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3.2 Identidade Social

3.2.1 Gênero social

Iniciamos esta subseção a partir da afirmação de Moita Lopes (2002) de que provavelmente dois dos aspectos centrais de nossas identidades sociais sejam o gênero e a sexualidade. Com base nessas identidades de gênero e sexualidade, entre outras identidades

como classe social, raça, nacionalidade, etc., as pessoas usam a linguagem umas com as outras, ao mesmo tempo em que constroem essas identidades.

Para uma compreensão acerca de gênero, este trabalho baseia-se em algumas autoras feministas pós-estruturalistas, como Louro (1998), Auad (2006) e Meyer (2007).

Segundo Louro (1998), o conceito de gênero está ligado diretamente à história do movimento feminista contemporâneo. Constituinte desse movimento, ele está implicado lingüística e politicamente em suas lutas. E é através das feministas anglo-saxãs que gênero passa a ser usado como distinto de sexo. Elas visam rejeitar um determinismo biológico implícito no uso de termos como sexo ou diferença sexual. Assim, o foco dos estudos do gênero é fundamentalmente social, sem, contudo, negar que o gênero se constitui com ou sobre corpos sexuados. Dessa forma, não é negada a biologia, mas enfatizada, deliberadamente, a construção social e histórica produzida sobre as características biológicas. Enfatizar o caráter fundamentalmente histórico, social, cultural e lingüístico do gênero não significa negar que ele se constrói com – e através de – corpos que passam a ser reconhecidos e nomeados como corpos sexuados. Não se está, portanto, negando a materialidade do corpo ou dizendo que ela não importa, mas mudando o foco dessas análises: do “corpo em si” para os processos e relações que possibilitam que sua biologia passe a funcionar como causa e explicações de diferenciações e posicionamentos sociais (MEYER, 2007, p. 19)

O debate em torno do gênero passa então a ser focalizado em torno do campo social, pois é nele que se constroem e se reproduzem as relações (desiguais) entre os sujeitos. As justificativas para as desigualdades precisariam ser buscadas não nas diferenças biológicas, mas sim nos arranjos sociais, na história, nas condições de acesso aos recursos da sociedade, nas formas de representação. A partir desse enfoque, procura-se afastar proposições essencialistas sobre o gênero, visto que a ótica está dirigida para um processo, para uma

construção, e não para algo que exista a priori (LOURO, 1998).

Segundo a referida autora, a característica social do conceito não deve, no entanto,

levar a pensá-lo como se referindo à construção de papéis masculinos e femininos. Papéis

seriam padrões ou regras arbitrárias que uma sociedade estabelece para seus membros e que definem seus comportamentos, suas roupas, seus modos de se relacionar ou de se portar, ou seja, o que é considerado adequado para um homem ou para uma mulher em uma determinada sociedade. Essa concepção pode se mostrar simplista, pois não dá conta de explicar as múltiplas formas que podem assumir as masculinidades e as feminilidades, nem as complexas redes de poder que constituem hierarquias entre os gêneros.

Ao contrário, Louro (1998) entende gênero como constituinte identitáriodos sujeitos. Numa aproximação às formulações dos Estudos Culturais, que compreendem os sujeitos como tendo identidades plurais, múltiplas, que se transformam, que não são fixas ou permanentes e que podem ser contraditórias; a autora afirma que o gênero institui identidades para o sujeito, assim como a etnia, a classe, ou a nacionalidade, ou seja, transcende o mero desempenho de papéis.

Há, entretanto, distinções entre identidade sexual e identidade de gênero, é claro que na prática social tais dimensões são articuladas e, usualmente, confundidas. As identidades sexuais são constituídas através das formas como os sujeitos vivem sua sexualidade, com parceiros/as do mesmo sexo, do sexo oposto, de ambos os sexos ou sem parceiros/as. Por outro lado, os sujeitos também se identificam, social e historicamente, como masculinos ou femininos e assim constroem suas identidades de gênero (LOURO, 1998). Evidentemente que essas identidades estão profundamente inter-relacionadas. No entanto, não são a mesma coisa. O que importa considerar é que, tanto na dinâmica do gênero como da sexualidade, as identidades são sempre construídas.

