• Nenhum resultado encontrado

O FUTEBOL NO BRASIL: OS MISSIONÁRIOS E AS LINHAS DE

CAPÍTULO 01: FUTEBOL, MÍDIA E GOVERNO: IDENTIDADE NACIONAL

1.1 LINHA DO TEMPO: DAS ORIGENS AO "FUTEBOL MODERNO" E SUA

1.1.1. O FUTEBOL NO BRASIL: OS MISSIONÁRIOS E AS LINHAS DE

A diminuição das fronteiras geográficas por meio da difusão do futebol, vai ao encontro da força da Inglaterra enquanto potência mundial do século XIX. O grande poder econômico e comercial proveniente da produção industrial e a soberania militar da marinha inglesa foram as molas propulsoras para que o futebol ganhasse novos ares – por que não dizer, novas identidades.

Essa posição, enquanto um Império comercial e militar, assumida pelos ingleses, reforçou a exportação de tecnologias e empresas para suas colônias. Junto às empresas (principalmente das áreas têxtil, energia e ferroviárias) também foi exportado o modelo inglês do futebol. Diante desse fato, o antropólogo brasileiro José Sergio Leite Lopes, em suas pesquisas menciona que existem três compreensões que podem elucidar a expansão e a popularização do futebol por outras terras:

O transplante do futebol inglês para outros países se dá através das elites locais: ao mesmo tempo em que se alcança a popularização e a profissionalização na

33 Cf. ELIAS, Nobert. O processo civilizador: Formação do Estado e Civilização. Rio de Janeiro, Jorge

Zahar, 1993. ELIAS, Norbet; DUNNING, Eric. A busca da excitação. Lisboa, Memória e Sociedade, 1992. Os autores em seus trabalhos lançaram uma reflexão sobre os processos civilizadores da humanidade, afirmando que o autocontrole corporal por meio do esporte se constitui em uma mudança fundamental na conduta e nos sentimentos humanos, rumo a uma direção mais civilizada do indivíduo dentro da sociedade.

Inglaterra, as elites fornecem os meios para a difusão no exterior. A apropriação do futebol das elites locais ocorre a) com a frequência e coexistência nas escolas de elite inglesas (ou nas escolas europeias onde o futebol já era difundido, como na Suíça); b) pelo acesso a esportes organizados por empresas inglesas no exterior, ou mesmo em empresas locais de capital, onde a presença de técnicos ingleses promove o passatempo entre os funcionários da empresa; c) através da convivência inglesa nos clubes, originalmente de elite, sejam aqueles dedicados a outros esportes como remo, críquete ou atletismo e que mais tarde aderiram à prática do futebol. (LEITE LOPES, 1998a, p. 3 – tradução nossa34)

Segundo Leite Lopes, o futebol se popularizou e se profissionalizou rápido na Inglaterra na metade do século XIX, algo que demorou acontecer em outras colônias e países, como no caso do Brasil, que somente 50 anos mais tarde iria fecundar esse processo, já no início do século XX. Essa “exportação” do futebol moderno desembarca em terras brasileiras (em uma historiografia amplamente difundida como oficial35) quando o jovem paulista Charles Miller retorna ao Brasil em 1894 após seus estudos na Inglaterra, e na bagagem traz com ele um livro de regras do futebol, além de bolas, camisas e chuteiras (LEITE LOPES, 1998a). Essa chegada de Miller impulsiona a prática na cidade de São Paulo, porém, existiram outros “missionários” e “causos” do futebol que levaram suas práticas para outras cidades brasileiras. Assim, como na abertura deste capítulo, no qual nos colocamos diante de dados e fatos históricos oficiais, retomamos ao método de relativizar o processo do surgimento ou origem desse fenômeno, não devendo ficar restrito ao que é julgado como “oficial”.

Esse entendimento nos leva a explorar histórias de que o futebol chegou ao Brasil bem antes de Charles Muller (1894), ou próprio Oscar Cox (1897) e Hans Nobiling que chegaram ao Brasil, depois de viver em Hamburgo na Alemanha. Sobre a chegada e a introdução do futebol no Brasil, Leite Lopes afirma que:

34 NT. El trasplante del fútbol inglés a otros países se da a través de las elites locales: en el mismo momento cuando se logra la popularización y profesionalización en Inglaterra, las elites proporcionan los medios para la difusión en el exterior. La apropiación futbolística de las elites locales se produce a) con la frecuentación y convivência en las escuelas inglesas de elite (o en escuelas europeas donde el fútbol ya estaba difundido, como en Suiza); b) a través del acceso a la práctica deportiva organizada por las empresas inglesas en el exterior, o incluso en empresas de capitales locales donde la presencia de técnicos ingleses promueve el pasatiempo entre los funcionarios de la empresa; c) a través de la convivência inglesa en los clubes, originariamente de elite, ya sea aquellos dedicados a otros deportes como el remo, el cricket o el atletismo y que después adhieren a la práctica del fútbol.

