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Sexualidade e as transformações nos vínculos afetivos e nas relações de gênero O conhecimento de que somos originariamente divididos em dois sexos é uma ideia que

SUMÁRIO

1. A sexualidade no século XXI: conceitos e implicações para a saúde da mulher 1 A sexualidade circunscrita pela Medicina: definindo conceitos na modernidade

1.3 Sexualidade e as transformações nos vínculos afetivos e nas relações de gênero O conhecimento de que somos originariamente divididos em dois sexos é uma ideia que

começou a vigorar apenas a partir do século XVII. Antes disso, a Medicina e o modelo biomédico não tratavam das diferenças sexuais. Para a compreensão que se tinha nessa época, havia apenas um sexo, o chamado sexo único: o masculino. A mulher era considerada como representante inferior por não possuir o “calor necessário”, devido a apresentar o sexo na genitália externa. A mulher possuía o sexo “interno”, derivado e semelhante ao masculino. A noção de sexo estava subordinada à ideia da perfeição do corpo masculino. O sexo tinha como referência os órgãos reprodutores masculinos. A característica “frieza da mulher” era imprescindível para a reprodução, pois se ela fosse quente como o homem, o embrião poderia ser destruído (Laqueur, 2001).

Segundo Vilela e Arrilha (2003), sexo é uma palavra que admite três significados distintos. Uma primeira acepção assinala a posição do sujeito na reprodução sexuada, sendo fecundante o macho e reprodutora a fêmea. Um segundo significado estaria referido aos órgãos sexuais externos, e o terceiro diz respeito ao ato sexual, o fazer sexo. Essa visão biológica do sexo engendra a construção cultural da diferença dos sexos, centrada na suposta desigualdade entre homens e mulheres localizada no sexo. Essa construção foi apoiada pelas produções científicas, em especial médicas, das quais resultaram as desigualdades morais e políticas entre homens e mulheres, com ressonâncias presentes na visão de mundo, crenças e

valores sobre os atributos masculinos e femininos, representados na atualidade pelos estereótipos de gênero.

As diferenças existentes entre os sexos fundaram noções de desigualdades entre homens e mulheres, dispondo-os vulneráveis à força e razão masculinas e caracterizadas pelas relações de poder. A mulher e sua condição desigual ao homem, por muito tempo ela viveu sob tutela do masculino, primeiramente com o pai e substituída no marido, com sua sexualidade marcada pelos padrões cristãos, legitimada pela instituição do casamento e pelo cumprimento do destino reprodutivo da espécie (Foucault, 1994).

A masculinidade e a feminilidade como expressão de comportamentos definiram-se socioculturalmente, a primeira à luz de características como força, agressividade, lógica e independência, aproximando-se do que é esperado de um ser humano. E, a segunda, a fraqueza, submissão, dependência e emoção, aproximando-se de um comportamento dito feminino (Trindade & Ferreira, 2008).

Nesse contexto, atributos como paciência e passividade das mulheres em relação ao sexo também eram características importantes que deviam ser reproduzidas na relação com os esposos e filhos, com o intuito de garantir a harmonia familiar, necessária para que os “filhotes” humanos se tornassem produtores e consumidores competentes. A busca sexual masculina seria o molde para a atitude de assertividade que os homens deviam ter para dar continuidade ao trabalho de produção e consumo de bens e riquezas materiais que movem a sociedade capitalista (Villela & Arilha 2003).

Notamos, então, uma estreita e contínua imbricação do social e do biológico e a compreensão de gênero que participa desse processo. Em algumas famílias tradicionais ainda subsiste a ideia de que a mulher deve assumir papéis de esposa e mãe, colocando-os à frente de seus interesses individuais. Quanto ao homem, sua socialização desde menino visa à aquisição de uma profissão. O nepotismo familiar é bem conhecido nas áreas políticas e da saúde, quando verdadeiras dinastias se constroem nas profissões (Padilha, Vaghetti & Brodersen, 2006).

No que tange à sexualidade, há certa dificuldade em delinear esse conceito, em virtude das controvérsias teóricas que giram em torno dele. A sexualidade como um aspecto do cuidado ganhou a proeminência crescente nas últimas décadas com o desenvolvimento do conceito do holismo nos cuidados. Apesar do fato de que, desde os anos de 1970, esteve muito descrito na literatura sobre a sexualidade, em que muita diversidade era indicada a respeito do significado preciso do termo. A sexualidade é uma das áreas mais difíceis da experiência humana de definir, porque é complexa, diversa e incerta (Lavin & Hyde, 2006).

