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Função precípua do Superior Tribunal de Justiça e do

legislação federal e constitucional

Por força de expressa previsão constitucional, aos órgãos de cúpula foi reservada a competência de zelar pela uniformidade do direito.420 Compete ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça apreciar, entre outros, os casos em que a decisão recorrida configure afronta ou negativa de vigência à Constituição ou à lei federal, respectivamente.421

O Poder Judiciário brasileiro, com sua estrutura piramidal, atribuiu aos tribunais superiores a função precípua de zelar pela uniformização jurisprudencial, perpetrando a denominada segurança de orientação.422 A partir de seus pronunciamentos, pretende-se propagar a segurança jurídica em seus diferentes

integridade do sistema político, a proteção das liberdades públicas, a estabilidade do ordenamento normativo do Estado, a segurança das relações jurídicas e a legitimidade das instituições da República restarão profundamente comprometidas” (O Supremo Tribunal Federal na Constituição de 1988: espaço de construção de uma jurisprudência de liberdades. A Constituição de 1988 na visão dos Ministros do Supremo

Tribunal Federal. Brasília: STF / Secretaria de Documentação, 2013. p. 18).

420 Concorda-se com Helena Najjar Abdo quando aduz ser “bem verdade

que a aspiração de dar uniformidade à jurisprudência é muito mais afeita a ordenamentos jurídico-processuais que adotaram o modelo anglo- americano ou da common law. Esses sistemas são marcados pela força vinculante do precedente, caracterizada pelo brocardo stare decisis et

non quieta movere, segundo o qual os juízes devem firmar-se no que foi decidido e não permitir que se instaure, com a instabilidade da jurisprudência, a intranquilidade social. Isso não quer dizer que os demais sistemas que não adotaram a regra do precedente, tal como o brasileiro, possam ignorar os perigos decorrentes da discrepância de entendimentos jurisprudenciais [Grifos da autora]” (Embargos de divergência: aspectos históricos, procedimentais, polêmicos e de direito comparado. In: NERY JUNIOR, Nelson; ARRUDA ALVIM WAMBIER, Teresa (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos

cíveis e assuntos afins, p. 230).

421 Conforme previsto nos artigos 102, inciso III, e 105, inciso III, da

Constituição Federal de 1988.

422 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria

feixes, viabilizando que os jurisdicionados conheçam o entendimento sustentado pelas cortes e, assim, possam pautar suas condutas, fazer seus planejamentos, sem prejuízo à confiança legítima.423_424

Da mesma forma, essa previsibilidade que se espera do Poder Judiciário é essencial para a própria organização social, com o desenvolvimento de políticas públicas, em consonância com a interpretação jurídica emanada dos tribunais superiores.425 Mais do que eliminar posicionamentos dissonantes, o enfrentamento das questões jurídicas pelas cortes de vértice irradia efeitos por toda a ordem jurídica e é essencial à manutenção da coerência interna do próprio ordenamento.426

Essas competências constitucionalmente atribuídas justificam, por exemplo, os filtros de acesso aos tribunais superiores, com a criação de requisitos especiais, ao longo do tempo, aos recursos que lhes são endereçados.427 Justificam,

423

ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica, p. 156.

424 MIRANDA DE OLIVEIRA, Pedro. O binômio repercussão geral e

súmula vinculante. In: ARRUDA ALVIM WAMBIER, Teresa (Coord.).

Direito jurisprudencial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 677- 678.

425 Na dicção de Alfredo Buzaid, “a uniformização da jurisprudência

impõe-se, portanto, como uma necessidade social, a fim de assegurar a estabilidade da ordem jurídica. O direito perde em força e autoridade se as suas disposições não obrigarem de modo regular e permanente” (Uniformização da jurisprudência. Ajuris: Revista da Associação dos

Juízes do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, v. 34, p. 190-217, jul. 1985. p. 212).

426 Com razão, Daniel Mitidiero destaca a importância de os magistrados

se verem como partes de um sistema maior, a fim de que se cultive e se mantenha a unidade do direito. Aduz o autor que “como os enunciados legislativos são equívocos, a unidade do Direito só pode ser alcançada se o juiz entender-se como parte de um todo, em que o respeito à igualdade e à promoção da segurança jurídica dependam da atuação conjunta e coordenada – isto é, orquestrada – de todo o Poder Judiciário. Vale dizer: depende da consciência da unidade institucional do Poder

Judiciário, cuja liderança toca à Corte Suprema [Grifos do autor]” (Cortes superiores e cortes supremas: do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente, p. 76).

