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Risos: entre desejos, humores, culturas e falas

4. Corpo, sexualidade e gíria: o diverso no contemporâneo

4.6. Risos: entre desejos, humores, culturas e falas

Certamente, algumas gírias analisadas neste capítulo levaram o(a) leitor(a) ao riso. Se procurarmos uma razão para tal ocorrência risível, provavelmente nos encontraremos com questões corporais e sexuais, as mais diversas, sintetizadas por alguns vocábulos gírios.

Ora, duas perspectivas se abrem: a do humor e a do cômico. Reconhecer o erótico no âmbito individual implica atribuir ao riso uma função consecutiva: o riso seria apenas uma consequência decorrente do emprego de uma determinada gíria, ou de um determinado vocábulo que remetesse a temas que, em alguma medida, mobilizassem os desejos (reprimidos ou não) do(a) interlocutor(a).

Parece-nos que o cômico dirige-se à coletividade: ao mesmo tempo em que reúne subjetividades, as dilui e as torna difusas. É neste espaço coletivo (a priori) que situamos o estudo do riso no presente trabalho.

Há um riso transmitido culturalmente que nos precede, que dá contornos sócio-históricos ao cômico e que antecede a nossa elaboração do que seja humorístico.

Kayser (1968: 301-2), ainda que analisando a comédia, declara-nos

o marcado carácter social do cômico: os ouvintes têm de ter uma disposição idêntica, têm de se unir no mesmo instinto que lhes permite avaliar o que pode ser troçado momentâneamente e devem possuir o mesmo instinto na medição da altura da queda. Entre os povos existem aqui divergências visíveis. Sem a uniformidade de disposição nos grupos não há cômico. [...]. O cômico, porém, é um fenómeno social, e nisto reside o facto provado, sempre de novo, pela história da literatura de que um período de comédias florescente tem um fundo de cultura social sólido, uma base de perfeita concordância, coincidindo exactamente os sentimentos, gostos e “preconceitos” da sociedade.

O cômico é uma mutação súbita para uma outra área do ser, a solução de uma tensão.

Dando continuidade a esse processo de diferenciação entre o cômico e o humor, recorremos a Almeida (1998: 38), em especial no que se refere à análise freudiana dos chistes, para estabelecermos uma distinção entre o riso cômico, humorístico e chistoso:

Sobre os motivos dos chistes, Freud, logo no título do capítulo, os coloca como um processo social e se preocupa com o processo comunicacional. Para isto, ele se utiliza das diferenças com o cômico, que necessita basicamente de duas pessoas para se efetivar. Pode-se pensar, por meio da análise de Freud, em três formas básicas de se conseguir o riso: a cômica, a humorística e a chistosa. Sobre o cômico, Freud diz: “um chiste se faz, um cômico se constata”. Quando alguém, por exemplo, escorrega em uma casca de banana o nosso riso é que torna o trágico acidente em algo cômico. Quando tem-se o quadro de uma pessoa muito alta com uma muito baixa, uma muito gorda com uma muito magra, são apenas constatações. Pode-se, portanto, rir sozinho, não é necessário outro para compartilhar. Dito verbalmente, no caso, serve apenas para observar alguma coisa estranha, que altera a ordem natural dos eventos e que pode

ser risível. Este riso só diz respeito ao eu, e ao objeto do qual se ri. Um outro pode rir apenas como espectador da cena observada pelo dito.

Adiante, a mesma autora, com base em Freud, delimita a abrangência do chiste, do humor e do cômico:

Pode-se perceber que no chiste, geralmente, o sujeito ri da situação em que está e a coloca de forma externa a ele. No humor, o sujeito ri principalmente dele mesmo, por estar em determinada situação. O cômico compreende os dois ou exclama sozinho: isto é a vida! (1998: 40)

Reconhecer o humor implica refletir sobre o cômico. Sendo assim, o cômico antecede e abrange o humor. O riso, enquanto fenômeno sócio-interativo- conversacional, é a ocorrência, é a materialidade numa dada situação de fala que, na maioria das vezes, permite dissimular, diluir ou resolver eventuais divergências entre os interlocutores ou entre membros de um determinado grupamento.

Sem dúvida é possível estudar o humor por piadas, por gírias, por formulações linguísticas. Reconhecemos que há humor em certos vocábulos gírios da diversidade sexual (por exemplo, Me dei! Nesta situação, o sujeito poderia rir de si mesmo por ter desejado alguém ou por tê-lo manifestado). Preferimos deixar essa “análise humorística” para um trabalho futuro, diante do fato de entendermos que há uma relação direta entre humor e subjetividade, assim como entendemos que há uma relação direta entre cômico e coletividade, uma vez que este vínculo relacional está mais presente e nos parece mais coerente ao enfoque sociolinguístico, ora privilegiado.

O riso oscila entre o corpo social e o corpo individual. Se retomarmos o “vínculo cogente”, a que faz referência Le Breton16, e o relacionarmos com a investigação dos meios verbais e não verbais que marcariam as diferenças de sexo (conforme Coulthard, 2001: 15-6)17, chegaremos à conclusão de que,

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O poder coercitivo do grupo sobre o indivíduo também vem assim caracterizado por Le Breton (2009: 41): “A simbólica corporal traduz a especificidade da relação com o mundo de certo grupo num vínculo singular e impalpável, mas eminentemente cogente, o qual apresente inumeráveis nuanças de acordo com as filiações sociais, culturais ou regionais, ou segundo as gerações, etc.”

