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SUMÁRIO

1. A sexualidade no século XXI: conceitos e implicações para a saúde da mulher 1 A sexualidade circunscrita pela Medicina: definindo conceitos na modernidade

2.1 Gênero na identidade da Enfermagem

No final dos anos de 1960, a sexualidade muda de contexto, o sexo busca sua emancipação da essencialidade e da função reprodutiva. É iniciado ali um questionamento, por teóricos dos movimentos feminista e homossexual, sobre a verdade do sexo ser instintivo ou não, que contribuiu enormemente para a explosão de estudos no campo das ciências humanas e sociais, aprofundando a crise do paradigma sexológico, essa perspectiva que se abriu tem sido chamada construcionista. Somado à experiência visível das mulheres emancipadas da reprodução, como único destino feminino da sexualidade, com os experimentos urbanos que produziam sociabilidades e sexualidades homossexuais, foi validada a noção de que a vida cotidiana, histórica e socialmente construída era reinventável (Paiva, 2008).

A construção da identidade profissional da enfermagem tem forte tendência à feminização, em que por tempos a mulher teve seu papel social ocupado exclusivamente aos cuidados com a casa, com as crianças e os doentes da família, com tendência à doação (Lopes

& Leal, 2005; Spíndola, 2000; Santos, et al., 2008 ). Assim, passo a passo, as diferentes formas com que o corpo feminino foi analisado e interpretado, ao longo da história das ciências médicas e biológicas, influenciaram o modo pelo qual os profissionais da saúde vêm se comportando com relação à assistência prestada aos pacientes e suas dificuldades com o tema na equipe de saúde.

A enfermagem nasce como um serviço organizado pela instituição das ordens sacras, que associa a figura da mulher cuidadora, mãe, que sempre foi curandeira e detentora de um saber informal de práticas de saúde, passado de mulher a mulher. A marca das ordens religiosas impõe à enfermagem, por longo período, seu exercício institucional exclusivo, feminino e caritativo. Tendo um tardio processo de profissionalização, assegura essas características e reproduz as relações de trabalho sob o peso hegemônico da medicina masculina. Desta forma, ocorre uma seletividade sexual do trabalho, assentada em valores ideológicos religiosos, levando os grupos sociais a serem incorporados aos sistemas organizados de saúde em expansão, a partir dos avanços científicos e da organização capitalista do trabalho. Neste ponto denomina-se a noção de cuidado, enquanto ação concebida como feminina e produto das qualidades naturais das mulheres, que fornece condições ao seu exercício no espaço formal das relações de trabalho na saúde (Lopes & Leal, 2005).

A relação que existe entre as práticas médicas (tratamento) e as da enfermagem (cuidado) traduzem as ligações que existem entre natureza, legitimidade, gênero, classe e poder. A reconstrução cotidiana do poder médico e a dominação que exercem as práticas do (tratar) sobre as práticas do (cuidar) se articulam na dupla conjunção entre sexo e classe. Como se as primeiras: masculinas, científicas e dotadas de valores de verdadeira qualificação profissional fossem superiores às segundas: qualidades empíricas e femininas. Os atos médicos representam os atos-fins, são concretos, quantificáveis, justificam maior salário por atos realizados, enquanto dos da enfermagem, incorpora aos fins e se invizibiliza (Lopes & Leal, 2005).

Os grupos sociais que ocupam as posições centrais, dados como "normais" (de gênero, de sexualidade, de raça, de classe, de religião etc.), têm a possibilidade não apenas de representar a si mesmos, mas também de representar os outros. Eles falam por si e também falam pelos "outros" (e sobre os outros); apresentam como padrão sua própria estética, sua ética ou sua ciência e arrogam-se o direito das manifestações dos demais grupos. Por tudo isso, podemos afirmar que as identidades sociais e culturais são também políticas. As formas como elas se representam ou são representadas, os significados que atribuem às suas

experiências e práticas são, sempre, atravessados e marcados por relações de poder e estigmatização, como no caso das pessoas que assumem uma identidade diversa da norma (Louro, 2000).

