• Nenhum resultado encontrado

54 relação com os termos recolhidos na tabela 1 que dão vazão às composições de um

lugar poético para aonde corre o sujeito da experiência visionária e da criação poética.

Comecemos pelas aparições do vento. Logo no segundo poema de Ciclones, Roberto Piva situa o palco para a atuação do visionário, o local para a apreensão das energias cósmicas e da renovação da força do extático. Para a sabedoria ancestral, os ventos estão vinculados aos pontos cardeais (leste, oeste, sul e norte) do planeta e também às estações do ano e, assim como a mente, são impossíveis de ver. Eles são forças espirituais que agem sobre toda a face da Terra, comunicando-se com as criaturas espalhadas pela paisagem do mundo. O poeta nos escreve que

na direção dos quatro ventos o xamã

rodopia

na energia da luz (PIVA, 2008, p. 24)

Os quatro ventos evocados no poema dizem respeito às direções cardeais e referem uma idéia de totalidade, pois implicam o corpo inteiro do planeta e seu processo de diferenciação nas estações climáticas ao longo do ano. Em seu giro extático, em seu rodopio, à semelhança das danças de transe dos dervixes do islã, o xamã entra em contato com forças luminosas. Poderíamos dizer que o xamã se comunica com poderes espirituais, implicados na condição dos ventos. Assim, a “energia da luz” é um repositório de forças, um cruzamento de eixos espirituais, onde o xamã vai buscar as visões. É interessante salientar também as reverberações celestiais implicadas na nomeação do vento. Assim como o trovão, o relâmpago, a aurora boreal, o arco-íris, os ventos são encarnações da sacralidade celeste. Os ventos, como caracteres uranianos, apontam que o rodopio do xamã se passa no palco do céu ou, ao menos, indicam que a dança visionária conduz o xamã numa ascensão celestial cheia de vigor e plenitude espiritual. Logo em seguida, podemos ler o terceiro poema do livro, onde os ventos também se fazem presentes:

quatro ventos quatro montanhas no olhar do garoto

55

que dança

no céu chapado (PIVA, 2008, p. 25)

Os ventos e as montanhas associados indicam que a configuração do cenário mítico repercute a idéia de um espaço sagrado, um centro do mundo, portador de sacralidade, ponto onde o acesso às regiões siderais e infernais é possível. Se lermos os poemas justapostos, podemos realizar alguns cruzamentos de noções. Se o xamã rodopia numa viagem ascensional, o discípulo (como veremos adiante em outra seção, quase sempre desdobrado na figura de um garoto) também dança. E já neste terceiro poema se inscreve o que intuímos no poema anterior. O pano de fundo da mobilização visionária é a busca das paragens celestes.

O xamã indica o olhar do garoto como signo de convergência para os ventos e montanhas, e é no olhar do garoto que se desdobra a escalada ascensional em direção ao céu – vale notar, “céu chapado”. A experiência extática é fundamental para a jornada de iniciação. O poema sugere que tanto o xamã quanto o garoto dançam, num ritual que talvez evoque a hierogamia entre o céu e a terra, e ainda que a presença de ventos (poderia dizer poderes) e montanhas neste processo é parte fundamental, não mero cenário, mas condição da vivência visionária. Mircea Eliade, comentando métodos de recrutamento xamânico, diz que

O comportamento do jovem às vezes pode decidir e precipitar a consagração; assim, pode ocorrer que ele fuja para as montanhas e lá permaneça durante sete dias ou mais, alimentando-se dos animais “capturados por ele diretamente com os dentes” e retornando à aldeia sujo, ensangüentado, esfarrapado e desgrenhado “como um selvagem”. É só depois de uns dez dias que o candidato começa a balbuciar palavras incoerentes. (ELIADE, 2002, p. 31)

A fuga para a montanha situa a noção de um necessário deslocamento, de um movimento em direção às energias espirituais, movimento que pode ser evocado também na deambulação dos ventos. Além disso, as montanhas guardam também o simbolismo de ascensão. Ainda de acordo com Eliade

A montanha figura entre as imagens que exprimem a ligação entre o Céu e a Terra; considera-se, portanto, que a montanha se encontra no Centro do Mundo. Com efeito, numerosas culturas falam-nos dessas montanhas – míticas ou reais – situadas no Centro do Mundo: é o caso do Meru, na Índia, de Haraberezaiti, no Irã, da montanha mítica “Monte dos Países”, na Mesopotâmia, de Gerizim, na Palestina, que se chamava, aliás, “Umbigo da Terra”. Visto que a montanha sagrada é um Axis mundi que liga a Terra ao Céu, ela toca de algum modo o Céu e marca o ponto mais alto do mundo; daí