35 Na continuidade do processo de relativizar os contextos dito como oficiais, vale mencionar os aspectos

indígenas no Brasil. Em consulta ao site da Fundação Nacional do Índio – FUNAI eles informam citando dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE que "Hoje, segundo dados do censo do IBGE realizado em 2010, a população brasileira soma 190.755.799 milhões de pessoas. Ainda segundo o censo, 817.963 mil são indígenas, representando 305 diferentes etnias. Foram registradas no país 274 línguas indígenas"; posto isso, podemos recordar os Povos Guaranis (supostamente “criadores” do futebol – fato já narrado aqui) e analisar as fronteiras geográficas do atual território Brasileiro e compreender que antes de 1500 éramos “Paraguai” sendo parte integrante desse processo multicultural. Assim, podemos elucidar uma ideia: será que o futebol no Brasil tem origens indígenas antes das origens europeias?

Foram os jogos realizados como resultado do esforço missionário, de convicção, da colônia inglesa local e depois de jovens da elite brasileira por ex-alunos da Inglaterra, Suíça ou Alemanha, residentes no Brasil, de volta ao país, são aqueles que frutificaram na criação de equipes permanentes em clubes preexistentes ou na fundação de clubes de futebol. Se destacam por essa iniciativa um filho de inglês com brasileira, Charles Miller, um ex-aluno em Southampton, que trouxe de volta em sua bagagem para São Paulo em 1894, duas bolas de couro e um uniforme de futebol completo se destacam por essas iniciativas; o filho de ingleses que se estabeleceram no Rio de Janeiro por duas gerações, Oscar Cox, em 1897, de volta de Lausanne, onde jogou futebol na escola; ou mesmo Hans Nobiling, que chegou ao Brasil de Hamburgo naquele ano também e foi membro do clube de Germânia naquela cidade. Miller conquistou os associados do clube de críquete São Paulo Athletic Club para a prática do futebol e é considerado o introdutor do esporte no Brasil, tendo conquistado notoriedade como jogador em São Paulo; Cox levou três anos para formar uma equipe de brasileiros na Associação Atlética de Críquete do Rio fundada por seu pai [...] Nobiling fundou o clube Germânia, em São Paulo, e convocou altos funcionários do comércio naquela cidade para jogar contra equipes inglesas que surgiram em clubes e faculdades (LEITE LOPES, 1998a, p. 4, tradução livre36)

No Brasil o termo “pelada”, pode ter inúmeras conotações. Porém, ao relacionar o termo com o futebol, podemos chegar ao senso comum de que seria um “tipo do jogo” de futebol no qual as regras “internacionais-oficiais” são seguidas, mas podem ter algumas modificações; como o local e formato do “campo”, a quantidade de jogadores e talvez até a rígida presença do árbitro, não seja necessária.

Dito isso, podemos dizer que o registro mais antigo de uma “pelada” no Brasil, foi um jogo disputado no ano 1875, na cidade de Curitiba, quase 20 anos antes da antes da chegada de Charles Miller ao país, após seus estudos. Três anos depois, houve outra disputa de “pelada”, agora o cenário era o Rio de Janeiro, em campo marinheiros ingleses; na plateia, até a princesa Isabel esteve presente. Quem apresenta esses fatos é o historiador e professor Luiz Carlos Ribeiro, da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Em entrevista dada para Felipe Germano37 o professor explica seu argumento

36 NT. “sin embargo, fueron los partidos jugados como resultado del esfuerzo misionero, de

convencimiento, de la colonia local de ingleses y luego de los jóvenes de elite brasileños por parte de ex- estudiantes em Inglaterra, Suiza o Alemania residentes en Brasil, de vuelta en el país, los que fructificaron en la creación de equipos permanentes en clubes preexistentes o en la fundación de clubes de fútbol. Se destacan por esas iniciativas un hijo de inglés y brasileña, Charles Miller, ex-estudiante en Southampton, que trajera em su equipaje de regreso a San Pablo en 1894 dos pelotas de cuero y un uniforme de fútbol completo; el hijo de ingleses establecidos em Río de Janeiro por dos generaciones, Oscar Cox, en 1897, de vuelta de Lausana donde jugaba fútbol en el colegio; o incluso Hans Nobiling, que llegó a Brasil desde Hamburgo también ese año y fue membro del club Germânia de esa ciudad. Miller ganó a los asociados del club de cricket São Paulo Athletic Club para la práctica del fútbol y se lo considera introductor del deporte em Brasil, habiendo alcanzado notoriedad como jugador en San Pablo; a Cox le llevó tres años formar um equipo de brasileños en la Rio Cricket Athletic Association que había sido fundada por su padre, y después ayudó a fundar el Fluminense Football Club en Río de Janeiro en 1902, el primer club de fútbol de Brasil; Nobiling fundó el club Germânia en San Pablo y convocó a altos funcionarios del comercio de esa ciudad para que jugaran contra equipos de ingleses que surgían en clubes y facultades”

