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Gênero é poder: regulações de gênero e sexualidade nos sujeitos

3 REGULAÇÕES DE GÊNERO E SEXUALIDADE: GÊNERO BINÁRIO,

3.1 Gênero é poder: regulações de gênero e sexualidade nos sujeitos

Muito antes de se engajarem na psicanálise, primeiro como analisantes e depois como analistas, as entrevistadas já estavam enredadas em ordens sociais e históricas específicas, no interior das quais se constituíam como sujeitos e nas quais o gênero e a sexualidade, entre outros eixos de sua existência subjetiva/social, se produziam através de processos sociais regulatórios.

Tais regulações, no sentido do gênero e da sexualidade, eram, como se pode depreender dos relatos, heteronormativas. Isso significa que, nos processos sociais de diferenciação do gênero e da sexualidade, as diferenças masculina e heterossexual se impunham como dominantes na regulação das relações de poder entre os sujeitos e na dinâmica de produção de sujeitos normais e abjetos. A dominância do gênero masculino implicava a fixação e a estabilização social de determinados sentidos e na valorização de certos atributos em detrimento de outros, conferindo a certas configurações de masculinidades um lugar privilegiado em relação a outras masculinidades e às feminilidades, que, dessa forma, figuravam em posição de inferioridade. No que diz respeito à heterossexualidade, da mesma maneira imposta como padrão de referência para a constituição subjetiva e das relações sociais, outras diferenças seriam relegadas à condição de subalternidade. Essas diferenças se articulam com base no que J. Butler (2006, p. 23) aponta como a fabricação discursiva e social de linhas de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo, de modo estabilizar as expressões do gênero e da sexualidade dentro de limites hegemonicamente inteligíveis.

Como argumentei no capítulo 2, é somente através de processos de inteligibilidade e de normalização social (envolvendo ideais normativos socialmente hegemônicos e a assimilação e resistência de/a esses ideais) que o gênero e a sexualidade vão sendo corporificadas, ganhando coerência e estabilidade. Essa produção se faz de acordo com matrizes históricas normativas de poder, de modo que se busca conjurar as descontinuidades e incoerências de gênero que se produzem nos mais variados contextos. A normalização social/psíquica do gênero e da sexualidade implica a produção de diferenças binárias nas quais supostamente se esgotariam todas as possibilidades de suas expressões, mas, ao mesmo tempo e no mesmo movimento, outras manifestações não normativas são igualmente produzidas.

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Esse processo precisa ser compreendido em sua dimensão de lutas de poder: travam-se lutas (e mesmo guerras sexuais111) para estabilizar os significados do gênero e da sexualidade

de modo a controlar o caráter enigmático e intrinsecamente problemático do sexo112. É o que propõe J. Scott (2017) quando afirma que o gênero é um conjunto de regulações sociais que visam construir um sentido estável e fixo para a diferença sexual, a qual é fundamentalmente indeterminada e aberta. Busca-se também assegurar a estabilidade das ordens regulatórias através da redução das diferenças a binarismos supostamente naturais ou inquestionáveis. Esse processo social de binarização das diferenças e ocultação das diferrâncias também tomar lugar quanto a outras diferenças sociais (de raça, etnia, classe, geração etc.) e, por isso, o gênero também pode servir de chave para a compreensão desses outros processos. Por um lado, processos de estabilização dos significados da diferença sexual; por outro, questionamento e desestabilização desses mesmos significados. Diferenças binárias e diferrâncias que proliferam para além dos binarismos. Normalização, pela estabilização de identidades coerentes; abjeção, pela produção de outras identidades cuja exclusão é necessária para a sustentação da coerência das primeiras; e estranhamento, porque a singularidade subjetiva não se exaure nem num polo nem no outro, mas os problematiza e perturba.

