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2.3 PRAXIS FIDEI ADVERSUS INIQUITATEM

2.3.2 Um Princípio Determinista

Os capítulos XXV e XXVI da I Apologia nos apresentam inúmeras variações desses hábitos religiosos, todos sentenciados por nosso autor como nefastos, porque Justino sempre buscava afirmar como ponto inicial de sua argumentação a premissa de que seu grupo (cristãos) se diferencia dos demais por não possuir as mesmas práticas. Essas práticas pagãs de culto, no entendimento de Justino, fossem exercidas de maneira ordinária ou extraordinária por seus seguidores, no final, incontestavelmente, seriam condenadas, pois se manifestariam como obras demoníacas. Isso ocorria, porque alguns “demônios levaram certos homens”318 a praticá-las para prejuízo dos cristãos, sendo estes por fim injustamente acusados de práticas danosas. Eusébio, ao comentar sobre o ministério de Justino, retratará este contexto de forma simposiasta:

Isto é demonstrado por Justino, que se distinguiu em nossa doutrina não muito tempo depois dos apóstolos e de quem exporemos oportunamente o que seja conveniente. Em sua primeira Apologia, dirigida a Antonino, em favor de nossa fé, escreve como segue: “E depois da ascensão do Senhor ao céu, os demônios levaram alguns homens a dizer que eram deuses, e estes não somente não foram perseguidos por vós, mas até foram considerados dignos de honras.”.319

Nos capítulos XXIV-XXVI, Justino nos retrata de maneira sintetizada, diversas características da religião gentílica de sua época. Até aqui, não encontramos nada de novo ou até mesmo excepcional neste tipo de relato, mas o que nos chama a atenção neste enquadramento analítico, sobre o qual estamos ponderando, é a proporção temática que o assunto ganha referente à sua futura fundamentação literária. Cabe-nos aqui atestar que Justino se utiliza de três elementos indicativos naquilo que procura apresentar como casos evidentes da perseguição social para com aqueles que se denominavam cristãos. Justino, através de uma espécie de “lista numerada”320, notoriamente sinaliza uma sequência de fases, as quais

318 JUSTINO, I Apologia, XXVI, 1.

319 EUSÉBIO, História Eclesiástica, II, 13, 2-3.

320 Justino se utiliza dos termos gregos: Πρωτον (Em primeiro lugar) no cap. XXIV; Δεύτερον (Em segundo lugar) no cap. XXV; Τρίτον (Em terceiro lugar) no cap. XXVI. Sendo os vocábulos empregados pelo autor na segunda

Frangiotti chama de “Provas”321 utilizadas pelo Apologista, sendo que estes fatos, em perspectiva geral, se apresentavam de maneira tenebrosa na visão de Justino, pois, em sua análise, sustentavam-se sobre argumentos frágeis, duvidosos e absolutamente injustos, principalmente pelo fato dessas acusações possuírem um caráter preconceituoso, fazendo somente dos cristãos, por princípio legal, as vítimas dessas regras estabelecidas.

Neste breve conjunto propositivo, encontramos um cenário real que passa a se caracterizar por meio de uma descrição de fatos pujantes, que ascendem ao nosso olhar através de uma linguagem conceitual. Justino, amparado por analogias literais, passa mediante sua construção da defesa da moral cristã322 a utilizar-se de ações dialéticas, as quais levam as práticas dos cultos pagãos a serem apontadas por Justino (especialmente no capítulo XXV), e também examinadas de uma maneira imperativa, mesmo que visando uma definição satisfatória para o entendimento de seus leitores. Essa prática literária é algo normalmente detectado junto ao trabalho de um pensador com características platônicas, pois estes “discípulos” de Platão, através de uma confrontação de imagens contraditórias, visavam chegar a ideias idênticas, e assim uniformizar o pensamento humano323.