A sexualidade pode ser abordada em relação à família, ao parentesco, ao casamento e à aliança como constitutiva e perturbadora da ordem social, e como enfoque das disciplinas: Antropologia e Sociologia. Pode ser interpretada como constitutiva da subjetividade e/ou identidade individual pela ótica da Psicanálise, e social pela História e Ciências Sociais; ou ainda como um problema biológico e genético pelas fontes da Medicina e por fim como um problema político e moral embasados na Sociologia e Filosofia, ou mais propriamente como atividade sexual comumente tratada. Sendo assim, não existe uma abordagem unitária da sexualidade, e a polissemia que se apresenta pode ser tratada como uma tentativa de articulação entre abordagens situadas em diferentes níveis com pontos em comum (Loyola,1999).

Para Foucault (1980), a partir do século XIX, a sexualidade é caracterizada pela ótica de poder e controle dos corpos e relações, visto que a sexualidade conservadora vinculada à reprodução humana e anteriormente ordenada em função de assegurar o povoamento e reproduzir a força de trabalho é ameaçada com o surgimento das sexualidades periféricas, desvinculadas da função reprodutiva do casal. As sexualidades periféricas foram descritas em categorias, a saber: a sexualidade das crianças, dos loucos e dos criminosos, dadas como devaneios, obsessões, pequenas manias e grandes raivas. Dessa forma, são sexualidades que saem do controle social e embolsam visibilidade que ameaçam a ordem em sociedade. Neste ponto, a Medicina, com seus métodos científicos, descreve as variações sexuais em patologias orgânicas, funcionais ou mentais, oriundas das práticas sexuais incompletas e sem o propósito da reprodução. Concomitante nesse processo há a redução das sexualidades singulares em prol de fixar fronteiras de normalidade para as sexualidades polimorfas. Nesse ponto, podemos relacionar o modelo biomédico hegemônico com sua enorme influência no cotidiano, na medida em que o cuidado centrado no corpo e suas práticas são divididas por especialidades de poder médico.

Atualmente, a sexualidade está relacionada não somente aos aspectos reprodutivos, mas também à obtenção de prazer, vontade de viver sentimentos de intimidade e expressão de sentimentos. Desse modo, sofre influências de aspectos biológicos, culturais e sociais. Assim, a compreensão das condutas sexuais varia dependendo da época, da cultura e do contexto em que a pessoa estiver inserida (Maciera & Maluf, 2008).

Para Giddens (1993), a visibilidade atual da sexualidade está relacionada à transformação social da intimidade e dos laços afetivos entre as pessoas, às redescrições contemporâneas do amor e suas articulações com dimensões como poder e gênero.

Partindo do cenário contemporâneo de inovações constantes e transformações radicais nas relações afetivas, Giddens (1993) tratou da sexualidade inserida no contexto das relações humanas pela ótica da transformação da intimidade. Para o autor, as relações humanas são construídas e estruturadas ao longo da história. A mudança na construção da intimidade é explicada pela transformação do “amor romântico” no “amor puro”, desvinculando o sentido do feminino do aspecto complementar da reprodução e da maternidade.

Dessa forma, o exercício da sexualidade propicia o desenvolvimento de estilos de vida bastante variados. A sexualidade deixa de ser uma condição natural e reprodutiva e atua como uma dimensão constitutiva da identidade, sendo um ponto de conexão entre o corpo, a autoidentidade e as normas sociais que vão influenciar e definir condutas sexuais e sociais em sociedade. Giddens (1993) aponta uma transformação da intimidade que contribui para o entendimento dessas questões, que é a passagem do “amor romântico” para o “amor confluente” na atualidade.

O amor romântico puro é um amor sexual, focado nas práticas sexuais e na função reprodutiva, com certa equivalência de gênero. Esse tipo de amor tem mostrado uma característica diferente dos laços de poder do início, que é a busca do envolvimento emocional puro, mais do que por critérios sociais externos. O amor confluente é um amor ativo, contingente e, por isso, entra em choque com as categorias “para sempre” e “único” da noção do amor romântico. Assim, quanto mais o amor confluente consolida-se, em uma possibilidade real, mais se afasta a busca da “pessoa especial” para “o relacionamento especial” (Giddens, 1993).