Operações desses processos de inteligibilidade e normalização da vida subjetiva e social, com seus fluxos dominantes e subalternos, seus sentidos hegemônicos e também esquisitos, estiveram presentes em diferentes relatos ao longo da pesquisa113. Um entrevistado relatou que, durante a fase final de seu ensino médio, havia estudado em um colégio exclusivamente masculino. Acrescentou que, na mesma época, na cidade, existiam também outros colégios, exclusivamente femininos. Tal separação me pareceu bastante indicativa da construção do gênero como uma divisão binária em que mulheres e homens deveriam ser produzidas como categorias socialmente distintas, possuidoras de atributos específicos, supostamente essenciais e, sobretudo, excludentes. Sua separação em espaços escolares distintos, correlativo a um contexto de (heteros)sexualização das relações, corresponderia a

111 Cf. a noção de “guerras sexuais” trabalhada por G. Rubin (2007) em Thinking sex: notes for a radical theory

of the politics of sexuality (Pensando o sexo: notas para uma teoria radical da política da sexualidade - tradução livre). A autora discute os conflitos contemporâneos sobre valores sexuais e condutas eróticas, apontando que eles têm muito em comum com disputas religiosas de séculos anteriores, adquirindo um imenso peso simbólico. “Disputes over sexual behaviour often become the vehicles for displacing social anxieties, and discharging their attendant emotional intensity. Consequently, sexuality should be treated with special respect in times of great social stress” (As disputas sobre o comportamento sexual muitas vezes se tornam os veículos para deslocar ansiedades sociais e descarregar sua concomitante intensidade emocional. Consequentemente, a sexualidade deveria ser tratada com especial respeito em tempos de grande estresse social) (p. 143).

112 Cf. capítulo 2 (#depertoninguéménormal).

113 Em função dos aspectos muito pessoais desses relatos, omitirei, também nesta seção, a identificação das

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uma suposta complementaridade no nível das representações sociais.

O entrevistado destacou que, em uma de suas escolas, os meninos eram categorizados em “peixinhos” (geralmente os mais apreciados e protegidos pelos diretores) e os “perdidos” (os que brigavam, jogavam futebol, fumavam, faltavam aula para ir ao cinema). Relatou que se incluía na última categoria e que não havia o correspondente às “perdidas” nos colégios femininos, acrescentando que, naquele contexto, tal expressão para a mulher já assumiria imediatamente um outro sentido, com conotação sexual: era “prostituta”. Mencionou uma música da época: “Perdida estás pra sempre, mas a culpa foi tua; deixaste de ser mãe, para ser mulher da rua”. Apesar de isso já lhe chamar a atenção, aparecia, por outro lado, como muito naturalizado.

psicanalista: Era natural que os meninos tinham um tipo de comportamento e de brinquedo, de educação, de inserção, de jogos e isso, aquilo e aquilo outro; e as meninas tinham outro tipo de comportamento, recatadas… Isso foi quase dez anos antes da chamada liberação sexual.

O modo de classificação das identidades masculinas citadas pelo entrevistado também opera no interior de um marco binário, que tenta conter a proliferação das masculinidades. As demais identidades possíveis ficam invisibilizadas pela imposição dessa categorização binária. “Ser perdido” para um homem não tem a mesma conotação pejorativa que assumiria para uma mulher, a qual seria imediatamente lida como “prostituta”, o que, da mesma forma, sugere uma divisão binária entre mulheres respeitáveis (mães) e mulheres “da rua” (prostitutas), fazendo parecer que inexistem outras diferenças no interior desse campo identitário feminino. Além disso, é importante buscar questionar o viés de classe que atravessa tais divisões: não são categorias universais que poderiam ser encontradas em qualquer contexto social, mas sugerem uma determinada configuração articulada de gênero, classe e raça, dentre outros, na medida em que se impõem aos sujeitos ideais específicos de casamento, união monogâmica, maternidade, relações interpessoais, uso do tempo livre, estilo de vida e relação com as normas. Tais experiências não podem ser universalizadas nem compreendidas dentro de marcos estruturalistas que tenderiam a perceber o social como estruturado em partições binárias e excludentes que supostamente conteriam todas as possibilidades das diferenciações de gênero, classistas e raciais.

De acordo com o relato do entrevistado, algumas coisas eram próprias de mulheres e outras, de homens. Mencionou que, nessa época, se dizia, por exemplo, que “futebol é pra homem”, “não tem que estar gritando aí de dor”, “homem não chora”, expressões que apontam para sentidos sociais hegemônicos da construção da masculinidade: a competição e o

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controle das emoções e da expressão da fragilidade. Essas poucas referências já nos permitem perceber o funcionamento das tecnologias de gênero: não é a existência prévia de dois sexos que configura o gênero binário, mas sim a partilha binária de atributos, atividades, comportamentos etc. que constrói a dualidade de mulheres e homens inteligíveis e normalizados.