Entretanto, esta conformidade não era possível na análise de Justino, pois os fatos (práticas pagãs) não possuíam a “identidade” necessária para o Apologista; muito pelo contrário, eram absolutamente antagônicos e inquestionavelmente se definiam como espúrios aos olhos dos cristãos, quando ponderados diante da doutrina cristã estabelecida pela transmissão e edificação Apostólica. Deste modo, a separação essencial proposta pelo Apologista torna-se ainda mais clara se confrontada com o comentário de Eusébio ao capítulo XXVI da I Apologia. O Historiador constrói uma considerável argumentação sobre uma figura humana denominado Menandro, o qual, sendo participante de atos místicos, recebeu de Eusébio o cognome de “Mago”:

Também Justino, ao mencionar Simão pela mesma razão, acrescenta uma relação sobre este outro, dizendo: “Sabemos também que um certo Menandro, também samaritano, oriundo da aldeia chamada Caparatea, depois de ser discípulo de Simão e estando também possuído por demônios, apareceu em Antioquia, e com sua arte mágica seduziu a muitos. E convenceu seus seguidores de que não morreriam. Hoje

declinação do acusativo, permitem em sua tradução o emprego tanto da preposição “em”, quanto do substantivo “lugar”, condicionando desta forma, uma indicação de relação e lógica em sua estrutura organizacional. Ver: PAUTIGNY, In: Notes. Apologies, XXVI, 1; XXV, 1; XXVI, 1.

321 FRANGIOTTI, In: Subtítulo, I Apologia, 1995, p. 21. 322 JUSTINO, I Apologia, XXV, 1-3.

restam alguns de sua seita que continuam a professá-lo.” Era sem dúvida obra da influência diabólica lançar mão de tais feiticeiros revestidos do nome de cristãos para esforçar-se em caluniar o grande mistério de piedade, acusando de magia, e destruir por meio deles os dogmas da Igreja sobre a imortalidade da alma e a ressurreição dos mortos. Mas aqueles que os reconhecem como salvadores chegaram abaixo da verdadeira esperança.324

Neste comentário histórico, notamos com clareza a relação de contribuição que Eusébio visa estender ao confronto apologético, pelo qual Justino havia passado. Desta maneira, acaba por nos manifestar seu condicionamento a um fato, que em sua concepção parece-nos claramente a expressão de um princípio, pelo qual faz emergir um compromisso – algo que nos soa como uma necessidade moral – que, possui um caráter imperioso. Eusébio nos relata sem restrições que as ações malévolas praticadas pelo meio sociorreligioso pagão do período de Justino, tinham claramente o objetivo de “caluniar o grande mistério de piedade [...] e destruir por meio deles os dogmas da Igreja”325, constituindo deste modo a noção histórica de que os valores da fé cristã eram a expressão perfeita da Verdade, tanto para Justino quanto para a Igreja (representada historicamente no relato de Eusébio). Tratando-se quanto à Igreja, nesta questão pontualmente, Justino entendia que em seu curso natural, a Igreja vivenciava naturalmente essa relação dialética, fazendo com que as difamações consequentes da falsa religião, manifestassem que a Igreja era (e estava) Santa, mesmo que sob o ataque e a tentativa de manipulação dos seres demoníacos326.

Sem entrarmos diretamente no mérito teológico destas afirmações, mas buscando nos direcionarmos para aquilo que nos cabe como exame pretendido neste trabalho, ressaltamos que o comportamento daqueles que buscavam defender a fé cristã nos parece visar de forma clara, o estabelecimento de um padrão entre causa e efeito, em suas análises. O efeito do procedimento daqueles que assumiram esta postura herética em relação à fé cristã é assim definido por Eusébio: “Mas aqueles que os reconhecem como salvadores chegaram abaixo da

verdadeira esperança”327. Aqui encontramos um destaque considerável para esta pesquisa, pois podemos sustentar que, Eusébio baseia sua argumentação de maneira evidente na intelectualidade de Justino. Logo, devemos novamente afirmar de maneira expressiva que, tanto para Justino quanto para Eusébio, havia uma definição consistente do que seria a Verdade, como

324 EUSÉBIO, História Eclesiástica, III, 26, 3-4. 325 EUSÉBIO, História Eclesiástica, III, 26, 4.

326 HAMMAN, A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristãos (95-197), 1997. 327 EUSÉBIO, História Eclesiástica, III, 26, 4, grifo nosso.

também onde ela necessariamente estava e/ou se encontrava. Aqui, também se caracterizava um processo de objeção a Verdade, sendo os registros historiográfico um peso considerável na comprovação deste caso.