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FUNDAMENTAÇÃO EPISTEMOLÓGICA, ONTOLÓGICA E METODOLÓGICA

De acordo com Santos (2004) e Damke et al. (2010) uma pesquisa não pode ser elaborada sem âncora epistemológica. Epistemologia é a teoria geral do conhecimento ou estrutura das ciências, tendo como objeto formal o estudo crítico-analítico da produção do conhecimento (Bachelard, 1971; Kuhn, 2009; Conejero, 2015).

Três tipos de epistemologia são conhecidos de acordo com sua abrangência: (i) Epistemologia global voltada a um campo geral (universal) do saber com os princípios de causalidade e significância para a geração do conhecimento; (ii) Epistemologia particular voltada a um campo particular (contextualizado) do saber; e (iii) Epistemologia específica voltada a um campo disciplinar (isolado) do saber; (ii) e (iii) com princípios da problemática de pesquisa, lógica do problema e questões de valor para a geração do conhecimento (Martins & Theóphilo, 2009).

As questões epistemológicas relacionam o sujeito com o objetivo de pesquisa, tornando a relação subjetiva entre pesquisador e realidade. As questões ontológicas referem-se à natureza da realidade que é socialmente construída pela interação entre indivíduos e grupos havendo compartilhamento de valores sociais, econômicos, políticos e culturais. Com isso, a relação entre pesquisador e realidade passa a ser objetiva e externa ao pesquisador. Por fim, as questões metodológicas revelam a forma como o pesquisador busca aprender a realidade social em que está inserido, sem vieses, mas com processos discursivos e argumentativos, e com imersão e interação do pesquisador na própria realidade (Guba & Lincoln, 1994; Conejero, 2015).

Para muitas comunidades acadêmicas representadas pelos grupos de cientistas e filósofos da ciência, a Administração não pode ser considerada uma ciência, uma vez que aplica conhecimentos de outras ciências como da Psicologia, da Economia e da Antropologia. Para

outras, a Administração pode ser considerada uma arte uma vez que não pode ser explicada ou pesquisada, além de ser praticada não apenas entre aqueles que possuem formação acadêmica específica. Há, ainda, os que defendem que a Administração tem cientificidade, sendo considerada uma ciência social aplicada (Damke et al., 2010).

Entretanto, a epistemologia tem por objeto formal o estudo crítico-analítico da produção do conhecimento, podendo ser considerada uma matéria interdisciplinar e multirreferencial. Desta forma, é possível considerar que a Administração é uma atividade científica porque se observa que os estudos nesta área são passíveis de falseamento empírico, conforme o falseacionismo sofisticado de Popper; que a Administração atende aos pressupostos da ciência paradigmática de Kuhn, apesar de não existir consenso sobre em que etapa se encontra; e que a Administração se adequa aos moldes dos programas de pesquisa (Damke et al., 2010).

Popper rejeita que as teorias científicas sejam construídas por um processo indutivo a partir de uma base empírica neutra e propõe que elas têm um caráter eminentemente conjetural. “Teorias são criações livres da mente, destinadas a ajustar-se tão bem quanto possível ao conjunto de fenômenos de que tratam” (Popper, 1975). Na visão dele, uma teoria deve ser rigorosamente testada por observações e por experimentos. Se falhar, deve ser sumariamente eliminada e substituída por outra capaz de passar nos testes em que a anterior falhou. Assim, a ciência avança por um processo de tentativa e de erro, de conjeturas e de refutações (Damke et al., 2010).

O entendimento acerca da existência ou não de paradigmas em Administração é controverso entre os pesquisadores. Um dos pontos a ser considerado é a questão “temporal” da Administração. Os estudos organizacionais são relativamente recentes tendo completado pouco mais de 100 anos. Em síntese, com base nos critérios de demarcação de Kuhn sobre a ciência, aponta-se que a Administração pode ser considerada ciência apesar de não existir consenso sobre o estágio do processo científico no qual ela se encontra: pré-paradigmático, visto que diante de seu recente surgimento ainda não pôde consolidar seu paradigma; ou ciência normal, ao considerar que a estrutura e a dinâmica das diferentes organizações possuem características e uma base comum (Damke et al., 2010). Pode-se considerar que a parte prática da ciência da Administração está presente nas “novas epistemologias”, não trabalhando diretamente com a realidade, mas com o “constructo” da mesma pelo crivo da hermenêutica interpretativa (Harding, 1998; Demo, 2011, p. 5).