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Quanto às diferenças de sexo, retomamos este trecho de Coulthard (2001: 15-6): “Do mesmo modo, [...], enquanto algumas diferenças lingüísticas são biologicamente determinadas (qualidade da voz, por exemplo), a grande maioria tem a função de identificar os/as falantes em seus papéis sexuais. Sob este aspecto, seria muito interessante verificar quais os meios verbais e não-verbais que homossexuais e travestis usam para marcar sua ‘feminilidade’. Esta pesquisa também esclareceria a questão dos estereótipos sexuais e questionaria a base das diferenças de sexo.”

independentemente das diferenças sexuais, há um desejo erótico que extravasa, se manifesta e se alivia também pelo riso.

No caso dos integrantes do grupo da diversidade sexual, somos levados a pensar o riso como um dos elementos caracterizadores do estilo de vida desses membros. Lembremos Schwanitz (2007: 379-80): “As maneiras caracterizam o estilo com o que o indivíduo se apresenta perante os demais.”

A esse estilo grupal tendente ao riso “malicioso”, ao riso que acompanharia uma temática sexual ou externaria uma percepção erotizante numa dada situação de fala, diante de uma “ostentação pública” de um comportamento sexual não heterossexista, ao “riso homoerótico” poderia se opor um “riso homoestigmatizante”: “Uma pessoa estigmatizada pode gostar ou não de outra portadora do estigma, os indivíduos estigmatizados podem viver em paz ou em guerra entre si – mas algo que provavelmente não acontecerá é que desenvolvam respeito mútuo.” (Bauman, 2003: 110)

Uma vez mais, ao pensarmos em estigma, podemos associá-lo ao estereótipo, que, no caso do grupo da diversidade, principalmente no subgrupo dos homossexuais masculinos, tende a também ser marcado por uma irreverência, em geral, caracterizada pelo riso. Por vezes, o riso interno do grupo reafirma o estereótipo. Recordemos Sell (2006: 38):

Se visível sua homossexualidade através de estereótipo, como voz, andar, trejeitos, ocorre a reação de reprovação moral, tal como sugere um estigma desse nível. E o estigmatizado, por sua vez, reforça o próprio comportamento se afirmando exatamente naquilo que percebe ser agressivo ao meio – é a única forma na verdade em que lhe é permitida a expressão, uma vez estabelecido o estereótipo. Ouve piadas, deboches por sua forma de expressão. Mas não pode fazer diferente.

Dada a ambiguidade do riso, a malícia eventualmente nele presente também pode ser ambivalente. Se ora o “riso malicioso” pode envolver a sedução ou o erotismo, ora pode envolver algum grau de violência, algum tom pejorativo ou ofensivo.

Nesse contexto, a ambiguidade do riso contribui ou facilita a dissimulação recíproca dos interlocutores. O riso, enquanto uma espécie de “marcador conversacional interdito”, auxilia cada interlocutor a afirmar ou a negar uma dada interpretação percebida e declarada pelo seu interlocutor, de acordo com o seu

objetivo, resolvendo ou aumentando a tensão numa situação de fala. Relembrando Michaud (1989: 13-4):

Apesar da diversidade dos grupos humanos, alguns valores recebem uma adesão mais ampla, mas isto não pode dissimular a divergência e a heterogeneidade das convicções. A idéia de violência cristaliza essa heterogeneidade e essas divergências, tanto que o recurso a ela para apreender os fatos é o indício mais seguro de que estão em causa valores importantes – e no centro de um antagonismo.

Ante essas considerações derivadas da análise das relações entre corpo, sexualidade e gíria no contexto contemporâneo em que se inserem os membros da diversidade sexual, podemos situar o riso com os seguintes contornos:

- é um fenômeno ambíguo, cuja ambiguidade contribui mais para a manutenção do que para a ruptura das ainda tensas relações sociais entre subgrupos da diversidade sexual e entre o grupo da diversidade e grupos heterossexistas;

- é um marcador conversacional recorrente nas situações de fala de integrantes da diversidade, principalmente entre homossexuais masculinos, provavelmente também por evidenciar uma conversação de temática essencialmente sexual ou sexualizada. Essas ponderações nos conduzem a refletir sobre os limites do público e do privado.

Ainda que uma palavra traga um sentido determinado, o riso é capaz de subvertê-lo, modalizá-lo ou intensificá-lo. O estado emocional que acompanha o riso ou que o origina dá uma nova significação ao que foi dito, está sendo dito ou se vai dizer.

Com esse pensamento, humor e cômico se interseccionam. O individual encontraria o coletivo ou para ele se direcionaria.

Mas insistimos: o humor requer alguma elaboração, alguma análise por parte do interlocutor, para que reconheça a graça. O riso pode não ser engraçado, pode não ser decorrente da graça.

“Rindo se castigam os costumes.” O riso, por sua abrangência e ambiguidade, oscila entre um desejo que se gostaria de ocultar, mas que, de alguma forma, foi manifestado (geralmente por meios não verbais), o lúdico e a punição, o escárnio ou a derrisão.

A gradação entre os limites do riso (desejo x punição) seria dada, então, pelo lúdico. No presente estudo, a principal base lúdica está no processo de metaforização dos vocábulos gírios, tema analisado no próximo capítulo.