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2. POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A TELEVISÃO DIGITAL NO BRASIL

2.3. A função da televisão pública

A televisão pública deve se tornar, exatamente pela força da televisão no Brasil, um instrumento de democratização alternativo à televisão comercial. Seguindo a limitada regulamentação que possui, a televisão pública educativa, conforme Decreto-Lei nº 236/1967, não tem caráter comercial e, neste ponto, assim deve permanecer. Mas, pensando em âmbito internacional, seguindo ao encontro dos anseios de uma televisão publica de qualidade no Brasil, Martín-Barbero (2003) considera que, por meio da fragmentação da informação introduzida pelo mercado se torna necessária uma televisão que se dirija ao conjunto de cidadãos de um país, que compense a medida do possível um balcão da sociedade nacional, que ofereça à todos os públicos um lugar de encontro, que permita, entre outros, a convergência de matrizes culturais e formatos industriais.

Martín-Barbero (2003) considera que uma televisão pública deve ser também cultural criando cultura a partir de suas próprias potencialidades expressivas, que mantenha função de meio expressivo e operante com a acelerada e fragmentada vida urbana, seja alfabetizadora da sociedade de novas linguagens, destrezas e escrituras audiovisuais e informáticas em conformidade com a complexidade cultural de hoje, além de trabalhar com qualidade em uma concepção multidimensional de competitividade com profissionalismo, inovação e relevância social de produção, com articulação técnica e competência comunicativa para a interpretação e construção do público respeitando a diversidade cultural, social e ideológica, buscando construir linguagens comuns e mantendo uma identidade institucional clara com uma proposta de programação e linguagem audiovisual diversificada sendo reconhecida por estudos qualitativos e de audiência. Para o autor, a televisão pública pode nos ajudar a ser cidadãos do mundo sem que isso nos desvincule da cultura latino-americana e de nossas culturas mais locais.

Complementando a ideia, Moragas e Prado (2003) consideram que a televisão pública deve ser a garantia de um sistema de comunicação para todos, evitando um sistema de vozes limitadas, sendo um contrapeso do grande processo de concentração que determina a nova convergência entre os setores financeiros de telecomunicação e os mass media. E, em plena era digital, a defesa da televisão pública deve ser baseada no cumprimento de sua missão (política, social, econômica e cultural) formada por um conjunto de quatro pilares que, além da missão, integra o financiamento, o controle e a autoridade independente com supervisão parlamentar.

Entre as funções correspondentes a esta missão os autores propõem que atue com: garantias democráticas - especialmente em defensa do pluralismo -, com política

de estímulo à participação cidadã, cultural, tenha garantia de identidade, qualidade de programação e dos conteúdos, ser educativa, social e de bem estar social, valorize o equilíbrio territorial, econômico e de desenvolvimento, seja um motor da indústria audiovisual com inovação e experimentação criativa, seguindo o princípio humanista e moralizadora, divulgadora e socializadora do conhecimento. Além de outras funções como: as funções estratégicas de desenvolvimento das comunicações, garantia de acesso universal para todos, produtora de informação socialmente necessária, guia e mediadora diante da multiplicidade de oferta de informação, instrumento de equilíbrio e freio dos novos oligopólios de comunicação e de telecomunicação, motor dos processos de convergência entre o setor da comunicação e outros setores sociais como cultura, educação, saúde, bem estar social, entre outros.

Para a concretização de tais funções, Moragas e Prado (2003) sugerem uma revisão do modelo de televisão pública considerando como temas prioritários a obrigação de estabelecer, além de uma missão, um contrato de programas específicos, políticas de financiamentos estáveis, novos âmbitos de atuação com a diversificação de canais e serviços de comunicação, novas políticas de produção que contemplem tanto a produção que seja externalizada como a venda de produção própria para terceiros, novas formas de autoridade, gestão e controle, de cooperação entre os diversos âmbitos da televisão e serviços públicos de informação, sejam eles locais, estaduais ou internacionais.

Para avançar nessa direção que podemos seguir o padrão estabelecido por várias declarações da União Europeia, especialmente o seu Parlamento, em consonância com o estabelecido há alguns anos atrás (1993) a União Europeia de Radiodifusão (UER), listando o serviço específico serviço público de radiodifusão: "uma programação para todos, um serviço básico generalista com ampliações temáticas, um fórum para o debate democrático, o acesso gratuito ao público para principais acontecimentos, uma referência em matéria de qualidade, uma abundante produção original e um espírito inovador, uma vitrine cultural, uma contribuição para o reforço da identidade europeia, assim como seus valores sociais e culturais, um motor de investigação e desenvolvimento tecnológico. (MORAGAS, PRADO, 2003, p. 15)3

3 Tradução livre: Para avanzar en esta dirección podemos seguir la pauta establecida por diversas

declaraciones de la Unión Europea, especialmente de su Parlamento, en la línea de lo que estableció hace unos años (1993) la Unión Europea de Radiodifusión (UER) al enumerar la especificidad del servicio público audiovisual: “una programación para todos, un servicio de base generalista con ampliaciones temáticas, un foro para el debate democrático, libre acceso del público a los principales acontecimientos, una referencia en materia de calidad, una abundante producción original y un espíritu innovador, una vitrina cultural, una contribución al refuerzo de la identidad europea, así como a sus valores sociales y culturales, un motor de la investigación y del desarrollo tecnológico. (MORAGAS; PRADO, 2003)