Esses processos de fabricação do gênero binário se desenrolam nos mais diversos espaços sociais. Temos aqui referências a um deles, a escola, bastante relevante por sua importância e grau de universalização em estratos médios e de elite. A escola tem sido uma das instituições mais estudadas e teorizadas nas ciências humanas e sociais. Hoje, nos é clara a percepção de que o sistema escolar concorre, fundamentalmente, para os processos de produção e reprodução, bem como questionamento e transformação de qualquer ordem social. Louis Althusser (1968) teorizou a escola como um dos aparatos ideológicos do Estado, este “sistema de diferentes escolas públicas e privadas” a que as crianças são entregues a partir de tenra idade e para um longo período de tempo e que funcionaria como um lugar privilegiado de transmissão da ideologia dominante; ao mesmo tempo, objetivo e lugar da luta de classes. Para Michel Foucault (1987), a escola seria uma das engrenagens específicas do poder disciplinar. A reestruturação das instituições modernas, em função de um novo sistema de controle por vigilância, com os novos modelos de acampamentos militares, hospitais e fábricas, também alcançou as escolas, com ênfase, em seu interior, para as funções de supervisão. P. Bourdieu e Jean-Claude Passeron (1996), por sua vez, destacaram a importância dos processos de educação na estruturação e reprodução das relações sociais de poder. O sistema educacional não só sancionaria o capital cultural herdado na família como construiria uma aparência de legitimidade para as desigualdades sociais. A escola seria um dos espaços sociais privilegiados de exercício da violência simbólica: a visão da sociedade aí transmitida estaria conformada pelas categorias dominantes impostas pelas que ocupariam posições sociais dominantes e a dominação se materializaria através da interiorização e aceitação dessas categorias.

No entanto, são, sobretudo, teóricas do gênero as que têm exposto a escola como espaço, ao mesmo tempo, marcado pelo gênero e produtor dele. Atravessada por desigualdades de gênero, a escola contribui para a produção dos binarismos de gênero e para a reprodução das hierarquias sociais entre homens e mulheres, pessoas heterossexuais e não heterossexuais, através da imposição de normas de conduta e ideais normativos para “meninos” e “meninas”, concebidos como categorias essencialmente diferentes e naturalizadas. Por outro lado, também é um lugar privilegiado para a transformação dessas

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relações, na medida em que envolve a manifestação de uma agência política no processo mesmo de fabricação dos sujeitos que busca moldar. Assim, para T. de Lauretis (1987), por exemplo, a escola é um das muitas “tecnologias de gênero”, aparato material e simbólico pelo qual se processa a transformação de indivíduos específicos em “homens” e “mulheres” de acordo com representações dominantes do sistema de gênero em vigor. No entanto, argumenta que os termos de uma construção diferente do gênero também subsistem nas margens dos discursos hegemônicos, inclusive aqueles que atravessam a escola. Podemos perceber, então, por que a escola é um espaço que tem recebido tanta atenção nas disputas políticas de nossas sociedades.

M. Viveros Vigoya (2016c) discorreu sobre o clima de pânico que se gerou ante a falsa notícia de que o Ministério da Educação da Colômbia estaria tentando impor às estudantes do país a assim chamada “ideologia de gênero”, através da veiculação de um material pornográfico supostamente destinado a promover a homossexualidade nas escolas. Tem sido comum, em muitas sociedades ocidentais, que se utilize a estratégia do pânico moral114 para reagir a iniciativas que visam discutir e combater condutas e normas de gênero e sexualidade discriminatórias dentro de determinados espaços sociais, incluídas as escolas.

Da mesma forma, em 2011, setores da sociedade brasileira e seus representantes no parlamento, reagiram de forma bastante emocional à iniciativa do Ministério da Educação de produzir material de orientação contra práticas homofóbicas no sistema público de educação do país (a iniciativa foi, numa típica estratégia de pânico moral, chamada de “kit gay”). Igualmente, houve também fortes reações ante à distribuição de uma cartilha, produzida em 2013, sobre educação sexual com boatos de que elas estariam incitando as crianças à prática sexual e a atos sexuais “pervertidos”. O mesmo também aconteceu na França com a proposta do ABCD de l’égalité115, um programa criado pelo Ministério dos Direitos das Mulheres e implantado a partir de 2013. O programa se destinava a lutar contra o sexismo e os estereótipos de gênero nas escolas do país, buscando promover a igualdade entre meninas e meninos na escola. Tal programa foi objeto de uma campanha de boatos, no curso da qual se acusou o mesmo de buscar perverter meninas e meninos de sua suposta “natureza sexual”,

