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1.4 A PERSEGUIÇÃO AOS CRISTÃOS

1.4.1 O Império Romano e a Perseguição ao Cristianismo

Desde o Século I, a “pesquisa histórica”152 já nos retrata com eficiência fatos que tiveram influência decisiva do poder humano controlador do mundo de então (Império Romano) para com a Igreja de Cristo sobre a terra. Dessa grande estrutura política da antiguidade emergiu tanto a perseguição quanto o resultado mais elementar e simbólico deste processo que tinha o cristianismo como alvo: o martírio de seus seguidores. Poderíamos chamá-lo, sem o apelo a nenhum eufemismo, de “assassinato” de centenas de pessoas.

Contudo, nesta série de sucessivos acontecimentos anormais vem a nascer a mais significativa contribuição deste intolerante processo governamental, a saber: a expansão do cristianismo. Hatzenberger desenvolve uma sólida ideia a esse respeito quando conjectura sobre o caráter político vigente junto ao Império. Tendo analisado seus preconceitos, limitações e malícias, Hatzenberger tenta explicar a capacidade desse sistema através de sua multiplicidade de gênios, dando a entender que nesta ampla diversidade o cristianismo encontrou sua possibilidade de crescer, Hatzenberger afirma que podemos “dizer que o Império Romano era um tambor de gasolina à espera da faísca da fé cristã”153.

151 STEGEMANN E.; STEGEMANN, W, História Social do Protocristianismo, 2004, p. 356. 152 STEGEMANN E.; STEGEMANN, W, História Social do Protocristianismo, 2004, p. 356. 153 HATZENBERGER, História da Igreja, 2012, p. 1.

Entretanto, as perseguições estatais ao cristianismo são um caso histórico delicado e nada romântico, pois tornou-se uma dura realidade para muitas comunidades cristãs na antiguidade, isso devido ao grande desenvolvimento do cristianismo que no decorrer dos seus primeiros 100 anos suscitou uma considerável preocupação ao Império. Catalogada desde cedo como uma religião antagonista e excludente154 pela sua recusa em seguir práticas comuns do meio social vigente das grandes cidades onde já se encontrava consolidada – devido especialmente as suas posições quanto as questões de ordem cúltica (“festas oficiais”155), como a adoração aos “deuses pagãos, em particular o Imperador a quem negavam o caráter divino”156 –, fazia com que os seguidores desse movimento que inicialmente foi interpretado como uma seita judaica157, fossem em muitos casos expressivamente acusados de colocarem em risco a “pax deorum”158 devido ao entendimento comum e geral de que o Imperador era o supremo mantenedor desse estado de satisfação e glória conquistados por Roma. Outras questões depreciativas eram atribuídas aos cristãos: antissociabilidade, ateísmo, canibalismo, fanatismo, orgias sexuais, entre outras desvirtudes que eram amplamente apresentadas como acusações de ordem formal e às vezes informal (através de buchichos, fofocas e relatos públicos não oficiais), as quais despertavam “reações populares descontroladas de medo, de intolerância e de violência”159 contra estes que se colocavam como discípulos de Cristo.

Desta forma, entre falsas ideias e verdadeiras demandas – a recusa ao “juramento e os ritos implicados no serviço militar”160 é outro exemplo da suposta “rebelião” cristã ao Império –, criou-se um “estado” de perigo, que mediante uma forte campanha de difamação passou a ser considerado como uma ameaça a cultura e a forma do governo Romano. Certamente servindo de combustível para as perseguições pontuais e/ou sistematizadas161 especialmente nos Séculos I e II. Além disto, junto com a expansão da nova doutrina e fé cristãs um novo entendimento, começou a se estabelecer, que o cristianismo se diferenciava do judaísmo162.

154 TÁCITO, Anais, XV, 44.

155 FRÖHLICH, Curso Básico de História da Igreja, 1987, p. 23.

156 LESBAUPIN, A Bem-Aventurança da Perseguição – A vida dos cristãos no Império Romano, 1975, p. 15. 157 LESBAUPIN, A Bem-Aventurança da Perseguição – A vida dos cristãos no Império Romano, 1975; STEGEMANN E.; STEGEMANN, W, História Social do Protocristianismo, 2004.

158 TESTA, In: Igreja e Império, Dicionário de Literatura Patrística, 2010, p. 969. 159 TESTA, In: Igreja e Império, Dicionário de Literatura Patrística, 2010, p. 976. 160 HAMMAN, A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristãos (95-197), 1997, p. 84. 161 GONZÁLEZ, A Era dos Mártires, 1995.

