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1. O MODELO ATUARIAL DE CONTROLE PENAL

1.3. Fundamentos da Pena Privativa de Liberdade

Inicialmente, relembra-se o que dizem os dois Tratados mais notórios do século XX, aos quais o Brasil é signatário, sobre a limitação da acusação criminal e da liberdade individual.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, diz no art. 11 que “Toda a pessoa acusada de um ato delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas”80.

E a Convenção Americana de Direitos Humanos, denominada também de Pacto de São José da Costa Rica, de 1969, estabelece no art. 7° o Direito à Liberdade pessoal:

1. Toda pessoa tem direto à liberdade e à segurança pessoal. 2. Ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e pelas condições fixadas de antemão pelas Constituições Políticas dos Estados Partes ou pelas leis ditadas conforme elas. 3. Ninguém pode ser submetido à detenção ou encarceramento arbitrários. 4. Toda pessoa detida ou retida deve ser informada das razões de sua detenção e notificada, sem demora, da acusação ou acusações formuladas contra ela. 5. Toda pessoa detida o retida deve ser levada, sem demora, a um juiz ou outro funcionário autorizado pela lei para exercer funções judiciais e terá direto a ser julgada dentro de um prazo razoável ou ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade poderá estar condicionada a garantias que assegurem seu comparecimento em juízo. 6. Toda pessoa privada da liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, a fim de que este decida, sem demora, sobre a legalidade de sua prisão ou detenção e ordene sua liberdade se sua prisão ou detenção forem ilegais (...) 7. Ninguém será detido por dúvidas (...).81

Ambas as declarações internacionais sustentam o rol de princípios dos pactos republicanos dos Estados Ocidentais do século XX, da mesma forma, presentes no nosso ordenamento jurídico, como de base do modelo republicano- federativo-democrático, consubstanciados pela Constituição de 1988.

80

NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal de Direitos do Homem. Resolução 217ª (III).

81

BRASIL. Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Decreto nº 678, de 06 nov. 1992.

Esta base de formulação de princípios de direitos e de garantias, refletem- se diretamente em todo o arcabouço legislativo pátrio e, de igual forma, às legislações penais e processuais penais.

Embora estes códigos, especificamente o código penal e processual penal, datem dos anos de 1940 e 1941, respectivamente, o legislador82 foi ao longo

do tempo fazendo as alterações, pelas vias reformistas – consubstanciadas em leis ordinárias, decretos, medidas provisórias, portarias, etc., afim de adaptar o ordenamento ao pacto democrático da modernidade, ao direito internacional e às relações exteriores.

Dito isto, pois, o Brasil por meio de suas opções políticas e ideológicas sempre cumpriu formalmente as obrigações internacionais, todavia, como delineado anteriormente a condição de país em desenvolvimento, sob a perspectiva definida por SANTOS de modernismo de oposição83, deixou um grande deficit no campo

prático das políticas sociais, aos quais estão as políticas criminais e penitenciárias. As prisões, destinadas às penas restritivas de liberdade, desempenham historicamente a função de seleção dos diferentes e dos socialmente menos “aptos” a galgar a pirâmide social84.

Como aludido por OLIVEIRA, a reclusão enquanto confinamento celular data do século V, o qual a Igreja, em alternativa à penal capital, aplicando a penitência com o intuinto de resgate do arrependimento pela dor, tendo no século XVIII a sua aplicação substituída pela pena de morte. Salienta, ainda, a aplicação de outros meios cruéis juntamente às privações de liberdade, como privações à comida, uso de objetos de torturas, etc.85

FOUCAULT, abordando a importância do processo de humanização das penas, diz que “A prisão, peça essencial no conjunto das punições, marca certamente um momento importante na história da justiça penal: seu acesso à ‘humanidade’. Mas também um momento importante na história desses mecanismos

82

Cumpre salientar que a distinção entre legislador e legislativo. Ao primeiro é todo o sujeito competente de emitir atos com características de leis, ao segundo, termo também utilizado para Poder Legislativo.

83

Menciona-se cf. SANTOS. A gramática do tempo, sem voltar-se ao debate, constatando-se a condição do Brasil como país latino-americano em desenvolvimento.