37 GERMANO, Felipe. O futebol chegou ao Brasil de trem – e muito antes de Charles Miller. Revista

A história é escrita a partir de registros, só que é complicado encontrar documentos sobre o futebol brasileiro no século 19. Charles Miller era um membro da burguesia paulista – seu pai era diretor da São Paulo Railway, que originou o São Paulo Athletic Club –, e as elites são fáceis de registrar: aparecem em jornais, se preocupam em guardar documentos. Essa lenda é propagada porque os historiadores são preguiçosos ao procurar a origem do futebol no Brasil. (RIBEIRO, L. in GERMANO, F. 2018)

Além disso, Ribeiro explica que o futebol chegou ao Brasil por meio da expansão ferroviária. Durante o império de Dom Pedro II, o influente empresário Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá, incentivou e convenceu o Imperador sobre a proposta de desenvolvimento do país, que passava pelos trilhos. Com isso, a partir de 1852 (ponto de partida da primeira ferrovia) até a Proclamação da República, em 1889, foram construídos mais de 9.500 km de trilhos – ainda hoje, essa empreitada desenvolvimentista representa um terço total da nossa malha ferroviária – os responsáveis por essas obras, eram as empresas e seus funcionários internacionais, na sua maioria de origem inglesa. Como o futebol já era popularizado e praticado na “terra da rainha”, os funcionários que chegaram ao Brasil para construir as linhas ferroviárias faziam do esporte seu momento de lazer. Por isso, o surgimento de inúmeras “peladas” em campos de várzea38. Diante disso, Luiz

Ribeiro destaca que o futebol foi um esporte que chegou pela abertura das fronteiras e que existiram inúmeros “missionários do futebol”

Houve dezenas, centenas de Charles Millers. O esporte chegou aqui de maneira espontânea, praticamente ao mesmo tempo em São Paulo, Minas, no Sul, nas capitais litorâneas, no Nordeste. Foi obra dessa rede de imigrantes, todos fundadores do futebol brasileiro (RIBEIRO, L. in GERMANO, F. 2018). Esse fato defendido por Ribeiro também vai ao encontro dos fatos narrados por Ernani Buchmann, autor do livro39: “Quando o futebol andava de trem: memória dos

times ferroviários brasileiros”, um apanhado histórico sobre a memória dos clubes ferroviários, que surgiram com a expansão das linhas de trem e foram fundados por trabalhadores. Entre as décadas de 1900 até 1970 foram fundados mais de 94 clubes em 20 cidades diferentes, dentre eles alguns seguem até hoje em atividade e disputando torneios de primeira divisão, a exemplo temos: Associação Desportiva Ferroviária Vale

chegou-ao-brasil-de-trem-e-muito-antes-de-charles-miller>. Acesso em: 01/03/2019.

38 Um significado para o espaço no qual o futebol é praticado em campos que não possuem estrutura

adequada para prática do esporte oficial, onde os jogadores geralmente não são profissionais do futebol. Esse “tipo de futebol” na várzea, também pode ter o significado de “pelada” (“baba”, “rachão”, entre outros termos regionais) sendo uma prática do esporte que não segue muitas as regras rígidas (oficiais); sendo praticado fora do nível de campeonatos “oficiais/amadores”.

39 BUCHMANN, Ernani. Quando o futebol andava de trem: memória dos times ferroviários brasileiros.

do Rio Doce, conhecida nacionalmente como Desportiva Ferroviária no estado do Espirito Santo; e o tradicional time cearense Ferroviário Atlético Clube.

Figura 1: Mapa indicando a fundação de Clubes por estado. FONTE: Montagem do autor sobre arte da Revista Super Interessante - editora Abril (2018)40.

Outros times deram lugares a novos clubes, ou foram extintos. Um caso de mudança apontado pelo próprio Buchmann é o antigo clube Ferroviário de Curitiba, uma das agremiações que, anos mais tarde, deu origem ao Paraná Clube, fundado no bairro operário da Vila Capanema, local em que até hoje o clube manda seus jogos, no estádio que leva o mesmo nome do Bairro. O estádio da Vila Capanema também já foi utilizado durante a Copa do Mundo de 1950 no Brasil.