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Gênese e desenvolvimento da dialética

1.3. Fundamentação histórica e epistemológica do paradigma dialético

1.3.2. Gênese e desenvolvimento da dialética

GADOTTI (1983, p.15) sobre a gênese da dialética se reporta a Sócrates (considerado o grande dialético da Grécia) e anterior a esse Lao Tsé (considerado o autor da dialética por ter introduzido em suas doutrinas o princípio da contradição) e Zenão de Eléia, que considerava a dialética como “filosofia da aparência”. Outro expoente importante na origem da dialética, segundo o autor, é Heráclito de Éfeso, que defendia que a “a realidade é um constante devir, prevalecendo na mesma a luta de opostos: frio-calor, vida-morte, bem-mal, saúde-doença; que por sua vez se transformavam em unidade”. Vemos que a mola propulsora da dialética é o movimento dinâmico, onde os objetos são concebidos como passíveis de transformações contínuas.

A partir daí, a dialética é utilizada e interpretada como “método de dedução racional das idéias” por Platão, à “lógica do provável” de Aristóteles, na Idade Média como “arte liberal”, com o objetivo de discernir o verdadeiro do falso; com Jean Jacques Rousseau temos uma nova forma de considerar a concepção da história através da dialética, onde

essa parte da premissa que a transformação dos indivíduos em sua plenitude somente se daria através de uma organização democrática da sociedade; entretanto, é Hegel quem vai dar um novo direcionamento à dialética, como tema central da filosofia (Ibidem, p.16-17).

Para Hegel (1770-1831), a razão é a chave para o controle e o domínio do mundo e, por conseguinte, da totalidade do real, passando “de suas manifestações mais simples e abstratas às mais ricas e concretas, até chegar às últimas e mais perfeitas que são as formas da vida espiritual: a arte, a religião e a filosofia” em unidade, sendo a dialética o instrumento para esse alcance (ABBAGNANO & VISALBERGHI, 1995, p.459).

GOLDMANN (1967, p.41) lembra que em Kant35, a totalidade é entendida como

“um fim a ser atingido pela ação” sendo essa o único elemento “capaz de criar a comunidade humana, nós e o conjunto do universo, o cosmos”. Para Kant apud GOLDMANN (1967, p. 44-45)

“O universo e a comunidade formam um todo ‘cujas partes, na possibilidade mesma de sua existência, supõem já sua união num conjunto’, onde a autonomia das partes e a realidade do todo estão, não somente conciliadas, mas constituem condições recíprocas; onde em vez de soluções parciais e unilaterais de indivíduos ou da coletividade, aparece uma única solução total: a da pessoa e da comunidade humana.”

É o próprio GOLDMANN (1967, p.65) que nos traz o contraste entre as duas posturas (kantiana e hegeliana), apresentando-nos as principais características de totalidade em Hegel que são

“1ª) Concreta e envolvendo o conteúdo, contrariamente à lógica formal e às leis científicas abstratas; 2ª) mutável, em evolução perpétua, contrárias, portanto, às ‘verdades eternas’ do atomismo abstrato e 3ª) contraditória, se desenvolvendo segundo o célebre esquema triádico: tese, antítese, síntese.”

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Em Kant, comunidade humana, universo e totalidade são entendidos como produto da liberdade de ação de homens livres. Cabe ressaltar também que Kant, segundo GOLDMANN (1967), nunca foi um pensador dialético, entretanto, foi ele o criador da filosofia crítica. O seu entrosamento com a dialética foi impedido pelo seu não rompimento com a tradição platônica e racionalista e admitir uma totalidade submetida à evolução, um ‘deus’ submetido a modificações perpétuas” (p. 67).

Hegel sustenta que a atuação da dialética (entendida como conciliação dos contrários) se processa mediante três momentos específicos

“1) o primeiro consiste na proposição de um conceito que, por ser conceito, é sempre unilateral e abstrato, revelando sua insuficiência; 2) em virtude dessa insuficiência a razão o contrapõe a outro conceito que servirá para completar e enriquecer ao primeiro; 3) a razão cuidará em unir os conceitos precedentes numa síntese que é a conciliação de sua oposição; ... que por sua vez transforma-se num ponto de partida para um novo processo ternário que, não se repete ao infinito, mas que apresenta sua culminância nas formas espirituais da arte da religião e da filosofia” (Ibidem).

HOOK (1976, p.86-95) nos apresenta que para Marx, o princípio da dialética estava intimamente relacionado com a atividade, uma vez que o seu objeto de estudo, não raras vezes, era o sistema social em movimento. Encaminha-se então para a afirmação de que

esse aspecto dinâmico36 da dialética pode ser entendido e trabalhado observando-se 6

(seis) tópicos que são partes indissociáveis do objeto social, a saber: 1) a fluidez do fato;

2) a lógica do desenvolvimento37; 3) o esquema do desenvolvimento; 4) os níveis do

desenvolvimento; 5) o papel da consciência na dialética e 6) os critérios do pensar dialético.

O quadro abaixo nos propiciará uma compreensão mais detalhada e sinóptica de cada um desses elementos na formação do todo dialético marxista.

QUADRO 6

A DIALÉTICA EM PROCESSO

36 Neste contexto, KOPNIN (1978, p.87) afirma que a teleologia básica da dialética não é o de “construir o

conhecimento existente segundo um modelo idealista, mas de interpretar as leis de transição de um sistema teórico a outro, a descobrir as leis da gênese das teorias científicas, as vias de seu desenvolvimento”

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Quanto a este aspecto KOSIK ( 1976) lembra que “a dialética não atinge o pensamento de fora para dentro, nem de imediato, nem tampouco constitui uma de suas qualidades”; considera, todavia, que o “conhecimento é a própria dialética em uma de suas formas; o conhecimento é a decomposição do todo” (p. 14).

