• Nenhum resultado encontrado

Gêneros e a perspectiva do Interacionismo Sociodiscursivo

Nessa mesma linha de pesquisadores da Unidade de Didática de Línguas da Faculdade de Psicologia e Ciência da Educação da Universidade de Genebra, Schneuwly, Dolz e Bronckart buscaram, com base em Vygotsky, dar existência ao interacionismo sociodiscursivo, ao qual conferem uma dimensão social à psicologia, com intuito de esclarecer as condições de manifestação e de funcionamento do pensamento consciente humano (MACHADO, 2005).

O interacionismo sociodiscursivo, doravante ISD, parece apresentar uma complexidade de interpretações da teoria, pois, segundo Machado (2005), estas interpretações podem ser distorcidas. Isso ocorre devido ao ISD ser uma vertente muito complexa da psicologia da linguagem, que requer um conhecimento amplo, por ser constituído de um diálogo veemente com vários autores de diversas disciplinas da ciência humana.

O ISD permanece em ininterrupta construção, o que lhe confere o rigor de uma leitura constante dos textos produzidos e, além disso, os autores podem optar por termos que

8

Embora já esteja sedimentado na literatura o termo esferas, cunhado por Bakhtin (1997), na tradução direta do francês por Paulo Bezerra, a nova versão de Estética da Criação Verbal, de 2006, traduzida diretamente do russo, traz o termo “campo”. Neste trabalho, utilizaremos tanto um quanto o outro intercambiavelmente.

apresentem significado diferente do que lhes foi conferido, sendo que tais escolhas podem originar riscos de alguns termos serem tomados no sentido mais consensual. (MACHADO, 2005).

Fora esses problemas que dificultam a interpretação da teoria do ISD, percebemos que há uma desordem na conceituação de texto e de gênero, como é possível inferir em Bronckart (2009), ao explicar que, a partir de Bakhtin, a noção de gêneros tem sido empregada, de modo progressivo, ao conjunto das produções verbais organizadas escritas e orais. Com isso, qualquer espécie de texto pode ser determinada em termos de gênero.

Entretanto, os gêneros de textos continuam sendo entidades profundamente vagas (grifo do autor); as múltiplas classificações existentes são divergentes e parciais e nenhuma delas pode ser considerada como um modelo de referência estabilizado e coerente (BRONCKART, 2009, p.73)

O autor realça, ainda, que o problema nesta classificação ocorre devido à diversidade de critérios que podem ser legitimados para dar significação ou definição ao gênero, critérios referentes ao efeito comunicativo visado, ao tipo de atividade humana implicada, à natureza e ou tamanho do suporte utilizado, ao conteúdo temático abordado. Destaca que outros critérios são possíveis. Esse problema que dificulta a classificação também é decorrente da adaptação e do cunho histórico dos gêneros, que podem desaparecer e reaparecer com algumas diferenças, modificações. Além do mais, podem emergir novos gêneros. (BRONCKART, 2009).

Para ele, o critério mais objetivo para identificar e classificar os gêneros poderia ser o das unidades e o das regras linguísticas específicas. Não obstante, no desígnio de escapar

desse embaraço terminológico, consideram “texto toda unidade de produção de linguagem

situada, acabada e autossuficiente.” (BRONCKART, 2009, p.75). À proporção que todo texto

se situa em um conjunto de textos ou em um gênero, eles adotam gênero de texto em detrimento de gênero de discurso.

Embora consideremos importante toda essa discussão que envolve o ISD, o que nos

desperta mais interesse, nesse momento, é que “o gênero adotado para realizar a ação de

linguagem deverá ser eficaz em relação ao objetivo visado, deverá ser apropriado aos valores

do lugar social implicado e aos papéis que este gera [...]”. (BRONCKART, 2009, p.101).

Com isso, podemos refletir que, ao utilizarmos um determinado gênero, temos de ter consciência que ele deverá ser apropriado à situação comunicativa, ao contexto de produção e, obviamente, precisa atender ao objetivo pretendido com essa utilização.

