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48 (na performance xamânica, na página, transformada em imagem, etc.) dão forma às

visões, orientam as jornadas dos homens em busca de cura da alma e dão ocasião para a irrupção do maravilhoso no ambiente habitual do cotidiano. A poesia repõe a todo instante as repercussões das energias do cosmos, do inconsciente, do imaginário no solo do dia. A noção de que a sociedade global está plenamente esvaziada de valores míticos constitui apenas uma visão projetada pelo discurso racionalista. Marcel de Lima Santos comenta esta falácia, este arranjo discursivo:

Uma das mais difundidas narrativas ocidentais pós-iluministas tem sido baseada no tema de uma constante progressão da magia, passando pela religião (primeiramente politeísta e depois, monoteísta) e, em seguida, à ciência. Isso reflete supostamente um desenvolvimento e uma ascensão do ser humano, que podem ser vistos em todas as obras de religiões comparadas e mitologia do século XIX. Contudo, é óbvio que esse suposto descarte das crenças mágicas e primitivas simplesmente não aconteceu e que esse modelo linear foi muito mais um desejo do que uma realidade. (SANTOS, 2007, p. 134-135)

As energias postas em movimento pela ação poética (cremos não ser preciso enfatizar que a poesia não significa necessariamente escrita ou livro) do xamã - e do poeta – beneficiam uma espécie de libertação psicológica e um sentido para a deriva e o movimento dos sujeitos na face do planeta. A palavra poética (compreendida dentro do esquema ancestral, atravessada por invasões impetuosas do mítico) acessa um mundo impalpável aos ditames da razão e aos dados materiais. Em seu bojo, a palavra poética re-energiza as condições de uma ação curativa e espiritual no seu movimento alquímico, na recombinação cósmica da linguagem.

A idéia de poesia implicada na deliberada reverberação da mentalidade arcaica repercute visões ancestrais (rastreadas no paleolítico) sobre a relação do homem com o mundo natural e com o cosmos. A ação do poeta (neste quadro de analogias e diálogo com o xamã) repõe noções e práticas fecundas que reenviam a poesia para a condição de fala autêntica e experimental sobre a (e na) vida da nossa espécie no mundo (nascimento, amor, morte, etc.). As imagens e representações do poeta e do xamã se entrelaçam, se aproximam:

O poeta, como o xamã, tipicamente se recolhe à solidão a fim de encontrar seu poema ou visão, então retorna para fazê-lo soar, para dar vida ao poema. Ele executa sozinho (ou, muito raramente, com ajuda, como no trabalho de Jackson MacLow, por exemplo), porque sua presença é considerada crucial

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& nenhum outro especialista surgiu para agir no lugar dele. Ele também é como o xamã ao ser simultaneamente um estranho e, no entanto, uma pessoa necessária para a validação de um certo tipo de experiência importante para o grupo. E até mesmo em sociedades também hostis ou indiferentes à poesia como “literatura”, podem lhe permitir uma gama de comportamento anticonvecional, até mesmo anti-social que muitos de seus concidadãos não desfrutam. Outra vez como o xamã, não só lhe permitirão agir loucamente em público, mas será freqüentemente esperado que ele assim o faça. (ROTHENBERG, 2006, p. 96-97)

O poeta, em contato com os valores, idéias e práticas do xamã, amplia o repertório de visões e plataformas para a criação e comunicação de novas possibilidades de arranjos sociais e individuais. No interior, no processo da contemporaneidade, o poeta pode auxiliar nos desdobramentos e vivências de potenciais humanos adormecidos e embotados nas experiências circunscritas aos domínios do discurso técnico-científico da racionalidade do capitalismo tardio. A este respeito, o poeta Jerome Rothenberg afirma que

Ao lado das ideologias oficiais que impulsionaram o homem europeu ao ápice da pirâmide humana, havia alguns pensadores e artistas que encontraram outros modos de fazer e agir, entre outros povos, tão complexos quanto quaisquer encontrados na Europa e que foram, com freqüência, apagados virtualmente da consciência européia. Culturas descritas como “primitivas” e “selvagens” – um estágio abaixo do “bárbaro” – eram simultaneamente os modelos para experiências políticas e sociais, ressurgimentos religiosos e visionários, e formas de arte e de poesia tão diferentes das normas européias a ponto de parecerem revolucionárias de uma perspectiva ocidental posterior. Olhando em retrospectiva, era quase como se cada inovação radical no Ocidente revelasse uma contraparte (ou várias delas) em algum lugar nos mundos tradicionais que o Ocidente estava atacando brutalmente. (...) Nossa convicção, neste sentido, é que uma revisão de idéias “primitivas” do “sagrado” represente uma tentativa – por parte de poetas e outros – de preservar e intensificar valores humanos primários contra uma mecanização descuidada que se desenvolveu para além de quaisquer usos que ela possa uma vez ter tido. (ROTHENBERG, 2006, p. 110-112)

Os poetas, assim como os xamãs outrora e hoje, diluem as fronteiras entre sonho e realidade, entre palavra e mundo. As ações, idéias e registros das visões de ambos asseguram ao mundo a permanência das forças e presenças cósmicas que acompanham e informam a jornada humana na teia da vida:

O trabalho dos xamãs (...) é criar & explorar o extraordinário (o maravilhoso de André Breton e dos surrealistas), explorar & criá-lo por meio do transe & pelo controle da língua e do ritmo, & assim por diante (porque ele, que controla o ritmo, escreveu alguém, controla). Da perspectiva da consciência comum, este trabalho do xamã é desorientador, assustador (...). (ROTHENBERG, 2006, p. 152-153)

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Parte II

5. Registros do Cosmos: os Ciclones de Saturno

Depois de nos deslocarmos por sendas que nos conduziram a reflexões sobre o estatuto e presença dos mitos, dos símbolos e do imaginário nas vivências contemporâneas e a respeito das correspondências e aproximações entre as figuras do xamã e do poeta, podemos concentrar nossa atenção sobre o universo poético engendrado por Roberto Piva nos poemas dos livros Ciclones e Estranhos Sinais de Saturno. Para registrar criticamente o cosmos destes “Ciclones de Saturno”, valemo- nos de um mecanismo auxiliar para a avaliação das dimensões do espaço/tempo construído no exercício das visões do poeta: lançamos mão da feitura de algumas tabelas.

Estas tabelas (forjadas no encontro crítico com os poemas), orientadas pelo destaque de vocábulos recorrentes e em ação na configuração da cena xamânica, funcionam como gatilhos para o exercício criativo da crítica. As palavras (que se desdobram em ritmos, imagens, num lócus poético) ganham um corpo, donde podemos extrair vetores interpretativos, cruzar dados, realizar inferências e analogias entre as informações fixadas nestes dispositivos.

Ao todo são seis tabelas, que recobrem o terreno das figurações das paisagens do mundo natural e cósmico, as imagens da cidade, as aparições do xamã (e seus desdobramentos) e dos discípulos, as figuras do mundo animal, vegetal, mineral, divino e extraterrestre, os instrumentos alteradores de percepções e mobilizadores das iniciações e as ações extáticas. Vale salientar que para a composição das tabelas foram desconsideradas as diferenciações de gênero e número das palavras como, por exemplo, entre as palavras Deus e Deusa ou nuvem/nuvens.

Ao invés de utilizar as informações das tabelas como elementos rígidos e absolutos (como valores em si mesmos), nossa crítica esta interessada nestas determinações objetivas incrustadas nas tabelas para pôr em movimento um processo de superação de tais elementos – as informações nas tabelas não são o fim da jornada

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