Relacionando as posições de Lakatos (1979) com a Administração é possível trazer a característica peculiar de excessiva fragmentação da área (Abach & Bloch, 2000; Lopes & Bernardes, 2001). No entanto, pode ser considerada uma ciência devido a sua natureza

multicientífica e multidisciplinar, sendo difícil imaginá-la sem a convergência de outras áreas nos campos econômico, sociológico e/ou psicológico (Damke et al., 2010).

O Quadro 6 resume os principais critérios de demarcação da ciência da Administração de acordo com Popper, Kuhn e Lakatos:

Quadro 6 - Critérios de demarcação da ciência da Administração

Filósofo Critério Ciência da Administração

Karl Popper

Uma teoria deve atender ao critério de falseabilidade. A cientificidade de uma teoria reside em sua refutabilidade.

Sob a ótica do falseacionismo sofisticado, as teorias que são passíveis de falseamento empírico podem ser consideradas científicas. Grande parte das pesquisas em Administração adota o critério de falseamento empírico. Ao adotarem uma abordagem metodológica funcionalista, os autores formulam hipóteses para seus estudos que podem ser falseadas quando os dados fornecem evidências que permitam rejeitar a hipótese nula.

Thomas Kuhn

Existência de paradigmas aceitos na solução de problemas em uma comunidade científica.

A Administração pode ser considerada ciência, apesar de não existir consenso sobre o estágio do seu processo científico, pré-paradigmático ou ciência normal.

Inre Lakatos

Uma teoria deve estar contida em um programa de pesquisa, com estruturas que fornecem ou servem como guia para pesquisas futuras.

A Administração pode ser considerada como uma ciência pela fragmentação dos estudos em uma série de programas de investigação e/ou programas de pesquisa. A concepção de que a fragmentação não consiste em uma limitação da Administração decorre do fato de que esta é uma área do conhecimento que lida com fenômenos sociais que fazem parte do contexto e que estão em constante mutação, destacando-se a incerteza de variáveis econômicas e os movimentos competitivos.

Fonte: adaptado de Popper (1975); Kuhn (2009); Lakatos (1979) e Taffarel & Damião da Silva (2013)

Ainda assim é preciso superar as principais razões do não reconhecimento da cientificidade da Administração: Dufour (1992) diz que a Administração tem aplicação de outras ciências, ou seja, a teoria não possui validade prática; Marques e Lana (2004) diz que a Administração é um modelo que se aproxima de técnica; Bernardes e Marcondes (2006) diz que a Administração tem aplicação de várias técnicas ou prescrições que são utilizadas para a intervenção no ambiente; Mintzberg (2006) diz que a ciência trata de desenvolvimento de conhecimento sistemático por meio de pesquisa e essa não é a finalidade da Administração, uma vez que permanece profundamente enraizada nas práticas do cotidiano; Carneiro (2009) diz que a Administração “. . . é uma tecnologia social, pois se alimenta da prática e de componentes teóricos e científicos, apoiando-se em diversas ciências puras”; e, por fim, García e Uscanga (2010) diz que a Administração é um campo epistemologicamente vazio, considerado uma atividade profissional, com apoio técnico-científico e que as universidades

não ensinam os administradores a pensar, nem a monitorar e a autorregular o que se aprende na prática.

No decorrer da história do pensamento filosófico ocidental, a noção de uma realidade imutável, externa ao sujeito do conhecimento, tornou-se dominante. Nesse sentido, nos séculos XVII e XVIII, as duas perspectivas epistemológicas majoritárias, o racionalismo e o empirismo, apesar de todas as suas divergências, compartilhavam duas premissas básicas: a separação radical entre o sujeito e o objeto do conhecimento; e o conhecimento que estabelece uma relação linear e isomórfica com a realidade. Tais premissas são retomadas e radicalizadas no século XIX pela perspectiva positivista que se torna a referência epistemológica dominante nas ciências modernas (González Rey, 1997).

No entanto, a epistemologia qualitativa é um esforço na busca de formas diferentes de produção do conhecimento que permitem a criação teórica acerca da realidade plurideterminada, diferenciada, irregular, interativa e histórica, representando a subjetividade humana (González Rey, 1997). Um dos pressupostos que diferenciam o positivismo de uma proposta epistemológica qualitativa diz respeito à compreensão da realidade com sua complexidade e não como algo simples que pode ser descrito a partir de procedimentos e leis universais.

De acordo com Branco & Rocha (1998), a mudança de paradigma epistemológico torna- se uma necessidade para compreender realidades dinâmicas, organizadas de forma sistêmica e de maneira complexa, em que os contextos histórico-culturais têm importância na constituição da realidade social. Esta proposta muda seriamente o papel da cultura no desenvolvimento humano uma vez que a subjetividade deixa de ser vista como fonte de erro (González Rey, 1997, 1998, 1999).

