setor governamental utilizasse práticas do setor privado e tal substituição demandava a reconfiguração e a legitimação conceitual das discrepâncias

(KARAN, 2003b). Percebendo que a implementação integral dos padrões contábeis privados é inapropriada para o setor governamental e que a sua utilização parcial erode a accountability

deste setor, Karan (2003b) sugere a sua revogação e a formulação de uma nova estrutura conceitual, capaz de suprir tanto o gerenciamento econômico quanto a accountability.

Christensen (2003), no seu estudo de caso sobre a implementação do regime de competência em New South Wales, ente estadual australiano e segundo ente governamental a adotar o regime de competência (o primeiro foi a Nova Zelândia), explica como as empresas globais de contabilidade e de auditoria advogaram pela aplicação dos modelos privados nas práticas contábeis do setor governamental. Tais empresas prestaram consultorias baseadas apenas na expectativa de que não haveria diferenças substantivas entre os setores e sub contrataram avaliadores, deixando insolvidos os problemas de reconhecimento contábil. Christensen (2003) frisa que o eventual benefício financeiro das empresas globais de contabilidade não afasta a crença genuína dos seus agentes nas suas posições e nos seus atos.

A comunidade epistêmica formada pelas grandes empresas de contabilidade e pelos mercados financeiros partilha da convicção de que são desejáveis práticas contábeis comuns ao setor governamental e ao setor privado. Trata-se, como explicam Perera, Rahman e Cahan (2003), do fenômeno da globalização, patrocinado pela desregulamentação e a concomitante homogeneidade das transações comerciais: a menor variedade de produtos - inclusive dos serviços contábeis - permite maior escala e melhores preços. Se a menor assimetria entre as práticas contábeis dos países reduz os custos de transação dessa comunidade, não há motivo para considerar que as diferenças entre os setores ou as esferas de jurisdição mereçam tratamento distinto. No ambiente global e desregulamentado, o papel legitimador da contabilidade pode ser contestado por outras profissões, o que conduz ao comportamento cooperativo dos profissionais contábeis.

Os achados de Canning e O ’Dwyer (2003) sugerem que a redução do insulamento profissional tende a diminuir a interferência de outras categorias na atividade contábil; mas, a partir de certo ponto, a autoridade e o insolamento profissionais relacionam-se diretamente. Dessa maneira, retorna-se ao caráter social da Contabilidade e das suas práticas, bem como ao contraponto entre os interesses públicos, governamentais e privados e o contratualismo.