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1.3 ANÁLISE LITERÁRIA DA I APOLOGIA DE JUSTINO

1.3.3 Gênero Literário

O estilo não é novo nem recente, e foi muito utilizado na antiguidade126. Podemos afirmar com segurança que as primeiras referências a esse tipo de literatura de que dispomos datam do período da Filosofia Clássica, e podem ser encontradas a partir do Século IV a.C. Provavelmente uma das obras mais conhecidas e renomadas deste tipo é a Apologia de Sócrates escrita por seu aluno Platão. Nela, aquele que possivelmente foi o mais dedicado dentre seus discípulos procura defender o legado e a imagem de seu mestre por meio da preservação do seu pensamento. É importante frisar neste contexto, a abordagem de forma direta e completa (em um estilo dialogal-filosófico) do processo (método) de julgamento de Sócrates oferecida por Platão: a tônica do relato parece ganhar a direção de querer conscientizar seus ouvintes da necessidade de se fazer justiça independentemente do caso e das circunstâncias que estão em debate. Esse estilo acaba por influenciar sua época e torna-se o modelo apologético a ser seguido nos séculos seguintes127.

Contribui ainda para uma melhor assimilação das intenções subjacentes a esse estilo de linguagem e escrita o pensamento de Malta que, ao comentar os diálogos que tratam do

125 DROHNER, Manual de Patrologia, 2008, p. 84. 126 MALTA, Introdução. In: Apologia de Sócrates, 2008.

processo contra Sócrates (os quais são quatro: Êutifon, Apologia de Sócrates, Críton e Fédon.), acaba por colaborar de maneira expressiva na elaboração do caráter que estas obras (apologias) procuravam transmitir aos seus receptores: “Entre eles há uma clara sequencia dramática, desde a discussão sobre o ponto central da acusação (o que é piedade), passando pela defesa no tribunal e a estada na prisão, até o momento em que a pena de morte é cumprida”128.

A palavra apologia (grego: απολογια), que no português é definido como um substantivo feminino129, é formada por dois vocábulos gregos. O primeiro é απο, uma partícula primária, uma preposição, cujo significado básico é a ideia: “de separação; e/ou de origem, do lugar de onde algo está, vem, acontece, é tomado”130. O segundo é o vocábulo λογος, de significado vasto – desenvolvendo inclusive, uma estrutura particular junto ao cristianismo131 –, mas colocado em paralelo com o nosso exame, pode ser definido como: “palavra, proferida a viva voz, que expressa uma concepção ou ideia, o que é declarado, pensamento, declaração, aforismo, dito significativo, sentença, máxima”132, “proclamação, ensinamento [...] doutrina, parte de uma doutrina”133. Entretanto, deve-se sempre se levar em conta que junto ao ambiente filosófico-teológico de Justino, “um duplo uso do termo deve ser distinguido: um que diz respeito ao falar e outro que se relaciona com o pensamento”134. Neste cenário, ainda se robustece a ideia de que o termo composto (απολογια), era condutor de um conceito de soberania, instaurado pela “sabedoria pessoal e poder em união com Deus”135. Ainda focando

128 MALTA, Introdução. In: Apologia de Sócrates, 2008, p. 11.

129 Apologia (a·po·lo·gi·a). Substantivo feminino. Significa: 1. Discurso encomiástico; 2. [Figurado] Elogio; 3. Defesa laudatória. Ver: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Disponível em: <https://dicionario.priberam.org/apologia>. Acesso em: 28 de set. 2018.

130 STRONG, Dicionário Bíblico Strong, 2002, p. 1317.

131 Ritt, sugere-nos que a partir dos registros neotestamentários, houve uma guinada na concepção do Logos como elemento estrutural e funcional para a realidade histórica do termo, junto as culturas e os ambientes intelectuais que o utilizavam. Utilizando-se de um sistema de progressão bíblica, Ritt chega ao prólogo do Evangelho de João, onde salienta que, “Estas declarações, que estão concentradas na encarnação, permitem reconhecer uma origem cristã do hino (prólogo do Evangelho de João)”, onde a autenticidade do sujeito (Logos), como um recurso estável e completo para a humanidade, se dá a conhecer nesse evento apoteótico (encarnação de Cristo). Ver: RITT, In:

λόγος, ου, ό. Diccionario Exegetico del Nuevo Testamento. Volumen II, 1998, p. 78, grifo nosso. No original: Estos

enunciados, que se concentran en la encarnación, permiten reconocer un origen cristiano del himno. 132 STRONG, Dicionário Bíblico Strong, 2002, p. 1622.

133 RUSCONI, Dicionário do Grego do Novo Testamento, 2003, p. 288, grifo nosso.

134 THAYER, A Greek-English lexicon of the New Testament: being Grimm's Wilke's clavis novi testamenti, 1889, p. 880. No original: a twofold use of the term is to be distinguished: one which relates to speaking, and one which relates to thinking.