Sendo assim, a proposta epistemológica qualitativa mostra-se coerente com a natureza complexa e dinâmica que caracteriza o desenvolvimento humano. "O desenvolvimento humano individual envolve processo de incremento e transformação que, através do fluxo de interações entre as características atuais da pessoa e os contextos em que está inserida, produz uma sucessão de mudanças que elaboram ou aumentam a diversidade das características estruturais e funcionais da pessoa e os padrões de suas interações com o ambiente” (Ford & Lerner, 1992). O estudo do desenvolvimento pressupõe uma compreensão dinâmica do fenômeno humano com uma perspectiva de causalidade sistêmica (Branco & Valsiner, 1997; Kinderman & Valsiner, 1989; Valsiner, 1989, 1997), o que de fato representa um grande desafio metodológico para a tradição epistemológica positivista no campo da Administração. O positivismo priva de inteligibilidade os fenômenos que envolvem relações dinâmicas como a

relação entre o pensamento e a linguagem, a relação entre a cognição e o afeto, a relação entre o indivíduo e a sociedade, a relação entre o indivíduo e seu processo de aprendizagem, enfim, os fenômenos mais profundos no campo do desenvolvimento humano.

Segundo González Rey (1999), os pressupostos de uma epistemologia qualitativa são: (i) o conhecimento como uma produção construtiva-interpretativa para dar sentido às expressões e às construções dos sujeitos estudados (metaconhecimento);

(ii) o caráter interativo do processo de produção de conhecimento que não se restringe apenas às relações estabelecidas entre pesquisador e participantes, considerando que a dimensão interativa inclui também a relação entre pesquisadores e pesquisadores para o amplo processo de produção de conhecimento (coautoria gerencial); e

(iii) a singularidade como nível legítimo de produção de conhecimento, uma vez que a singularidade é construída como uma realidade diferenciada na história da constituição subjetiva de um indivíduo (autoria científica).

Considerando a epistemologia qualitativa, a metodologia deixa de ser vista como um conjunto de procedimentos que definem o "como utilizar" os métodos científicos para ser compreendida como processo cíclico e dinâmico, englobando as concepções de mundo e a experiência intuitiva do pesquisador, o fenômeno, o método, os dados entendidos como indicadores e a teoria (Branco & Valsiner, 1997).

A realização de uma investigação científica envolve escolhas sobre concepções filosóficas, estratégias de pesquisa e métodos específicos, incorporando uma estrutura conceitual que permite que a realidade seja interpretada e descrita. O conhecimento deriva dos dados da experiência (indutivismo), das afirmações singulares (do particular) às informações gerais (ao geral) (Chalmers, 2011).

A partir do final do século XIX, “a industrialização e o capitalismo chamaram a atenção dos estudiosos para os fenômenos sociais” (Collins & Hussey, 2009, p. 55), trazendo novos paradigmas de pesquisa, com variedade de relacionamentos entre os fenômenos que se referem às questões de cunho ontológico, epistemológico e metodológico (Creswell, 2013, pp. 29-34).

Ontologia diz respeito à questão do ser e à compreensão sobre como as coisas são, servindo como base para a delimitação de um problema de pesquisa. A âncora ontológica define a forma como se percebe o mundo e os fenômenos físicos ou sociais investigados, coexistindo duas visões: uma realista (objetivismo) e uma idealista (subjetivismo). Uma ontologia realista pressupõe que “existe um mundo lá fora”, independente das percepções e construções mentais que se possa ter a respeito dele, sendo aplicada fortemente às ciências da terra, exatas e biológicas. Por outro lado, uma ontologia idealista parte do princípio que um objeto só passa a

existir na medida em que é percebido por um observador, estando relacionado ao mundo das ideias e à existência de um ser pensante. Ou seja, o mundo existe a partir das percepções sobre ele (Saccol, 2009).

É ainda possível pensar em uma ontologia entre a realista e a idealista que considera a interação entre sujeito-objeto, sendo que a realidade social é fruto da negociação e compartilhamento de significados entre indivíduos e grupos. Neste caso, a realidade não é considerada independente da mente humana (objetiva) e nem fruto da percepção individual (subjetiva), podendo ser percebida e construída numa instância coletiva e intersubjetiva (Saccol, 2009).

Para completar, as âncoras metodológicas revelam a forma como o pesquisador busca aprender e interpretar a realidade mediante processos discursivos e argumentativos com imersão no ambiente e interação do pesquisador com a realidade (Guba & Lincoln, 1994, p. 108).