A fluidez do fato A lógica do desenvolvimento O esquema do desenvolvimento Os níveis de desenvolvimento O papel da consciência na dialética Os critérios do pensar dialético - Distinção das diversas fases da natureza do objeto e reconhecimento dessas como momentos integrantes de um processo unificador e sinóptico. - A constatação do objeto faz-se mediante uma referência objetiva, de uma conexão sistemática e significativa e mais profunda, assim, o conteúdo do conhecimento e a forma do mesmo são inseparáveis. - Deriva do conflito e oposição que constituem uma situação dialética. - Princípio da negação da negação. - Síntese produtiva dos elementos conflitivos do objeto. - Percepção e leitura de condições objetivas (teses), das necessidades e desejos humanos (antítese) para a produção de uma ação sujeita ao mesmo processo. - O pensamento dialético é regido pelo processo dialético e deve basear-se sobretudo ma coerência, portanto variam, segundo o objeto de aplicação, entretanto, respeitando o rigor dos princípios ou leis dialéticas.

FONTE: HOOK (1976), KOPNIN (1978), KOSIK ( 1976), GADOTTI (1983).

Os princípios (ou leis) da dialética38, como aponta GADOTTI (1983, p.24), que em

Marx e Engels se apresentavam “apenas de forma embrionária”, foram depois desses, assim caracterizados:

1º) Tudo se relaciona (princípio da totalidade) – Esse princípio se caracteriza por uma “ação recíproca” entre objetos e fenômenos, entendendo-os numa totalidade concreta de uma realidade diversa e essa considerando o sujeito cognoscente como ser que age de forma objetiva e prática, movendo a história e movendo-se com a história, bem como com os outros homens, “tendo em vista a consecução dos próprios interesses, dentro de um determinado conjunto de relações sociais”39. Dessa premissa, sobre a realidade concreta do indivíduo histórico em ação, KOSIK (1976, p.9) enfatiza que

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Estas leis foram aqui trabalhadas a partir de GADOTTI (1983), salvo citações selecionadas e comentários do próprio autor. Estas leis também conhecidas como leis da dialética materialista, “refletem as leis mais gerais do movimento dos fenômenos do mundo objetivo, e, consequentemente seguindo as normas dele oriundas, o conhecimento em seus conceitos e teorias, concebe o objeto tal qual existe, independentemente do sujeito em assimilação” (KOPNIN, 1972, p.239).

“(...) a realidade não se apresenta aos homens, à primeira vista, sob o aspecto de um objeto que cumpre intuir, analisar e compreender teoricamente, cujo polo oposto e complementar seja justamente o abstrato sujeito cognoscente, que existe fora do mundo e apartado do mundo; apresenta-se como o campo em que se exercita a sua atividade prático- sensível, sobre cujo fundamento surgirá a imediata intuição prática da realidade.”

E essa totalidade concreta em processo contínuo de interação das partes com o todo, e desse com essas, é o que caracteriza a realidade dinâmica (como analisaremos no próximo princípio ou lei) e também concreta.

2º) Tudo se transforma (princípio do movimento) – A totalidade é entendida como processual e, portanto, em movimento; sob o prisma “negação da negação”. Comparando a totalidade como princípio do movimento em Marx e Hegel, HOOK (1974, p.84), esclarece que

“O conceito de ‘totalidade’ ativa em Marx difere do ‘todo absoluto’ que se renova continuamente em Hegel, pelo fato de que a totalidade marxista é social e está limitada por outras totalidades, enquanto que a totalidade hegeliana é metafísica e ilimitada.”

A limitação de uma totalidade por outras totalidades na visão marxista é o que propiciará o movimento, a transformação da(s) totalidade(s) em novas totalidades, também não totalmente acabadas.

3º) Mudança qualitativa (princípio da mudança qualitativa) – a transformação da totalidade não segue um padrão cíclico, todavia, essa se faz através da passagem da quantidade à qualidade, ou seja, ocorre uma conversão do todo em novo todo, diferente qualitativamente. Exemplo disso é a transformação da água (em estado líquido) em vapor (estado gasoso).

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4º) Unidade e luta dos contrários (princípio da contradição) – Ocorrência simultânea de forças que se contrapõem, resultando ou prevalecendo a síntese, como superação da afirmação e da negação”. Quanto a esse princípio HOOK (1974, p.82) argumenta:

“Não é tanto o número de fases que uma situação atravessa o que faz a dialética, mas uma reação específica de oposição entre elas que provocam uma sucessão de outras fases... A condição suficiente de uma situação dialética se dá quando ocorrem pelo menos duas fases, uma oposição e uma interação tais que o resultado: 1) oferece algo qualitativamente novo; 2) conserva alguns dos elementos estruturais das fases interatuantes e 3) elimina outras.”

Enumeradas as leis da dialética materialista e suas formas de conceber o objeto e atuação sobre o mesmo, cumpre-nos rememorar que essas explicam o conhecimento como um processo em desenvolvimento

“(...) que compreende obrigatoriamente saltos, interrupções da progressão, a conquista de resultados novos à base da solução das contradições que surgem entre o sujeito e o objeto. A dialética não simplifica o processo de raciocínio científico, não o restringe a dedução lógico-formal, mas tampouco dá oportunidade a especulações irracionalistas” (KOPNIN, 1972, p.240).

GADOTTI (1983, p.18) afirma que a dialética somente galgou o status filosófico e

científico (respectivamente com o materialismo dialético e histórico) através de Marx e

Engels; isto nos mobiliza a dedicarmos o próximo subtítulo à discussão da dialética materialista, suas características e princípios norteadores.