135 THAYER, A Greek-English lexicon of the New Testament: being Grimm's Wilke's clavis novi testamenti, 1889, p. 882. No original: personal wisdom and power in union with god.

este segundo vocábulo, para uma maior amplitude do assunto sobre este termo grego tão ilustrativo vale-nos citar a definição de Pereira:

Palavra, dito, revelação divina, resposta dum oráculo, máxima, sentença, exemplo, decisão, resolução, condição, promessas, pretexto, argumento, ordem, menção, notícia que corre, conversação, relato, matéria de estudo ou de conversação, razão, inteligência, senso comum, a razão de uma coisa, motivo, juízo, opinião, estima, valor que se dá a uma coisa, justificação, explicação, a razão divina.136

Rapidamente atentando aos escritos apologéticos cristãos do Século II, notamos um “esforço de aproximação”137 dos Pais Apologistas (em sua ampla maioria) para a utilização da consagrada forma do diálogo-filosófico (como citado acima), isso devido especialmente ao fato de essas obras serem direcionadas à aristocracia política/intelectual de sua época, incluindo nesse cenário opulente os próprios Imperadores de Roma138. Uma importante referência a ser associada a este contexto, está relacionada à utilização e significado da palavra “apologia” utilizada por Eusébio na identificação da obra de Justino, Eusébio – possivelmente o primeiro a empregar o termo (apologia) para definir um conjunto de escritos do meio cristão139 – utiliza das seguintes descrições para se referir ao nosso autor: “Em sua primeira Apologia”140, ou “ao escrever sua Apologia dirigida a Antonino”141, e ainda “em sua Apologia”142. É importante frisar que Justino em nenhum momento se utiliza do termo “apologia” em sua obra143, mas a define como “discurso e súplica”144, todavia, para Eusébio (e para a Sagrada Tradição na qual este se amparava), Justino indiscutivelmente havia sido um fiel defensor da verdade revelada de Deus. Além disso, neste quadro cabe-nos ainda ressaltar o comentário de Arzani e Venturini ao trabalho de Eusébio, pois ambos buscam definir uma ideia qualitativa e funcional na utilização do termo pelo historiador:

136 PEREIRA, Dicionário Grego-Português e Português-Grego, 1998, p. 350. 137 PADOVESE, Introdução à Teologia Patrística, 1999, p. 188.

138 ALTANER; STUIBER, Patrologia: Vida, Obras e Doutrina dos Padres da Igreja, 1988.

139 ARZANI; VENTURINI, A Origem da Tradição Apologética Cristã e Justino Mártir, 2010. Para um maior aprofundamento do tema, ver: 2. Eusébio de Cesareia, as apologias e os apologistas, p. 2-7.

140 EUSÉBIO, História Eclesiástica, II, 13, 2; VI, 17, 1. 141 EUSÉBIO, História Eclesiástica, VI, 8, 3.

142 EUSÉBIO, História Eclesiástica, VI, 11, 11.

143 SANTOS, Identidade Cristã no Século II d.C.: Uma Análise da I Apologia de Justino Mártir, 2012. 144 JUSTINO, I Apologia, I, 1.

Uma análise mais ampla sobre a constituição (ou não) dos gêneros apologéticos cristãos deve ficar para uma outra oportunidade, entretanto, considerando que é Eusébio quem primeiro apresenta uma ideia, mesmo que hipotética, do reconhecimento das formas dos textos de defesa dos cristãos ou de suas crenças, é preciso considerar como ele emprega o termo apologia. Além de empregar o termo apologia para se referir aos sete textos anteriormente citados, ele também o usa no seu sentido clássico como simples “discurso de defesa”.145

Desta forma, podemos concluir que os escritos apologéticos buscavam efeitos similares tanto no cenário cristão quanto no pagão. Porém, no que cabe à Igreja, vale ressaltar que o estilo apologético procurou desconstruir equívocos, salientar o cristianismo como religião ordeira e benéfica – entenda-se (baseado em alguns relatos Patrísticos), como superior às demais crenças –, mas acima de tudo sanar as injustiças cometidas contra os cristãos. Nesse último ponto, a penna dos Apologistas procurava pesar contra a consciência dos governantes de seu tempo, a reflexão de Richard Norris considera bem essa questão: “o objetivo de tais escritos eram, em geral, persuadir as autoridades de que as frequentes perseguições locais eram injustas, desnecessárias, e indignas de governantes esclarecidos”146.

A partir deste item, visando a qualificação deste trabalho, damos segmento a nosso exame estrutural agregando a seu corpo um destacado incremento técnico, falemos agora dos manuscritos da I Apologia.