114 De acordo com Carla Machado (2004, p. 60), a noção de pânico moral foi utilizada pela primeira vez por Jock

Young (sociólogo escocês). Um ano mais tarde, o sociólogo Stanley Cohen (2002) utiliza a noção para se referir a processos sociais nos quais pessoas ou grupos passam a ser afirmados como perigos para valores sociais. O pânico moral pode ser entendido como um recurso político acionado no sentido de conter mudanças sociais que ameaçam reconfigurar relações de poder em determinada ordem hegemônica, quando subjetividades antes abjetadas e localizadas em zonas sociais marginais ganham visibilidade e novo posicionamento social, borrando as fronteiras que, de forma dominante, separariam o normal do anormal.

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desviando-as de seu caminho “reto” e de buscar extinguir a “diferença sexual”, impondo a assim chamada “teoria de gênero”116.

A escola tem sido, então, um dos principais espaços de reprodução e contestação das regulações de gênero e sexualidade. Obviamente, entre um momento histórico e outro, já que entrevistei analistas de diferentes gerações, algumas mudanças sociais tiveram lugar. Por exemplo, na atualidade, predominam na cidade as escolas mistas e cada vez mais mulheres praticam esportes, inclusive o futebol. No entanto, as tecnologias de gênero, pelas quais o enquadre binário e complementar de mulheres e homens se processa, continuam ativas e reproduzindo as regulações androcêntricas e heteronormativas das relações sociais.

Isso pode ser percebido a propósito de um episódio comentado por outro entrevistado e que teve relativa repercussão na mídia em São Luís. No início do ano escolar de 2016, uma escola confessional e particular da cidade solicitou, na lista de material escolar, brinquedos em função do gênero das estudantes. Embora o material fosse classificado como opcional, meninos deveriam levar kits de ferramentas (médico ou bombeiro) e as meninas, kits de cozinha ou cabeleireira. Uma mãe chegou a denunciar a escola ao Programa Estadual de Proteção ao Consumidor do estado do Maranhão (PROCON/MA):

Quando eu peguei a lista da escola, eu tinha conhecimento dos materiais proibidos pelo Procon. Então, eu já fui cortando alguns. E quando me deparei com os jogos, mesmo sendo opcionais, eu fiquei assustada porque eles diferenciam as crianças por gênero. Em pleno século XXI, isso é inaceitável. Meninos podem sim ser cozinheiros ou cabeleireiros e meninas podem sim ser médicas ou bombeiras [...] (RIBEIRO, 2016, p. [?]).

A lista foi alvo de diversas críticas no âmbito das redes sociais porque, justamente, reproduzia a associação, típica de classificações heteronormativas, dos homens com determinadas profissões (a medicina e a segurança pública/proteção civil) e das mulheres com

116 No entanto, tais reações não podem ser generalizadas; e falar de gênero nas escolas não sempre gera pânicos

morais e reações apaixonadas. A partir de 2017, todas as escolas do estado australiano de Victoria passariam a ter aulas sobre estereótipos de gênero. A matéria incluída no currículo escolar teria o título de “Relações Respeitosas” e seria implementada tanto na escola fundamental quanto na de ensino médio. Seu programa teria por objetivo discutir temas como: desigualdade social; violência de gênero; privilégio masculino; desigualdade de salários; orientação sexual; controle da agressividade; e os perigos da pornografía, entre outros. Na educação básica, por exemplo, um dos enfoques seria o de desmitificar atividades e atributos como “masculinos” ou “femininos” e apresentá-las como abertas à escolha de meninos e meninas: meninas podem jogar futebol e ser fortes; meninos podem ser afetuosos e cuidar dos bebês. Na educação secundária, as estudantes deveriam aprofundar suas perspectivas estudando categorias relacionadas ao que se tem convencionado chamar de “diversidade sexual”, como “cisgênero”, “transexual”, “pansexual” (ESCOLAS..., 2016). No Peru, uma recente pesquisa urbano-rural (realizada entre 13 e 15 de janeiro de 2017), para o Ministério da Educação do país, revelou que 94% da população apoia as propostas contidas no novo currículo nacional de educação básica e está de acordo com que o Ministério da Educação promova um enfoque de igualdade de gênero nas aulas. Surpreendentes 93% dos consultados são a favor de que o Ministério garanta que nenhuma aluna sofra discriminação “sob nenhuma circunstância ou sofra maltrato escolar” (MAYORÍA..., 2017).