Loyola (1999) chama atenção para a sexualidade atrelada à esfera dos sentimentos. A relação existente entre sexo e amor, abordada pelos sociólogos e historiadores, desde sempre constitutiva da sexualidade, torna-se problemática na medida em que por um lado é marcada pela hierarquia que perpassa a relação entre os gêneros, definindo sexualidade feminina e masculina; e por outro, a partir do romantismo, quando o erotismo se imiscui no amor conjugal, essa nova forma de amor-paixão passa a orientar nossas escolhas amorosas e matrimoniais. É presente na sociedade humana que o sexo constitui ainda um instrumento poderoso de criação de vínculos sociais e, ao mesmo tempo, uma constante ameaça às regras estabelecidas.

Esse cenário construído entre a realidade e a idealização começa a ser interpelado com a entrada das mulheres no mercado de trabalho e o advento dos métodos contraceptivos, em meio às décadas de 1950 e 1960, que permitiram a desvinculação da atividade sexual da reprodução. Assim, parte da teoria que trata da sexualidade feminina em função da

maternidade perde o sentido, com a crença da incapacidade das mulheres para a vida pública. Surge, então, o conceito de gênero que questiona a determinação biológica dos sexos frente ao papel desempenhado por homens e mulheres, buscando valorizar a importância de atributos culturais designados a cada um dos sexos. A teoria de gênero enfatiza a perspectiva relacional e reconhece a relevância da escolha social na construção das várias maneiras de ser homem e ser mulher (Villela & Arilha, 2003).

O gênero constitui o modo como nos relacionamos conosco e com os outros. Ele permite operar o processo de produção simbólica, definindo uma identidade, a maneira como cada um percebe o mundo, apreende os códigos de interpretação da cultura e estabelece pautas de interação com o outro, marcando a atuação social de cada pessoa. O gênero atravessa o processo de subjetivação e construção de identidade, configurando os modos de sentir, pensar e agir em relação a si próprio, ao mundo e ao com quem nos relacionamos (Villela & Arilha, 2003; Rocha-Coutinho, 2004).

Novos conceitos importantes inserem-se no campo da sexualidade, principalmente na segunda metade dos anos de 1990. Os organismos internacionais, voltados às políticas públicas para a saúde das mulheres, incorporaram conceitos de direitos reprodutivos e direitos sexuais como direitos humanos, por meio da força dos movimentos feministas. Essa perspectiva sobre a sexualidade surge principalmente em função da feminilização da síndrome da imunodeficiência adquirida (Aids) que levou a Organização Mundial de Saúde (OMS) a adotar o termo saúde sexual. Crescem, também, os movimentos gay e lésbico buscando desconstruir a sexualidade como ótica unilateral da heterossexualidade, sem levar em conta as relações homoafetivas (Costa & Coelho, 2011).

Notamos que os sujeitos que fazem parte de grupos marginalizados, tais como: as mulheres, os negros, os índios, os homossexuais, entre outros, que sempre tiveram suas identidades construídas pelo seu «colonizador», e portanto só podem vir a se representar através da recuperação de suas histórias, há muito tempo veladas pelo discurso do « colonizador ». A identidade feminina caminhou ao longo da história, pautada pela discriminação, isto porque foram negadas as possibilidades de as mulheres desenvolverem as capacidades socialmente valorizadas e que sempre garantiram primazia ao homem, tais como: perspicácia intelectual, pensamento lógico e interesses políticos e profissionais (Rocha- Coutinho, 2004).

As mulheres avançaram no mercado de trabalho e conquistaram um papel social, porém incorporaram a dupla jornada com um cotidiano que se revela prejudicial à saúde da mulher, afetando vários fatores, dentre eles, sua sexualidade. Notamos que a identidade feminina teve

de ser ampliada, para incluir esse novo papel: trabalhadora e pessoa com uma carreira profissional, entretanto, para muitas mulheres brasileiras a família permanece como prioridade. Assim, sem perceber, a mulher sacrifica possíveis satisfações em termos de crescimento profissional e contribui para a manutenção do esquema machista que prevaleceu na sociedade tradicional, no qual ela própria lutou, mas por vezes permanece apenas no nível do discurso (Rocha-Coutinho, 2004).

Em pesquisa qualitativa, desenvolvida com vinte mulheres, foram investigados seu cotidiano e as questões da sexualidade. Situações como o cansaço, o estresse e as inúmeras preocupações que circulam o universo feminino foram apontados no estudo como sendo fatores que influenciam a falta de vontade para o sexo. Notamos que algumas mulheres abrem mão da relação sexual com seu parceiro em função de descansar e recuperar forças para as atividades diárias (Trindade & Ferreira, 2008). Assim, o conceito de saúde sexual passa a interessar e se contextualiza por transformações histórico-culturais, influenciando normas e condutas humanas.

2. As relações sociais de gênero (masculino e feminino) e suas aplicações no campo da Enfermagem