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Gíria da diversidade sexual: expressividade e estilo

5. Gíria da diversidade sexual: entre metáforas e expressões

5.1. Gíria da diversidade sexual: expressividade e estilo

Durante o ato de fala, o falante realiza uma seleção lexical, de tal modo que aquilo que é dito, pelo signo selecionado, seja capaz de transmitir tanto o sentido do que quer dizer (sentido comunicativo), quanto a intensidade com que tal sentido é empregado (sentido expressivo).

Com essa perspectiva, a construção da expressividade passa, necessariamente, pela escolha lexical, marca linguística que permitirá o reconhecimento de uma seleção psico-emocional-cognitiva feita e externalizada pelo falante, com base na qual o seu interlocutor tentará reconhecer a força expressiva presente no dito.

Essa força será tão mais expressiva quanto mais “viva” for a metáfora que a embase:

A experiência que a metáfora pretende dizer é a presença inarticulada de um excesso de sentido, cuja dinâmica arranca os significados já constituídos da sua situação ordinária e os transfere para um novo campo referencial. É o pressentimento do referente ‘desconhecido’ que outorga à intenção semântica a “veemência ontológica”, que liberta as significações da sua primeira fixação. Isto quer dizer que as significações não são formas estáveis mas dotadas de uma capacidade de variação e de um dinamismo, que lhes permitem servir outros referentes e cooperar na inovação semântica. A imaginação criadora obriga o conceito a pensar sempre mais, impedindo-o de se cristalizar no seu ideal de univocidade e, por isso, perpetua-se o jogo de interacção e de cruzamentos do metafórico e do conceptual, sem jamais se atingir um saber absoluto e definitivo. Este dinamismo sempre inconcluso dos dois discursos esclarece a noção de

constituída. A metáfora é viva, ao inscrever o impulso da imaginação num ‘pensar mais’ ao nível do conceito”. (Ricoeur, 1983: XXXVII)

Se pensarmos que uma metáfora será tão mais viva quanto mais exigir do interlocutor uma capacidade cognitivo-conceptual para entendê-la, bem como será tão mais expressiva quanto mais empática for a reação do ouvinte, podemos afirmar que os limites do emprego metafórico e, por consequência, do vocábulo gírio, são dados pela inteligibilidade e pela negociação de sentidos.

A inteligibilidade implicaria o “pensar mais” por parte do ouvinte. Caso evidenciasse ou declarasse a sua incompreensão, o ouvinte colocaria o falante no campo da negociação: se quiser explicitar ao ouvinte o sentido empregado, terá que desenvolver o raciocínio que o levou àquele emprego metafórico, possibilitando que o processo comunicacional tenha continuidade; se não quiser esclarecer o sentido atribuído, provavelmente, o falante estará querendo excluir o ouvinte da conversação ou interrompê-la.

Expressão e comunicação acontecem simultaneamente numa situação de fala. Esse dado nos leva a considerar as relações entre “espacialidade, sociabilidade e esferas comunicativas” (cf. Paiva, 1995: 284) como relações constituídas, todo o tempo, pelo embate entre contexto, processo interativo e formas expressivas de comunicação.

Com o objetivo de dar contornos mais precisos à expressividade presente no cotidiano das relações humanas, precisamos explicitar as relações desenvolvidas por Paiva, centrando-nos no convívio social-afetivo:

[...]. Os desejos e as necessidades dos homens, que fundam essas relações [humanas], inscrevem o social na ordem da experiência, do sensível, do emocional. Segundo Michel MAFFESOLI, “a sociedade não é apenas um sistema mecânico de relações político-econômicas ou sociais, mas um conjunto de relações interativas feitas de afetos, de emoções, de sensações que constituem stricto sensu o corpo social.” (id., grifos da autora)

Essas relações interativo-sócio-afetivas acontecem dentro de uma noção de “espacialidade”, de um “espaço carregado de sentido” (ibid, 1995: 285), em que expressividade e comunicação se aproximam, pois

[...] a sociabilidade é uma construção interativa que, articulada à idéia de lugar de ocorrência, inclui o emocional e o afetivo como elementos constituintes. Em um primeiro momento nos parece que a aproximação entre as noções de comunicação e sociabilidade parte da constatação de

que a realidade que temos diante dos olhos não nos permite mais pensar a comunicação como reflexo de relações sociais gestadas fora dos processos comunicativos, que são múltiplos. A idéia de espacialidade vai compor, ou configurar, através da concretude que ela permite, as modificações que o ritmo acelerado da vida moderna imprimiu nos processos interativos vivenciados pelos homens. Isto nos leva à suposição de que as redes ou circuitos comunicativos que perpassam e constroem as relações no interior dos espaços urbanos só podem ser compreendidas se vislumbrarmos a formação dessas redes como resultado de formas específicas de sociabilidade que se constroem, também e sobretudo, pela inserção de uma comunidade, em um “lugar” específico. (ibid., 1995: 285-6)

Ora, a expressividade da gíria de grupo só tende a ser reconhecida em duas situações: nos limites do gueto ou, se fora deste, por falantes que conheçam o uso criptológico e expressivo. A expressividade gíria externaliza, verbaliza, por consequência, uma expressividade grupal. Aqui, uma vez mais, conforme Guiraud, a “gíria identifica o falante”.

