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38 fundamental para a articulação dos saberes sobre a figura do xamã, evidencia os

aspectos que situam o xamã além da noção de mago e feiticeiro,

(...) pois – é preciso deixar claro – o xamã é, ele também, um mago e um

medicine-man: a ele se atribui a competência de curar, como aos médicos,

assim como a de operar milagres extraordinários, como ocorre com todos os magos, primitivos e modernos. Mas, além disso, ele é psicopompo e pode ainda ser sacerdote, místico e poeta. (...) onde a experiência extática é considerada a experiência religiosa por excelência, é o xamã, e apenas ele, o grande mestre do êxtase. Uma primeira definição desse fenômeno complexo, e possivelmente a menos arriscada, será: xamanismo = técnica do êxtase. (ELIADE, 2002, p. 16)

Podemos colher uma consideração ligeiramente diversa da figura do xamã (que salienta aspectos “artísticos”) nas palavras da antropóloga Joan Halifax. Segundo a autora, os xamãs

(...) estão em comunicação com o mundo dos deuses e espíritos. Eles são poetas e cantores. Eles dançam e criam obras de arte. Eles não são apenas líderes espirituais, mas também juízes e políticos. Repositórios do conhecimento da História tanto sagrada quanto secular de sua cultura, eles têm familiaridade com a geografia cósmica, assim como com a física, sabem tudo sobre as plantas, os animais e os elementos. Eles são psicólogos, recriadores e descobridores de comida. Acima de tudo, entretanto, os xamãs são técnicos do sagrado e mestres do êxtase. (HALIFAX in SEVCENKO, 1998, p. 129-130)

Joseph Campbell, por sua vez, destaca as nuances que separam o xamã e o sacerdote. Conforme Campbell afirma,

O sacerdote é o membro socialmente iniciado, cerimonialmente aceito, de uma organização religiosa reconhecida, onde ocupa certa posição, e funciona como ocupante de um cargo que foi preenchido por outros antes dele, ao passo que o xamã é aquele que, como conseqüência de uma crise psicológica pessoal, obteve certo poder próprio. Os seres espirituais que o visitaram na visão nunca haviam aparecido a nenhum outro homem: eram seus familiares e protetores particulares. (CAMPBELL, 1997, p. 188)

Ampliando o leque de enfoques e olhares sobre a figura do xamã, podemos nos valer de um trecho recolhido em Guiado pela Lua, do antropólogo Edward MacRae. O autor situa a presença do xamã no interior de práticas distribuídas ao longo do tempo e do espaço, o xamã se configurando como um extático em busca de visões, curas e forças desdobradas no interior de estados alterados de consciência:

Para entender o conceito antropológico de xamã, é preciso lembrar que a palavra teve origem na tribo dos Tungues da Sibéria, mas denota praticas largamente difundidas em todo o planeta. Durante um rito xamanístico, um

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visionário inspirado, o xamã, entra em transe profundo e, em nome da sociedade a qual serve e com a ajuda de espíritos protetores, estabelece relações com as entidades espirituais. O xamã, então, viaja em direção a uma realidade extraordinária para ajudar os membros de sua comunidade. Isso pode ser feito com a intenção de diagnosticar/tratar certos males ou com o propósito de adivinhação/profecia, ou ainda com o objetivo de conseguir força através do contato com espíritos, animais de poder, aliados tutelares e outras entidades espirituais. Tal transe, ou viagem, acontece durante o que se costuma chamar de "estado alterado de consciência", rótulo que agrupa experiências em que o sujeito tem a impressão de que o funcionamento habitual de sua consciência se modifica e que ele vive uma outra relação com o mundo, consigo mesmo, com seu corpo, com sua identidade. Estes estados podem ocorrer espontaneamente, ou são induzidos através de técnicas de meditação, exercícios de respiração, jejuns ou pela ingestão de substâncias psicoativas. (MACRAE, 1992, p. 18)

As distintas considerações sobre a figura do xamã auxiliam na composição de uma imagem heterogênea e variada, sem perder de vista certas instâncias básicas, recorrentes: o exercício deliberado do êxtase, as visões da jornada mítica, os sonhos, a vivência de estados alterados de consciência, a formalização/materialização dos mitos em arranjos performáticos (um complexo integral que envolve e mistura o poema, a dança, a música, o teatro, etc.). O xamã repercute os dados fundamentais da existência, se coloca em contato com esferas de conhecimento e poder localizados além dos jardins da razão. Através da canção/evocação poética do fantástico, vai forjando as trilhas de uma geografia cósmica, aproximando na linguagem visionária e exploratória do desconhecido as múltiplas modalidades do ser da existência: animais, plantas, pedras, espíritos, ventos, mares, florestas, deuses irrompem nos ritmos e fôlegos do universo. No peito do xamã, o êxtase, o mergulho na subjetividade e a plataforma mágica do mundo mítico se encontram:

O reino do mito, do qual, de acordo com uma crença primitiva, procede todo o espetáculo do mundo, e o reino do transe xamanista, são o mesmo e único. De fato, é por causa da realidade do transe e da profunda marca deixada pelas experiências na mente do próprio xamã que ele acredita em sua arte e poder – mesmo que, para um espetáculo popular, ele possa ter que assumir uma função externa ilusória, imitando para os caçadores honestos alguns dos milagres que seus espíritos lhe revelaram no reino mágico por trás do véu. Essa relação das experiências íntimas do xamã com o mito é um de máxima importância (...) Pois se o xamã foi o guardião da tradição mitológica da humanidade durante o período de cerca de quinhentos ou seiscentos mil anos, quando a principal fonte de sustento era a caça, então, tem-se que supor que o mundo interior do xamã tenha exercido uma influência considerável na formação de qualquer que seja a porção de nossa herança espiritual que possa ter descendido do período da caça paleolítica. Temos que considerar, portanto, que tipo de visões interiores, e as provenientes delas, podem ter constituído o mundo das experiências xamanistas. (CAMPBELL, 1992, p. 208)

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