Ancorada em Christine Delphy – pesquisadora francesa, Auad (2006) afirma ser o gênero “um produto social que constrói o sexo” e esclarece o que isso quer dizer:

a) Sexo e gênero não são a mesma “coisa”, embora estejam relacionados;

b) Se as relações de gênero não existissem do modo como as conhecemos, o que percebemos como sexo não seria valorizado como importante. Ou seja, as diferenças anatômicas entre homens e mulheres não teriam nenhuma significação valorativa em si mesmas, seriam apenas uma diferença física entre outras;

c) O gênero – como um conjunto de idéias e representações sobre o masculino e sobre o feminino – cria uma determinada percepção sobre o sexo anatômico.

Portanto, frisa a autora, as relações de gênero correspondem ao conjunto de representações construído em cada sociedade, ao longo de sua história, para atribuir significados, símbolos e diferenças para cada um dos sexos. As características biológicas entre homens e mulheres são interpretadas segundo construções de gênero de cada sociedade. Ou seja, as características e diferenças anatômicas são enxergadas, percebidas e valorizadas do modo como são, e não de outro modo, graças à existência das relações de gênero socialmente construídas. Por isso, o feminino é associado, na maioria das vezes, à fragilidade, à passividade, à meiguice e ao cuidado e o masculino à agressividade, ao espírito empreendedor, à força e à coragem.

Auad (2006) ressalta que as relações de gênero, do modo como estão organizadas em nossa sociedade, são uma máquina de produzir desigualdades. As visões naturalistas sobre mulheres, meninas, homens e meninos representam travas para a superação dessa situação. Ao considerar as relações de gênero como socialmente construídas, percebe-se que uma série de características consideradas “naturalmente” femininas ou masculinas corresponde às relações de poder. Essas relações vão ganhando a feição de “naturais” de tanto serem praticadas, contadas e repetidas. Tais características são, na verdade, construídas, ao longo dos anos e dos séculos, segundo o modo como as relações entre o feminino e o masculino foram se engendrando socialmente. Ou seja, as relações de poder entre o masculino e o feminino foram sendo construídas socialmente ao longo da história.

Ao refletir sobre gênero e poder, Louro (1998) afirma que alguns estudos vêm

problematizando a concepção do homem dominante versus mulher dominada – como se essa

fosse uma fórmula única, fixa e permanente – visto que este esquema polarizado não dá conta da complexidade social. É problemático aceitar, segundo a autora, que um pólo tem o poder e o outro não. Em vez disso, deve-se supor que o poder é exercido pelos sujeitos e que tem efeitos sobre suas ações. O poder se constitui por manobras, técnicas, táticas, disposições, as quais são por sua vez, resistidas e contestadas, respondidas, absorvidas, aceitas ou transformadas. (FOUCAULT, 1988). Os gêneros se produzem, portanto, nas e pelas relações de poder.

Não se deve imaginar um mundo do discurso dividido entre o discurso admitido e o discurso excluído, ou entre o discurso dominante e o dominado; mas, ao contrário, como uma multiplicidade de elementos discursivos que podem entrar em estratégias diferentes. (...) Os discursos, como os silêncios, nem são submetidos de uma vez por todas ao poder, nem opostos a ele. É preciso admitir um jogo complexo e instável em que o discurso pode ser, ao mesmo tempo, instrumento e efeito de poder, e também obstáculo, escora, ponto de resistência e ponto de partida de uma estratégia oposta. O discurso veicula e produz poder; reforça-o, mas também o mina, expõe, debilita e permite barrá-lo. Da mesma forma, o silêncio e o segredo dão guarida ao poder, fixam suas interdições; mas, também, afrouxam seus laços e dão margem a tolerâncias mais ou menos obscuras. (FOUCAULT, 1988, p. 96).

A idéia de oposição entre os gêneros conduz a muitas idéias equivocadas que reforçam as desigualdades. Questionar o que percebemos como tipicamente feminino ou tipicamente masculino pode ajudar a notar como muitas diferenças entre homens e mulheres não são naturais.

Louro (1998) também aborda a questão da diferença. Dizer que mulheres são diferentes dos homens constitui, em princípio, uma afirmação irrefutável. É possível observar,

que usualmente se diz: “as mulheres são diferentes dos homens”, ou seja, elas diferem deles – que devem ser tomados como a norma. Se avançarmos nas reflexões sobre a diferença e

observarmos quem define a diferença, quem é considerada diferente e o que significa ser

diferente, é possível perceber que o que está em jogo na realidade é a desigualdade. Na verdade, reivindica-se que sujeitos diferentes sejam considerados não como idênticos, mas como equivalentes.