427

A exemplo da arguição de relevância, posteriormente substituída pela repercussão geral no âmbito do Supremo Tribunal Federal (prevista no artigo 102, § 3º, da CF/1988); e da relevância da questão

também, as exigências e os critérios a serem considerados na escolha dos magistrados que atuarão nesses tribunais – critérios esses que perpassam a reputação ilibada e o notável saber jurídico, que são conceitos marcados por amplo espectro subjetivo e que dão margem a impulsos de cunho político e não estritamente jurídico.428

federal, que se pretende incorporar ao artigo 105, da CF/1988, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, nos mesmos moldes da repercussão geral – o que constitui objeto da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n. 209/2012, de autoria da ex-deputada e atual senadora Rose de Feitas e do ex-deputado Luiz Pitiman, aprovada em primeiro turno pela Câmara de Deputados em 30/11/2016 (BRASIL. Câmara dos Deputados. Proposta de Emenda à Constituição n. 209, de 23 de agosto

de 2012. Insere o § 1º ao art. 105, da Constituição Federal, e renumera o

parágrafo único. Disponível em:

<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idPropo sicao=553947>. Acesso em: 21 jan. 2017). A ideia de criação de filtro recursal para restringir os recursos que ascendem ao Superior Tribunal de Justiça encontra guarida na doutrina processual civil. Sobre o assunto, escreveu Nelson Nery Junior que “em breve futuro o STJ terá de encontrar solução que, se não conseguir substituir o instituto da arguição de relevância, pelo menos restrinja o cabimento do recurso especial aos casos de maior importância, de forma semelhante ao que ocorre com a repercussão geral do recurso extraordinário. Do ponto de vista dogmático, isto somente seria possível por força de alteração da Constituição Federal, prevendo-se mecanismo semelhante à figura jurídica analisada” (Teoria geral dos recursos. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 114).

428 Prevê o artigo 101 da CF/1988 que “o Supremo Tribunal Federal

compõe-se de onze Ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada”. No mesmo sentido, a dicção do artigo 104, parágrafo único: “os Ministros do Superior Tribunal de Justiça serão nomeados pelo Presidente da República, dentre brasileiros com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos, de notável saber jurídico e reputação ilibada, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal, sendo: I - um terço dentre juízes dos Tribunais Regionais Federais e um terço dentre desembargadores dos Tribunais de Justiça, indicados em lista tríplice elaborada pelo próprio Tribunal; II - um terço, em partes iguais, dentre advogados e membros do Ministério Público Federal, Estadual, do Distrito Federal e Territórios, alternadamente, indicados na forma do art. 94” (BRASIL.

Como afirma Luiz Guilherme Marinoni, “quando o recurso abre oportunidade para a Corte atuar, a solução do caso concreto é um pretexto para a Corte se desincumbir da sua real missão”.429

Em outros termos, devolve-se ao tribunal a questão jurídica subjacente ao recurso, com o intuito de provocar seu pronunciamento nesse mister – o que não coincide, de maneira alguma, com a revisão da justiça da decisão (e relativiza, inclusive, o princípio da proibição da reformatio in pejus).430 O caráter publicístico do processo se sobrepõe à vontade das partes431, de forma que, uma vez instados a se pronunciar, os tribunais superiores devem proceder em sentido geral, muito além do caso concreto posto à sua apreciação.

Então, no mesmo passo em que se reconhecem as deficiências do Poder Judiciário, com seus tribunais atabalhoados pelo acúmulo de processos, privilegiam-se as decisões emanadas pelos órgãos de cúpula como paradigmas a serem seguidos em casos semelhantes.432 Busca-se a mesma solução a partir de premissas fático-jurídicas que se afigurem símiles.

em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompila do.htm>. Acesso em: 4 dez. 2016).

429 MARINONI, Luiz Guilherme. Julgamento nas cortes supremas:

precedente e decisão do recurso diante do novo CPC, p. 20.

430 Como se tratará, oportunamente, na seção 3.6.11 deste trabalho. 431

PARENTE, Eduardo de Albuquerque. Jurisprudência: da divergência à uniformização, p. 44. Concorda-se com o autor quando consigna que “o ideal é que o juiz, sabendo que representa parte de um todo (interesse do Estado na certeza jurídica), coloque em primeiro plano a isonomia (CF, art. 5º, caput). Com humildade, reconheça que, em uma estrutura hierarquizada, apesar da sua posição contrária, a decisão interpretativa final não lhe cabe. O caráter publicístico do processo leva a essa conclusão, contrária à visão do fenômeno pelo enfoque das partes ou da liberdade do juiz” (Idem).

432 Diz Ivan de Hugo Silva que “uma das funções mais ativantes do

Supremo tem sido no sentido de uniformizar a jurisprudência de seus julgados, oferecendo aos litigantes uma forma equânime de decisão, assim como, fornecendo elementos de orientação nos litígios e base de decisão para outros Tribunais. Com o crescimento da população nacional e o avolumamento das demandas, como uma consequência natural, a jurisprudência passa a desempenhar papel preponderante, não só para os advogados, como para os juízes que, em suas tarefas diárias, poderão contar com o suplemento de experiência de julgados anteriores,

A propósito, as decisões dos tribunais superiores são recorrentemente invocadas como argumentos de autoridade, tendo em vista a posição que ocupam na estrutura judiciária brasileira. Então, ainda que não se reconheça formalmente força obrigatória ou vinculante às decisões emanadas pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal, reiteradas vezes, recorrem-se aos entendimentos sustentados por estes tribunais para respaldar a pretensão deduzida em juízo.433

Essa postura denota não só conivência, como amplo reconhecimento do movimento de valorização da jurisprudência que, há tempo, vem-se delineando no Brasil – o que constitui, segundo Fredie Didier Jr., um modelo híbrido.434 Não se olvida

consubstanciados na jurisprudência, mais valorizada ainda quando promanada do Supremo” (Comentários ao regimento interno do

Supremo Tribunal Federal, p. 9).