Dentro da noção de “espacialidade” como “espaço carregado de sentido”, em que os indivíduos e os grupos procuram expressar e evidenciar a sua individualidade, bem como marcar o seu vínculo identitário, podemos reconhecer duas marcas grupais, igualmente expressivas, identitárias e efêmeras: a gíria (no plano linguístico), e a moda (no plano estético):

Um dos elementos importantes da expressividade do léxico urbano é a gíria, porque reflete o signo de grupo, isto é, um dos meios de realização individual do falante no grupo, verdadeira marca de identificação social. Podemos dizer mesmo que, dentro do processo avassalador de globalização, de nivelamento social do homem nas grandes cidades, é a gíria um dos últimos elementos identificadores, por meio do qual o falante se integra em seu grupo social, deixa marcada sua oposição à linguagem “oficial” da comunidade e conserva os traços mínimos de sua individualidade, sua e de seu grupo. Por isso, talvez o caráter efêmero desse fenômeno lexical, que se renova constantemente como a moda (outra marca individualizadora) seja a melhor expressão da dinâmica que caracteriza o espírito da sociedade contemporânea, na qual os costumes se transformam com uma velocidade nunca antes imaginada. (Preti, 2004: 111)

Ao reconhecermos que a expressividade gíria só pode ser plenamente observável em situações de fala, as quais tendem a se desenvolver entre integrantes do mesmo grupo secundário, constatamos que o vocábulo gírio é uma seleção lexical dialógica:

Para o teórico russo [Bakhtin], “a experiência verbal individual do homem toma forma e evolui sob o efeito da interação contínua e permanente com os enunciados individuais do outro” (21, 314). Nesse

sentido, “as palavras dos outros introduzem sua própria expressividade, seu tom valorativo, que assimilamos, reestruturamos, modificamos” (21, 314).

No interior da comunicação verbal não estamos mais no interior dos recursos lingüísticos sozinhos, e sim, na cadeia de enunciados concretos que a compõem em evolução permanente. É por isso que o enunciado de outrem tem tanta importância nas reflexões do Círculo, e também que um enunciado concreto é uma síntese dialética entre as minhas palavras e as palavras dos outros. (Souza, 2002: 122)

No processo comunicativo-interpretativo de reconhecimento da expressividade gíria, constroem-se e manifestam-se tanto um estilo individual quanto um estilo grupal. A noção de “estilo” torna-se necessária:

[...]. Em 1926, no ensaio “Le discours dans la vie et dans la poésie”, Volochinov nos dá a seguinte definição de estilo: “’O estilo é o homem’; mas podemos dizer que o estilo é, pelo menos, dois homens, ou mais exatamente, um homem e um grupo social representado pelo ouvinte que participa permanentemente no discurso interior e exterior do homem e encarna a autoridade que o grupo social exerce sobre ele” (5,212), ou seja, o estilo, como todos os outros conceitos do Círculo se define pela interação dialógica entre duas ou mais pessoas. O estilo é, da mesma maneira que o enunciado concreto, uma construção dialógica, sociológica e ideológica, ou seja, sempre que nos referimos ao enunciado concreto e seus elementos estamos no domínio do criado. (id., 2002: 123)

Com base nessas considerações, podemos refletir sobre a dupla natureza dialógica do vocábulo gírio: uma antecedente ao seu emprego pelo grupo secundário e outra durante o seu emprego pelos falantes que o integram.

Na medida em que o significado criptológico de um signo gírio é convencionado e sancionado pelos falantes que integram um determinado grupo social primário restrito e que compõem um grupo social secundário restrito, esse processo de negociação e de fixação de significados é eminentemente dialógico. Embora esse momento originário de criação do signo gírio seja muito difícil de ser determinado e registrado pelo pesquisador, não se deve ignorá-lo; pelo contrário: é esse momento inicial que marca o uso inaugural de um sentido criptológico, bem como tende a trazer toda a sua carga expressiva, constituindo-se, talvez, na situação de fala em que mais se poderia presenciar o “estranhamento metafórico”.

Esse emprego do vocábulo gírio, na proporção em que se estende aos demais falantes que compõem o grupo secundário restrito, evidencia, novamente, a natureza dialógica de determinada seleção lexical, enfatizando-se seus aspectos sociológicos e ideológicos.

Para esclarecer esse “percurso dialógico” (do grupo primário ao secundário restritos), mencionamos os seguintes exemplos: casa de chá e a tríade gay – bicha – veado.