56

resulta, pois, que o território que a cerca, e que constitui o “nosso mundo”, é considerado como a região mais alta. (ELIADE, 1992, p. 25)

O xamã é, como um mestre do êxtase, um profundo conhecedor destas “regiões altas”. Sua dança prenhe de energia da escalada ascensional expõe as entranhas sagradas da Terra, mostrando os dispositivos a partir dos quais o xamã se locomove entre as regiões de contato entre as camadas infernais, celestes e terrenas. Ao situar ventos e montanhas juntamente com a presença do xamã e do garoto, Piva indica já de saída que as fulgurações posteriores dizem respeito a um conjunto orgânico de referências espaciais e míticas. Os poemas iniciais colocam os termos da viagem em evidencia, sugerem a necessidade de subir nos cavalos do vento montanha acima. O poeta inicia o processo de construção de um território simbólico no qual é possível partilhar visões e dialogar com forças mágicas do mundo natural. O leitor é convidado também a participar deste jorro visionário, deste movimento de transcendência rumo às siderações. O poema projeta o leitor neste “centro” mágico, onde as atividades passarão a se desdobrar. Já no início de seus Ciclones, Piva alude às escaladas oníricas da iniciação xamânica. Segundo Eliade

É uma dessas montanhas cósmicas que o xamã escala em sonho durante sua enfermidade iniciática e que ele visita mais tarde, em suas viagens extáticas. A subida de uma montanha sempre significa uma viagem ao “Centro do Mundo”. Como vimos, o “Centro” está presente de diversas formas, mesmo na estrutura das moradias humanas, mas ninguém além dos xamãs e dos heróis escala efetivamente a Montanha Cósmica (...). (ELIADE, 2002, p. 298)

A escalada mítica da Montanha Cósmica, a dança visionária, o sonho iniciático, a viagem para o “céu chapado” colocam em foco as múltiplas possibilidades para a operação de ir ao encontro das forças mágicas da existência. Roberto Piva vai traçando pouco a pouco os contornos de um ambiente cósmico, familiarizando-nos com as emergências de energias elementares e poderes mágicos que confrontam e escapam ao escrutínio da razão e das vivências dos sujeitos das cidades contemporâneas. Como um andarilho profético, o poeta desenha os espaços de energia cósmica e as regiões de contato entre os sujeitos humanos e as forças naturais e desdenha a clausura da urbe:

(...) estas ruas mortas onde não se ressuscita o Vento permanente falha mecânica

57

na civilização que perdeu

o Maravilhoso (...) (PIVA, 2008, p. 107)

Para o poeta, as ruas da cidade não são espaços de regeneração, de contato com as potências de um devir cósmico. Até mesmo o vento, presente em múltiplas ocasiões, distribuído entre correntes que perambulam por todas as direções do planeta, força em movimento que relembra a idéia de mente e alma para as percepções baseadas nas correspondências entre os elementos do mundo natural e o homem, não consegue transpor a clausura, a “permanente falha mecânica” da mentalidade de uma época encarcerada numa visão de mundo embotada e fraturada onde não se materializa “O Maravilhoso”.

O trabalho visionário e inquiridor do poeta e do xamã é buscar as brechas, fissuras, limites e contradições da ordem instituída para mobilizar, por em movimento as correntes de ar do fantástico, do mítico e do cósmico. Trazer ao cotidiano, às vivências dos outros sujeitos o relato de suas jornadas e deambulações na geografia mítica do sagrado. O poeta é o sujeito que se põe a ouvir o vento, montá-lo, segui-lo nos confins das paisagens para partilhar as mensagens e canções que recebe. Nesta expedição ao maravilhoso, nesta viagem vertiginosa, o poeta, como um xamã, passa a mobilizar presenças míticas, num diálogo fecundo com o imaginário das forças do mundo natural que movem o espírito ancestral de nossa espécie. O poeta registra a metamorfose num animal mítico, característica nos rituais xamânicos de inúmeros povos distribuídos ao longo do tempo e do espaço.

Incorporando o jaguar

na escada do vento o sonho

folha que cura pequeno exu que

dança extático (PIVA, 2008, p. 52)

A presença do jaguar nos aproxima das visões míticas da cultura asteca (na qual este animal desempenhava um papel cultural importante), ao mesmo tempo em que um exu (oriundo do imaginário africano) serve de referência para a dança extática do sujeito

58