Mesmo sendo propostas pertinentes e válidas ao papel social que a televisão pública possui, no Brasil a sua concretização é extremamente desafiadora. Ao contrário do que ocorreu na Europa, de acordo com Leal Filho (2007) as tímidas iniciativas para implantar serviços públicos de radiodifusão foram sempre subordinadas ao modelo comercial, assim atuando de forma complementar a ele, ocuparam os espaços que não atraiam os interesses da iniciativa privada, o que resultou em uma história da radiodifusão pública no Brasil "minguada". Com a ausência de uma televisão pública forte, Leal Filho (2007) argumenta que houve um impedimento da formação de um público mais crítico em relação à televisão comercial, resultando na falta de modelos alternativos, o que também impossibilitou "a criação de uma massa crítica capaz de exigir da televisão, no mínimo, o respeito aos preceitos constitucionais que determinam a prestação de serviços de informação, cultura e entretenimento" (LEAL FILHO, 2007, p. 02).

Mesmo ainda frágil, a história da televisão pública brasileira apresenta discretos indícios de solidificação, entre eles a Constituição de 1988, em seu Artigo 223, de que “compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o princípio da complementaridade dos sistemas público, privado e estatal” (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988), a promulgação da Lei do Cabo, a lei 8.977/1995, e, recentemente, pode-se complementar também como uma tentativa de expansão da televisão pública no país é a criação e implantação da TV Brasil, gerida pela EBC (Empresa Brasil de Comunicação), a partir de 2008, por meio da Lei 11.652/2008.

E quanto à circunstância da rede pública assegurar a prática da democracia, trata-se de algo auto-evidente. O histórico do modelo de televisão de mercado imposto à sociedade brasileira estabeleceu uma forma de pensamento único, reprodutor das ideias dominantes e disseminadas a partir dos centros do capitalismo global. O individualismo e o consumismo, sustentados e impulsionados pelo neoliberalismo tornaram-se matrizes ideológicas da produção televisiva. A elas, no modelo hegemônico, não cabem alternativas. A saída, respeitado o jogo democrático, é a TV Pública. (LEAL FILHO, 2007, p. 07).

No caso do Artigo 223 da Constituição que norteia a televisão pública, ao prever a complementaridade e a distinção dos sistemas estatal, público e privado de comunicação, não prevê, nem regulamenta a definição de tal distinção, especialmente entre estatal e público. "A inexistência de referência legal do que venha a ser a configuração jurídica de cada um destes sistemas levou a uma grande confusão conceitual, que ao longo dos anos afastou a possibilidade de o artigo funcionar na direção imaginada em 1988" (MARTINS, 2008) 4, o que resulta em uma existência e atuação fragilizadas. O Estado tem papel fundamental nesta conceituação, normatizando e regulamentando os sistema de comunicação público, com já descrito anteriormente em sua fundamentação, garantindo o direito de representatividade social. A fundamentação do conceito de serviço público proposto na redação da Constituição deve ser não apenas difundido, mas detalhado em regulamentação garantindo a efetiva participação e representatividade social deixando claras e desdobradas a diferenciação entre serviço público e estatal. E, mais do que isso, deve garantir sua função como instrumento complementar de democratização da comunicação. No entanto, esta necessidade esbarra em um contexto emaranhado de interesses comerciais.

Além do atraso histórico, a TV pública surge sob a tutela da ditadura militar, que lhe impôs, de início, finalidades exclusivamente didáticas (Abepec, 2009). Aí estaria uma das razões para explicar porque as TVs comerciais acabaram por estabelecer, quase que de forma solitária, as bases de funcionamento das emissoras públicas e a natureza das relações com os telespectadores. (...) A maior parte das TVs públicas foi criada nos anos 80 e 90, período que coincide com redemocratização do país, mas apenar disso e da ênfase na educação, cultura e cidadania ainda estão distantes de poder cumprir as propostas que lhe deram origem (Carreto, 2008). (SILVA, GOBBI, 2010, p. 180).

Outro desafio da falta de uma regulamentação é a precária condição de sobrevivência e formas de financiamento das organizações públicas de comunicação que se limitam, em sua grande maioria, aos recursos públicos, dependendo diretamente da disposição política para sua atuação. "As verbas oriundas dos cofres públicos ainda sustentam boa parte do orçamento dos grandes grupos de comunicação privado, através

4 MARTINS, Mariana. Artigo 223 coloca em xeque papel do Estado e do mercado. Observatório do

Direito à Comunicação, 2008. Disponível em:

http://www.direitoacomunicacao.org.br/content.php?option=com_content&task=view&id=4132. Acesso em: 21/02/2012

de publicidade governamental, enquanto uma pequena fatia desse bolo é destinado às TVs públicas" (SILVA, GOBBI, 2010). Entre 2005 e 2006, Silva e Gobbi (2010) lembram que as emissoras do campo público movimentaram R$ 407 milhões, enquanto as emissoras comerciais, juntas, faturaram R$ 11 bilhões (INTERVOZES, 2009).