A expressão gíria casa de chá não constava no primeiro glossário (Alonso, 2005), tendo sido ouvida em meados de 2009, num diálogo próximo a este:

― Ontem, Pedro e eu fomos tomar chá. (Locutor 1 – L1) ― Chá?! Desde quando vocês tomam chá? (L2 e L3) ― Fomos tomar o chá das cinco na Lagoa. (L1) ― Abriu uma casa de chá na Borges Lagoa? (L3) [Pedro (L4) e L2 já começam a rir]

― Abriu e vem com vapor!!! (L1, já rindo) ― Ah!... É a sauna! (L3, rindo)

― É pra ficar com o saquinho quente!!! (L1) [E os quatro riem]20

Nesse exemplo, conforme relatos, L1 e L4, por frequentarem o mesmo ambiente de trabalho e quase os mesmos lugares nas regiões dos Jardins, adotaram a expressão tomar chá para designar ir à sauna e casa de chá, a própria sauna. Também declararam que os homossexuais mais próximos já estavam adotando o código. Neste primeiro momento de registro, o “estranhamento metafórico” é evidente. As “pistas” que L1 vai apresentando levam à apreensão do sentido por L2 e L3.

Poucos meses depois, ambas expressões gírias foram ouvidas com maior regularidade. Mesmo com uma carga expressiva menor, ainda havia risos.

Retomando a gradação gay – bicha – veado, alguns falantes da diversidade, que provavelmente compunham um grupo primário restrito, convencionaram ou adotaram (se proposta ou empregada por um de seus integrantes) a diferenciação de sentido entre esses vocábulos, com base em critérios de ausência ou de presença de trejeitos efeminados em um homossexual. Esse é o momento que antecede o emprego do vocábulo pelo grupo social secundário restrito.

Uma vez que os integrantes desse grupo primário interajam com membros do grupo secundário restrito e tais falantes também passem a empregar e a difundir aquela gradação, a dinâmica lexical passa a atuar, com maior amplitude, na difusão de valores, na construção ideológica, na configuração de estereótipos. Ou vice- versa: a partir dos estereótipos e da ideologia presentes no grupo secundário, a gíria “criada” no grupo primário será ou não usada. Novamente, corrobora-se a tensão no emprego do léxico entre o indivíduo e a sociedade.

Nesse contexto, a expressividade do vocábulo gírio tanto pode emitir uma indicação do estado emocional do falante quanto um juízo de valor, mas uma expressividade que, espera o falante, seja compartilhada pelos seus interlocutores. Havendo a continuidade desse partilhamento expressivo-comunicativo, vínculos identitários e grupais tenderão a ser reforçados, reforçando os sentimentos de pertencimento (ao grupo) e de diferenciação (em relação aos demais grupos).

No desenvolvimento desses processos dialógicos e ideológicos, identitários e grupais, autoafirmação e “coesão de grupo” tendem a se reforçar pela adoção de estilos semelhantes (modos de se comportar, de se vestir), sendo o estilo linguístico marcado pelo emprego recorrente da gíria.

Nas situações de fala, por consequência, a gíria, enquanto vocábulo expressivo e estilístico, evidencia suas “funções” discursivas:

Não é, pois, tanto na língua que se pode mostrar uma especificidade das gírias quanto em suas enunciações em discurso, em seus usos, assim como nas situações sociais de emprego. As gírias, assim, dizem respeito à sociolingüística.

As funções das gírias foram objeto de debate. A função críptica

(Guiraud, 1963), por muito tempo alegada, é claramente convocada em benefício das funções lúdicas e identitárias. Não mais trabalhando unicamente a partir das fontes lexicográficas e da escrita, os estudos recentes sobre os usos reais dessas gírias nas interações efetivas, assim como as enquetes sobre as representações dos locutores, mostram que as gírias são claramente marcadores de coesão de grupo, grupo de idade, grupo social, grupo profissional (Labov, 1976; Goudailler, 1997). Nesse sentido, se não é justo falar de um “código secreto”, como podem ser consideradas as linguagens de iniciação, o uso das gírias, não obstante, leva a estabelecer demarcações no interior de uma comunidade lingüística entre os que a utilizam, “nós”, e os que não o fazem, “eles”. (Boutet, 2004: 258, grifos da autora)

A gíria, enquanto seleção lexical indicativa de uma busca expressiva e enquanto signo de grupo indicativo de estilos identitário e grupal, constitui e apresenta uma visão de mundo. Justamente no modo linguístico de apresentar sua

visão de mundo é que o signo do grupo secundário restrito consegue fundir construção metafórica e construção estilística: suas finalidades conceptuais e ideológicas encontram-se na perspectiva marginal dada por aqueles que integram o grupo da diversidade sexual.

A transformação conceptual, promovida pela metáfora, é consolidada pela estruturação estilística: “O estilo é resultante de uma visão de mundo. Assim como a cosmovisão estrutura e unifica o horizonte do ser humano, o estilo estrutura e unifica os enunciados produzidos pelo enunciador.” (Fiorin, 2006: 46-7)

A expressividade do vocábulo gírio empregado pelo falante, geralmente resultante do efeito-surpresa (metafórico) decorrente do sentido criptológico atribuído a um significante de uso cotidiano, tende a ser reconhecida e manifestada pelo riso do interlocutor. Esse mesmo riso ajudaria a configurar um estilo irreverente, muitas vezes atribuído àqueles que integram o grupo da diversidade sexual.

Essa irreverência, que também passa pelo riso, pelo cômico e pelo humor, permite-nos algumas considerações sobre eixos temáticos do vocabulário gírio da diversidade sexual e expressividade, desenvolvidas no tópico seguinte.