433 Consigna Alfredo Buzaid que, “ao sentenciar, há de nortear-se o Juiz

pela sua ciência e consciência. Os precedentes judiciais (exemplos), por mais respeitáveis que sejam, não obrigam os Juízes, que continuam independentes, livre de qualquer subordinação superior no exercício da função jurisdicional. A necessidade de respeitar-lhes a independência exclui qualquer subordinação aos arestos dos altos tribunais. Eles poderão constituir um valioso subsídio para ajudar a exegese, mas carecem de força vinculativa; os Juízes podem aceitá-los, se se convencem da virtude da solução que adotam. Mas esse é um ato de legítima liberdade, não tendo outro limite que o espírito de justiça” (Uniformização da jurisprudência. Ajuris: Revista da Associação dos

Juízes do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, v. 34, p. 190-217, jul. 1985. p. 211).

434 DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. Introdução ao

direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 17. ed. Salvador: Juspodivm, 2015. v. 1. p. 58. Diz o autor que no Brasil vige um terceiro sistema, que não se subsume nem ao common law nem ao

civil law, mas que traz em seu bojo suas próprias particularidades. Assim, afirma que “o sistema jurídico brasileiro tem uma característica muito peculiar, que não deixa de ser curiosa: temos um direito constitucional de inspiração estadunidense (daí a consagração de uma série de garantias processuais, inclusive, expressamente, do devido

processo legal) e um direito infraconstitucional (principalmente o direito privado) inspirado na família romano-germânica (França, Alemanha e Itália, basicamente). Há controle de constitucionalidade difuso (inspirado no judicial review estadunidense) e concentrado (modelo austríaco). Há inúmeras codificações legislativas (civil law) e, ao mesmo

que o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de justiça figurem no ápice do Poder Judiciário brasileiro, assim como não se ignoram as funções que lhes foram constitucionalmente atribuídas. Porém, às suas decisões não se reconhece eficácia vinculante e obrigatória, a incidir e limitar a atuação435 de todos os demais órgãos que compõem o Poder Judiciário.

De fato, “nem toda decisão proferida pela Suprema Corte deve ter valor de precedente diante das cortes inferiores”.436 Mas

essas decisões devem ser, em alguma medida, observadas, senão em razão da própria cultura (como é o caso dos países afeitos à common law), ao menos para manter a coerência e a unidade do ordenamento jurídico, propagando, por consectário, segurança jurídica no exercício da função jurisdicional.437_438

tempo, constrói-se um sistema de valorização dos precedentes judiciais extremamente complexo (súmula vinculante, súmula impeditiva, julgamento modelo para causas repetitivas, etc. [...]), de óbvia inspiração no common law. Embora tenhamos um direito privado estruturado de acordo com o modelo de direito romano, de cunho individualista, temos um microssistema de tutela de direitos coletivos dos mais avançados e complexos do mundo; como se sabe, a tutela coletiva de direitos é uma marca da tradição jurídica do common law [Grifos do autor]” (Idem).

435 MARINONI, Luiz Guilherme. O STJ enquanto corte de precedentes,

p. 160. Sustenta o autor que depois de fixada interpretação da lei pelo tribunal superior, aos tribunais que lhes são hierarquicamente inferiores seria tolhida a possibilidade de interpretá-la; em razão disso, não seria adequado falar-se que a obrigatoriedade do “precedente” influiria na interpretação dos demais magistrados, se sequer poder-se-ia falar em interpretação. Nas palavras do autor, “a obrigatoriedade dos precedentes não tem qualquer possibilidade de interferir sobre a liberdade de interpretação, simplesmente porque os juízes não tem mais lugar para interpretar depois de a Suprema Corte ter cumprido a sua função” (Idem).

436

MARINONI, Luiz Guilherme. Julgamento nas cortes supremas: precedente e decisão do recurso diante do novo CPC, p. 68.

437 Como assenta Rodolfo de Camargo Mancuso, “a jurisprudência

pacificada nos Tribunais Superiores, mesmo que não se apresente, formalmente, como vinculante ou obrigatória, na prática opera com uma boa dose de normatividade, seja pelo fato de emanar dos órgãos de cúpula, cujas decisões não são mais contrastáveis, seja pelo virtual insucesso das decisões e postulações porventura veiculadas em sentido contrário às teses sumuladas [Grifos do autor]” (Divergência

Parece haver consenso quanto à necessidade de viabilizar o exercício da função precípua dos tribunais superiores brasileiros. Todavia, as dificuldades práticas em torno do assunto são inúmeras e desafiaram reiteradas reformas legislativas na história recente do direito brasileiro, a exemplo das várias leis que alteraram o sistema recursal439 e da Emenda Constitucional n. 45/2004 (conhecida como a Reforma do Judiciário).

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