Com o fim do “equívoco judaico”163, houve a reelaboração de um esquema que gerou um reposicionamento de Roma para essa nova perspectiva. Aqui a síntese de Xavier retrata bem o que desejamos comunicar sobre esse reposicionamento:

O Império Romano percebeu que a nova religião possuía diferenças acentuadas em relação ao judaísmo. Embora os judeus resistissem à cultura e religião greco-romana, o cristianismo passou a se organizar como religião, crescendo em número e em organização, sendo formadas igrejas em vários lugares. O evangelho chegou aos grandes centros da época e até os confins da terra devido a pregação de cristãos que viajavam a negócios, missão ou levados pela perseguição que dispersava os cristãos, fazendo com que a fé se expandisse.164

Quanto a questões que envolvem esse amplo período conflituoso, ainda é necessário apresentarmos dois rápidos e sucintos registros. O primeiro envolve um conjunto de fatos constituídos em mais de 250 anos, onde podemos registrar períodos que devem ser classificados como “perseguição, perseguição geral, perseguição maior e tolerância”165 para com os cristãos. São muitas e variadas as circunstâncias e as características que formam cada uma destas fases e fazem com que elementos singulares a cada uma delas (como período e regionalidade) tornem-se fatores decisivos nesta diferenciação. Entretanto, não as abordaremos especificamente por entendermos que o assunto foge de nosso exame central. Segundo, compreendemos ser imprescindível junto a esta abordagem citar a tese amplamente sustentada pelo meio histórico-teológico da “existência de um esquema de dez grandes perseguições”166, tendo seu primeiro caso ocorrido entre 64-68 d.C. sob o Imperador Nero, desde seu último ato no período dos governos de Diocleciano e Maximiano entre 285-305 d.C.167. Tertuliano168 e Eusébio fornecem-nos considerável conteúdo sobre aquela que possivelmente tenha sido a primeira grande onda de perseguição aos cristãos promovida pelo Império. Citamos Eusébio

163 HAMMAN, A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristãos (95-197), 1997, p. 82. 164 XAVIER, Justino Mártir: Um Filósofo em Defesa da Fé Cristã, 2014, p. 10.

165 A ordem dos fatores apresentados não é cronológica e sim alfabética. Ver: LESBAUPIN, A Bem-Aventurança

da Perseguição – A vida dos cristãos no Império Romano, 1975, p. 11-12.

166 STEGEMANN E.; STEGEMANN, W, História Social do Protocristianismo, 2004, p. 356.

167 As intituladas “Dez Perseguições” ao cristianismo por parte do Império Romano são protagonizadas por: Nero (54-68 d.C.); Domiciano (95-96 d.C.); Trajano (108 d.C.); Marco Aurélio (162 d.C.); Cômodo (192 d.C.); Maximino (235 d.C.); Décio (250-251 d.C.); Valeriano (257-260 d.C.); Aureliano (274 d.C.); Diocleciano (303- 313 d.C.). Ver: FOXE, O Livro dos Mártires, 2003, p. 16-32.

que, ao falar sobre o reinado de Nero (54-68 d.C.), fomenta uma simbiose de dados históricos mencionando o próprio Tertuliano:

Firmado Nero no poder, deu-se a práticas ímpias e tomou as armas contra a própria religião do Deus do universo. [...] Mas deve-se saber que a tudo o que foi dito sobre ele faltava acrescentar que foi o primeiro imperador que se mostrou inimigo da piedade para com Deus. Disto faz menção também o latino Tertuliano quando diz: “Leiam vossas memórias. Nelas encontrareis que Nero foi o primeiro a perseguir esta doutrina, principalmente quando, depois de submeter todo o Oriente, em Roma era cruel para com todos.”.169

Portanto, buscando apresentar uma ideia conclusiva a nossa concisa elaboração sobre esse tema tão vasto da história da Igreja, podemos dizer que não restam dúvidas mediante inúmeros argumentos históricos apresentados por diversas e variadas fontes, ser plausível, e até mesmo lúcido afirmar que o Império Romano foi em diversos momentos um literal: perseguidor, acusador, juiz e algoz do cristianismo durante um período de praticamente dois séculos e meio. Scott, por meio de bases historiográficas retrata bem esse processo ajudando-o a sancioná-lo:

Repetidas vezes foram publicados editos para exterminar da terra os cristãos. Levantaram até monumentos para celebrar e perpetuar os supostos êxitos das perseguições. Aqui estão duas preservadas inscrições desses monumentos em escritos da época: DIOCLECIANO CÉSAR AUGUSTO, TENDO ADOTADO GALÉRIO NO ORIENTE. A SUPERSTIÇÃO DOS CRISTÃOS FOI DESTRUÍDA EM TODA A PARTE E PROPAGADA A ADORAÇÃO DOS DEUSES.170

A partir de agora examinaremos um conjunto mais restrito desse longo período imperial (54-313 d.C.)171 de tensões entre a Igreja e seus perseguidores pagãos; especificamente abordaremos o período endossado pelos registros de Justino através de seu ministério, testemunho e vivência na fé cristã.