84

Cf. Rusche, G; Kirchheimer. Punição e estrutura social, p. 124-136.

85

disciplinares que o novo poder de classe estava desenvolvendo: o momento em que aqueles colonizam a instituição judiciária”.86

Demarca-se aqui a colonização das relações sociais pelo Contrato Social, o qual o poder judiciário e o poder de punir, já atribuído ao Estado, passam a definir quais são as condutas consideradas como crime na forma positivada, legitimando a pena privativa de liberdade como retribuição disciplinar igualitária àqueles infratores das normas penais, sob o manto do positivismo jurídico.87

“Pode-se compreender o caráter de obviedade que a prisão-castigo muito cedo assumiu. Desde os primeiros anos do século XIX, ter-se-á ainda consciência de sua novidade; e entretanto ela surgiu tão ligada, e em profundidade, com o próprio funcionamento da sociedade, que relegou ao esquecimento todas as outras punições que os reformadores do século XVIII haviam imaginado. Pareceu sem alternativa, e levada pelo próprio movimento da historia”88.

Assim se afirma e se firma o caráter utilitarista da pena.

Esse duplo fundamento - jurídico-ecônomico por um lado, técnico-disciplinar por outro - fez a prisão aparecer como a forma mais imediata e mais civilizada de todas as penas. E foi esse duplo funcionamento que lhe deu imediata solidez. Uma coisa, com efeito, e clara: a prisão não foi primeiro uma privação de liberdade a que se teria dado em seguida uma função técnica de correção; ela foi desde o início uma "detenção legal" encarregada de um suplemento corretivo, ou ainda uma empresa de modificação dos indivíduos que a privação de liberdade permite fazer funcionar no sistema legal. Em suma, o encarceramento penal, desde o inicio do século XIX, recobriu ao mesmo tempo a privação de liberdade e a transformação técnica dos individuos.89

Importa destacar que “as alterações da forma de punição revelam a subordinação da pena às condições econômicas exigidas pela socidade. A trajetória do sistema punitivo evidenciou esta subordinação (...)”90

No transcurso do processo, o utilitarismo dá espaço ao idealismo, que reveste à pena um caráter científico retibucionista, pautando-se na filosofia de Hegel

86

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, p. 195.

87

Cf. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, p. 195.

88

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, p. 195.

89

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, p. 196-197.

90

e Kant, o qual perpetua-se até hoje, consubstanciando-se na “formulação de parâmetros precisos e calculáveis de conduta” plenamente sustentado na legalidade, tendo como obejtivo único a retribuição.91

Assim, como consideram RUSCHE e KIRCHHEIMER, “O cárcere tornou- se a principal forma de punição no mundo ocidental no exato momento em que o fundamento econômico da casa de correção foi destruído pelas mudanças industriais” 92

O que se verifica concretamente é, conforme o tema desenvolvido, que a pena de privativa de liberdade desde a sua concepção teve como único fim a contenção das massas improdutivas ou aquelas à margem do sistema econômico, servindo à continuidade da exploração do homem pelo homem. Modificou-se as estruturas de trabalho, mas as relações de exploração perpetuaram-se e se perpetuam até nossos dias.

O modelo capitalista e liberal, aboliu o escravismo, tornando todos os cidadãos livres formalmente, todavia, a liberdade encontrou o seu limite na renda e no trabalho, ou seja, as bases ideológicas segregacionistas e excludentes continuaram intrínsecas as relações humanas.

BATISTA assevera que se deve “Entender que a prisão moderna é inventada aqui, dentro de um sistema sobre o qual o pensamento marxista ortodoxo fala. Um artigo definiu essa economia como uma praça onde você tem de um lado uma prisão e do outro uma fábrica. A similaridade arquitetônica entre as fábricas e as prisões não é por acaso. No meio você tem a mão–de-obra reserva”93

Por outro lado, ZAFFARONI lança ao debate uma questão muito importante, que é a forma com que esta concepção européia foi recepcionada na América Latina, e diz que “(...) en el Brasil, el proceso tiene ribetes más complicados, pues la estructura colonial quedó vinculada a la producción esclavista, que sólo termino en vísperas de la proclamación de la República, aunque no és posible negar el peso de una minoria criolla en el Imperio y de la ideologia liberal (...)”.94

91

Cf. RUSCHE, G; KIRCHHEIMER. Punição e estrutura social, p. 143-144.