Acreditamos no potencial do estudo efetuado por meio dos gêneros do discurso, assim corroboramos com os preceitos do ISD, destacados logo acima, e com os de Bakhtin (1997), que postula ser praticamente impossível a troca verbal, caso os gêneros do discurso não existissem, não os dominássemos, tivéssemos de criá-los pela primeira vez ao falarmos, ao construirmos nossos enunciados.

Já no universo da Escola de Genebra, que tem largas preocupações com o ensino, o conceito de gênero lá defendido também é bakhtiniano, mas o viés é diferenciado já que a preocupação é com a educação9. Para Schneuwly (2004, p. 20), “o gênero é um instrumento”. Este conceito, proveniente da Psicologia, entende que o instrumento é um objeto socialmente

elaborado que “[...] dá à atividade uma certa forma; a transformação do instrumento transforma evidentemente as maneiras de nos comportarmos numa situação” (SCHNEUWLY,

2004, p. 21). O gênero, portanto, deve ser entendido como um megainstrumento para agir em variadas situações de linguagem.

Ainda no tocante à característica multifacetada dos gêneros, quando ele é inserido na escola, assim como o fazem Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004), com a perspectiva dos gêneros escolarizados, há algumas modificações que são decorrentes da falta da diversidade dos campos sociais que não estão presentes ao serem simuladas situações de uso dos gêneros. A possibilidade que visualizamos para que não ocorra essa perda ao serem realizadas as modificações é justamente ensinar os usos da língua a partir de situações reais e da utilização de textos de circulação social.

Embora a perda de características genéricas, nesse caso proposto pelos autores, seja incontrolável, é interessante considerar essa perspectiva sem a necessidade de simular situações de produção. Quanto a isso, também é imprescindível destacar que deve haver cuidado ao escolarizar os gêneros, devido à prisão ou ao engessamento do gênero a determinadas formas, conteúdos, estilos, que podem ser realizados na tentativa de sistematizar ou didatizar o gênero.

9 Em Bakhtin, o gênero é considerado um recurso para interação. Com isso, pode-se dizer que ele também é um

instrumento. Além disso, a palavra instrumento, utilizada pelos genebrinos, tem motivação marxista, perspectiva sociológica com a qual Bakhtin e o seu círculo corroboram.

Consequentemente, outro problema pode ocorrer, quando o aluno, que costuma seguir as indicações do professor como a uma espécie de preceitos, pode não ter clara a intenção do professor, que é transmitir (trocar) conhecimento de forma contextualizada, priorizando a produção textual. Esta intenção pode ser deturpada, quando o aluno acredita ser necessário apreender apenas as características genéricas e tem certo receio de ser punido quando a sua criatividade é podada ao desviar do que é proposto ou exigido. Isso pode ocasionar justamente o contrário do que os docentes almejam, ou seja, um aluno criativo, crítico e reflexivo pode ser moldado para um aluno que pensa de acordo com as “formas” que lhe são exigidas.

Com isso, acreditamos que o professor deve estar atento a todas essas nuances que podem causar desvios de seus propósitos, além de ter bases epistemológicas definidas e consistentes, como a bakhtiniana, que é uma das utilizadas em alguns livros didáticos. Compreende-se o gênero como um artefato social que é construído historicamente por sujeitos que a cada interação comunicam-se por enunciados, e também o docente precisa deixar claro para o aluno que esses enunciados, sejam orais ou escritos, podem ou não sofrer alteração ao serem inseridos em práticas escolares.

Acerca disso, Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p. 81) asseguram que “o gênero

trabalhado em sala de aula é sempre uma variação do gênero de referência”. O posicionamento dos autores confirma que o gênero na escola tende a ser diferente do gênero que circula socialmente, logo, nessa perspectiva, os alunos realizarão uma simulação do que ocorre na realidade.

Isso pode acontecer, pois o espaço de circulação desses gêneros é atravessado por discursos diferentes, que trazem propósitos comunicativos variados. Nos limites dos muros escolares, o discurso pedagógico é mais saliente, e isso interfere diretamente na produção/ recepção dos textos.

Para realizar essa simulação e tentar suprir a necessidade de ensino da expressão oral e da escrita, Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004) elaboraram o esquema de sequência didática, como um procedimento sistemático de atividades, organizado em gêneros textuais orais e escritos, e é sobre ele que nos deteremos agora.