Atualmente a categoria profissional da enfermagem vem batalhando para acompanhar os movimentos de transformação no mundo com relação à posição da mulher na sociedade, e a enfermeira vem se assumindo como cidadã, profissionalizando-se e conquistando seu espaço no mercado de trabalho, além de assumir papéis públicos de direção e gerência que antes eram reservados somente aos homens. Existe ainda um forte questionamento acerca das funções e capacidades desempenhadas pelas mulheres nos espaços públicos, no entanto, é um cenário que vem se transformando com o aumento do número de mulheres na liderança e gestão de espaços e equipes (Andrade, 2008; Padilha, Vaghetti & Brodersen, 2006).

Padilha, Vaghetti e Brodersen (2006), no estudo de revisão da literatura acerca do gênero em Enfermagem, expuseram que os estereótipos sexistas podem ocorrer desde a infância e estender-se ao longo da vida, como uma série de comportamentos predefinidos que obrigam, tanto a mulher como o homem, a uma luta constante pela libertação de seus papéis estáticos: colocando a mulher como estrela do lar e em posições subalternas ou objeto de prazer e o homem aparece ocupando papéis importantes no trabalho e no corpo social. E, dessa forma influenciam também a construção dos papéis sociais na enfermagem, traçando características estereotipadas que retratam o que se espera de uma enfermeira mulher: bondade, dedicação, carinho, abnegação e obediência servil.

Heilborn (1999) explica que a sexualidade e o gênero não têm a mesma importância para todas as pessoas. Assinala que essa variação é efeito dos processos sociais que se originam no valor que a sexualidade ocupa em determinados nichos sociais e nos roteiros específicos de socialização com que as pessoas vivem ao longo de suas trajetórias de vida. A cultura é a responsável pela transformação dos corpos em entidades sexuadas e socializadas, por intermédio de redes de significados que abarcam categorizações de gênero, de orientação sexual e de escolha de parceiros. Dessa forma, valores e práticas modelam, orientam e esculpem desejos e modos de viver a sexualidade, originando as carreiras sexuais e amorosas. Divididas binariamente, as carreiras sexuais de homens e mulheres brasileiros apresentam diferenças de gênero marcadas pela cultura vigente, fato constatado na pesquisa etnográfica, realizada no final do século XX com homens e mulheres de 20 a 45 anos. Heilborn (1999) descreve estas carreiras sexuais em masculinas e femininas. O início da atividade sexual implica uma mudança de status e da percepção de ser homem, que é simultaneamente interpelado a trazer dinheiro para casa e ter se iniciado sexualmente. Já para

a mulher, o resguardo da virgindade foi muito valorizado, sendo consideradas mulheres para casar, separadas das não mais virgens, sendo estas consideradas fáceis. Esses parâmetros ordenaram o modo como os homens se aproximaram das figuras femininas, marcadas pelo machismo e pelas relações de poder sobre as mulheres. As trajetórias femininas de iniciação sexual assinalaram um quadro de relações entre gêneros, na qual ao homem é atribuída a condução dos rumos desse acontecimento.

Tradicionalmente, as relações de poder vigentes no sistema patriarcal colocavam a mulher como submissa ao homem, reduzindo a sexualidade feminina a posturas passivas e resignadas nos embates das relações sexuais e sociais. Essa redução por si só constitui uma situação de violência de gênero, a qual não é percebida igualmente por toda mulher, pois se trata de uma experiência subjetiva e não universalizante e que envolve determinados fatores culturais, econômicos e sociais (Dantas-Berger & Giffin, 2005).

A enfermagem, nesta lógica, permitiu e facilitou aos médicos o exercício da medicina tal qual a conhecemos e reforçou a dominação do masculino sobre o feminino, também no campo da saúde. Como exemplo tem-se o exercício da higiene, em que a higienização do ambiente perdeu sua cientificidade e aproximou-se de uma prática doméstica, apoiada em instrumentos próprios do cotidiano doméstico: a vassoura, a bacia, o urinol, entre outros, constituindo um status de tarefas intermediárias, embora respondam às necessidades básicas de manutenção da vida e recuperação do bem-estar, assumem uma seletividade hierarquizada de tarefas (Lopes & Leal, 2005).

A feminização persistente na enfermagem, desde o início da profissionalização, cabe uma reflexão: é o resultado dos esforços exteriores e de interesses preocupados em manter a profissão em condição de auxiliar, de desvalorização técnica e econômica ou se está a frente de uma profissão que se protege? Assim, os autores concluem que se trata de uma profissão “para mulheres” e de mulheres que se protege, pois cuidar é uma ação identitária feminina que transcende o espaço de trabalho (Lopes & Leal, 2005).