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o trabalho doméstico e a estética. A divisão sexual do trabalho, reproduzida nesse expediente, identifica e destina homens com/aos espaços públicos e mulheres, com/aos privados, num viés que tem sido duramente criticado tanto por movimentos de mulheres quanto por teorias de gênero.

Ao comentar o episódio, o psicanalista entrevistado afirmou:

psicanalista: [...] então, eu vi uma chateação muito grande de uma galera numa época aí, que era assim: porque, num determinado colégio, pegaram os brinquedinhos de menino... e os brinquedinhos de menina... separaram esses grupos para brincar. Ora, quem dá o presente, o brinquedo, seja lá o que for aquilo, está contando, está sendo contado ali. Essa esterilização, essa higienização, essa tentativa de tornar enxuto um ser, como se ele não pertencesse a uma transmissão, como se ele não tivesse recebido vamos chamar isso de carga, uma carga; ele recebe a carga dele e essa transmissão, a única coisa que ele pode fazer com isso é se haver com isso, é poder falar isso e se submeter ao que está colocado para ele. [...] Hoje, tem uma tentativa e tem segmentos políticos que estão bem fechados, já nessa... de tentar esterilizar, como se um ser humano, o ser falante... como se ele... lembrei da tua pergunta “Nasce ou não nasce?”

eu: Como se não houvesse essa diferença?...

psicanalista: Transmissão, como se não tivesse transmissão... eu: ...no sentido de apagar essa diferença?

psicanalista: ...apagar as diferenças, primeiro porque apaga as diferenças...

eu: A gente pode ser tudo igual, homem pode brincar com brinquedo de mulher e…

psicanalista: e dois: não contar mais com quem deu o brinquedo, que é muito complicado.

Na sequência da entrevista, o psicanalista afirmou que uma mulher poderia, por exemplo, tanto ser cozinheira como dirigir um caminhão, pelo que entendi que não se tratava, de acordo com seu ponto de vista, de impor profissões pelo gênero. No entanto, sua interpretação do episódio se encaminhou no sentido de que disponibilizar brinquedos de forma indiferente para meninas e meninos corresponderia a um trabalho de “higienização”, referido a determinados “segmentos políticos”, com o consequente apagamento da diferença sexual e a desconsideração do legado intergeracional que daria a cada sujeito um lugar na cadeia das transmissões simbólicas. Acrescentou que esse legado poderia, posteriormente, vir a ser questionado por cada sujeito, na medida em que ele tivesse sido afetado de modo particular. Nesse sentido, entendi que o entrevistado considerava desnecessário e até

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prejudicial para os sujeitos o questionamento das regulações estabelecidas de gênero, pois elas seriam uma consequência inevitável da necessidade da diferença entre os sexos e de sua transmissão simbólica.

Voltarei a esse tema no capítulo 4, quanto à reação de diversas psicanalistas aos argumentos das teorias de gênero (e seu combate a elas através de imputações fundadas na fantasia da destruição da diferença sexual e na homogeneização subjetiva e social), mas quero destacar, desde já, alguns aspectos relevantes dessa discussão. Me parece que não se trata de negar a transmissão ou herança simbólica que sempre haverá entre as diferentes gerações, mas a naturalização dos sentidos pelos quais, por exemplo, as mulheres estariam destinadas ao espaço doméstico e a tarefas correlatas e os homens, ao espaço público com os privilégios que diversos estudos apontam que isso implica. Trata-se de questionar a postulação de uma essência feminina ligada aos cuidados e denunciar as dominações sociais que decorrem dessa construção que, com suas designações e imposições, não são neutras, mas constituídas a partir de certos estados das relações de poder.

Essa dimensão escapa a várias psicanalistas, como, aliás, a todos os sujeitos, pelo movimento próprio às tecnologias de gênero de produzir o apagamento de seus processos e gerar uma naturalização e universalização de situações que, no entanto, são históricas e