92

Cf. RUSCHE, G; KIRCHHEIMER. Punição e estrutura social, p. 146.

93 BATISTA, Nilo. Criminalidade não existe. Afasta de mim este cale-se.

94A tradução da fala de ZAFFARONI diz: “(...) no Brasil, o processo tem maiores complicações, pois a

estrutura colonial estava vinculada á produção escravista, que só terminou véspera à proclamação da República, não sendo possível negar o peso de uma minoria mestiça ao Império e à ideologia liberal

PRANDO, em apud a esta fala de ZAFFARONI, diz que “Foi posteriormente, enquanto constituição do controle sócio-punitivo pós-colonial, que foi instrumentalizado o discurso contratualista e disciplinarista em substituição ao discurso absolutista próprio dos Estados latinos colonizadores”.95

Afirma, ainda, que “Houve a adoção praticamente literal das legislações dos Países Centrais, que se apresentavam de modo quase inadaptável à realidade marginal. O Código Penal Brasileiro de 1830, por exemplo, combinou em sua redação matrizes disciplinaristas e contratualistas, e produziu contraditoriedades, especialmente quanto à regulação deconflitos em que os escravos eram parte” 96.

Assim, conclui que

(...) especialmente no século XIX, com o processo de urbanização brasileiro, que se deu a passagem do controle punitivo privado senhorial enquanto modelo exclusivo, para o controle punitivo público (...) ocorreu não uma simples transferência do controle privado ao público, ou antes, uma simples especialização e publicização do controle punitivo, mas sim uma relação de complementariedade entre essas duas formas de controle. Sob essa formação histórica do controle penal brasileiro, tudo leva a concluir que em sua organização, o alto grau de violência e, bem, a presença de um controle subterrâneo em consonância ao controle oficial é antes uma formação endêmica própria da estruturação marginal econômica e política e de suas contraditoriedades. 97

Não diferente foi a concepção do Estado Democrático de Direito brasileiro pactuado em 1988, que adaptou-se à legislação penal e processual penal emanadas de governos historicamente autoritários e antidemocráticos, desenvolvendo-se, assim, em meio as ambiguidade jurídica e sociológicas que são estabelecidas, mesmo tendo como fundamento os princípios liberais da modernidade, o que BARATTA denomina de “mito do Direito Penal como direito igualitário”98.

(...)” (tradução livre da autora) – ZAFFARONI, Raul Eugenio. Criminologia. Aproximación desde un

margen, 1988, p. 124. 95

PRANDO, C. C. M. A contribuição do discurso criminológico latino-americano para a compreensão do controle punitivo moderno: controle penal na América Latina. Veredas do Direito (APUD ZAFFARONI, Raul Eugenio. Criminologia. Aproximación desde un margen, 1988, p. 124-125).

96

Cf. PRANDO, C. C. M. A contribuição do discurso criminológico latino-americano para a compreensão do controle punitivo moderno: controle penal na América Latina. Veredas do Direito.

97

Cf. PRANDO, C. C. M. A contribuição do discurso criminológico latino-americano para a compreensão do controle punitivo moderno: controle penal na América Latina. Veredas do Direito.

98

É neste contexto atual que se enquadram os princípios garantidores de limitações às penas privativas de liberdade, objeto fundamental da presente pesquisa, dentre eles o princípio da presunção de inocência (art. 5° inc. LVII, da CRFB/1988), em que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Ainda, são estabelecidos outros princípios, também no art. 5°, conexos à preservação da liberdade, da integridade e do devido processo legal, o qual sustetam o ordenamento penal e processual penal99. Todavia há de se pontuar

significativas diferenças entre as penas privativas de liberdade e as prisões cautelares, que será feita no Capítulo 3.