O contrário da igualdade não é a diferença. O contrário da igualdade é a desigualdade. Uma diferença pode ser culturalmente enriquecedora, ao passo que uma desigualdade pode ser um crime (AUAD, 2006, p. 23)

A busca da igualdade supõe um acordo social para considerar as pessoas obviamente diferentes como equivalentes (não idênticas) para um propósito dado. Com este uso, o oposto de igualdade é desigualdade ou não equivalência (GONÇALVES, 2005).

De acordo com Meyer (2007), o conceito de gênero foi re-significado e complexificado, em especial pelas feministas pós-estruturalistas. As abordagens feministas pós-estruturalistas se afastam daquelas vertentes que tratam o corpo como uma entidade biológica universal para teorizá-lo como um construto sociocultural e lingüístico, produto e efeito de relações de poder. Nesse contexto, o conceito de gênero passa a englobar todas as formas de construção social, cultural e lingüística implicadas com os processos que diferenciam mulheres de homens, incluindo aqueles processos que produzem seus corpos, distinguindo-os e separando-os como corpos dotados de sexo, gênero e sexualidade.

Um trabalho que mostra que gênero é uma construção social é a pesquisa de Ostermann (2006), a qual evidencia que “gênero social não pode prever padrões interacionais, os quais são melhor compreendidos como refletindo as comunidades de prática de gênero onde estão situadas essas profissionais” (p. 42). Trata-se de um trabalho que analisou comparativamente práticas discursivas de profissionais de duas instituições criadas para lidar com a violência contra mulheres no Brasil, a saber: uma Delegacia da Mulher (DDM) e um centro feminista de intervenção na violência contra a mulher (CIV-mulher ou CIV). Os dados dessas profissionais em interações com mulheres vítimas de violência doméstica mostram que os encontros na Delegacia da Mulher eram caracterizados por alto grau de controle das policiais sobre as interações e um distanciamento das vítimas, enquanto as profissionais do CIV utilizavam estratégias interacionais para se aproximarem de suas vítimas, ganhando assim aceitação e fortalecendo seu pertencimento a essa comunidade de prática.

Esse modo de compreender o gênero (LOURO, 1997; MEYER, 2007; OSTERMANN, 2006) aponta para importantes implicações de seu uso como ferramenta teórica e política, quais sejam:

1) Gênero aponta para a noção de que, ao longo da vida, através das mais diversas

instituições e práticas sociais, nos constituímos como homens e mulheres, num processo que não é linear, progressivo ou harmônico e que também nunca está finalizado ou completo;

2) Como nascemos e vivemos em tempos, lugares e circunstâncias específicos, existem

muitas e conflitantes formas de definir e viver a feminilidade e a masculinidade. Por isso, noções essencialistas de homem e de mulher passam a ser consideradas demasiadamente simplistas e contestadas;

3) As análises e as intervenções empreendidas devem considerar as relações de poder –

entre mulheres e homens e as muitas formas sociais e culturais que os constituem como “sujeitos de gênero”. Como enfatizou Simone de Beauvoir “nós não nascemos mulheres, nós nos tornamos mulheres”, o mesmo se pode dizer dos homens;

4) O conceito de gênero propõe um afastamento de análises que repousam sobre uma

idéia reduzida de papéis/funções de mulher e de homem, para aproximar-nos de uma abordagem muito mais ampla que considera que as instituições sociais, os símbolos, as normas, os conhecimentos, as leis, as doutrinas e as políticas de uma sociedade são constituídas e atravessadas por representações e pressupostos de feminino e de masculino ao mesmo tempo em que estão centralmente implicadas com sua produção, manutenção e re-significação.

Levar em consideração os estudos do gênero é uma possibilidade a mais para reflexão e percepção das estratégias de poder as quais mulheres e homens estão inseridos. Retomando as palavras de Meyer (2007), estamos, em nossa sociedade, sempre operando a partir de uma identidade que é a norma, que é aceita e legitimada e que se torna, por isso mesmo, quase invisível – a masculinidade branca, heterossexual, de classe média e judaico-cristã. E é a diferença que marca e reduz o indivíduo ou grupos de indivíduos a ela. Por isso,

promover pesquisa na perspectiva do gênero possibilita não só discutir e repensar nossa inserção social como mulheres e homens e como profissionais da educação, mas pode contribuir, efetivamente, para a construção de uma sociedade mais justa e mais igualitária, não só no que se refere ao gênero, mas em todos os seus níveis e relações (MEYER, 2007, p. 25).

Na próxima subseção, discute-se como articular epistêmica e metodologicamente identidade e representação social.