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GABIRU, O QUE TOCA O MISTÉRIO

É falso que o “metafísico e pobre”57 Gabiru não tenha vivido. Pelo contrário, e Raul Brandão bem o sabe, Gabiru é o homem vivo, por excelência, não porque lhe chamem o filósofo, que é apenas uma palavra, vazia, como todas as outras, para além da medula de re-alidade que possa conter, mas porque é aquele que não adquiriu o hábito,58 que quase grita de pavor perante o espantoso universo.59 É aquele que tem vozes esplêndidas dentro de si,60 aquele que quase toca o mistério.61 Então, não vive, o Gabiru?

57P, p. 49.

58P, p. 50.

59P, p. 50.

60P, p. 51.

Não, se, por vida entendermos o comum habitual da exteriori-dade, do acrescentar assignificativo, que não acumula coisa alguma, de experiências, que o hábito da exterioridade transforma em idênti-cas e iguais. Não é, de facto, um homem “vivido”, mas é um homem vívido, um homem que verdadeiramente vive: vive, porque se situa no momento único do acto do ser. E não há outro. Mas este acto, enquanto tal, é o que de menos estável existe: nunca se fixa, nunca é dominável ou capaz de entesouramento, é absolutamente frágil e pobre, frágil e pobre comoos pobres de Raul Brandão. Mas é esta fragilidade e esta pobreza do que apenas decorre e nunca volta que constitui tudo, que é a porta entre o tempo e a eternidade.

A riqueza de Gabiru é intangível, pois Gabiru vive no limite do tempo, já na sua fonte, na eternidade. E todos os que vivem já na eternidade são necessariamente pobres, pois, do eterno, nada se pode possuir, para além da estadia, e esta é o próprio absoluto do movi-mento de ser em acto.

Pobres, isso sim, dos que pensam que podem agarrar-se às ri-quezas do tempo: concretas, materiais, palpáveis. Todas elas duram exactamente o tempo da sua estadia no ser, nada mais, pois são ape-nas o produto dessa mesma estadia, ape-nascem e morrem com ela. Tudo isto é o pó de que se vem e a que se irá aportar. Cinza ontológica, nada mais.

Mas Gabiru é o que vive interiormente para e no tesouro íntimo do ser que brota e mete medo e causa espanto no seu brotar, pois se deixa adivinhar, na sua fonte, como o que, brotando, constitui tudo, como o que se opõe absolutamente ao nada. Não é, pois, o acto que mete medo, mas a intuição do que poderia ser a sua alternativa. É a aparente fragilidade do fio do acto, aparentemente “rodeado de nada por todos os lados” que apavora. Mas o que maravilha é que este frágil fio de água, que brota da fonte absoluta de tudo, tudo seja e se mantenha firme, ocupando como seu o “lugar” que poderia ser do

nada. Espantoso universo.62 Monstruosa natura,63 perante a qual to-das as manhãs estou como se fora a primeira vez. Mas é pela primeira vez: todas as manhãs o mundo é novo, saído de uma obscuridade, parente próxima do nada e sua indiciadora, que provisoriamente nos amortalhou a ambos.

Gabiru é o protótipo do homem que intui o acto no absoluto da sua perene aurora, que não se deixou alienar pelo medo do absoluto do novo, imagem do absoluto do nada, por ausência de continuidade dominável, e contempla cada novo instante como o nascimento ab-soluto do abab-soluto do acto. Por isso, porque sabe que cada ser é absolutamente novo e só tem presente, Gabiru pode a todos amar, não como projecção passional dos seus desejos, mas como vontade de quesejam absolutamente o que são. Por isso, é capaz de amar a Mouca, porque, onde os outros vêm um passado a recriminar, ele vê um absoluto pronto a amar.

O amor vai directamente ao ser das coisas, ao acto dos seres: é, como ele, metafísico, nunca se situa no tempo, mas na instância mesma do acto próprio de cada ser, saudando o absoluto da sua no-vidade, enriquecimento para o todo do acto. O teu ser não só não me rouba a possibilidade de ser própria, como a acrescenta, pois o teu ser expande o horizonte de possibilidade do meue, quanto mais ser tu fores, mais o meu universo se expande em possibilidades da-das pelo teu ser, mais eu me enriqueço. Aqui, reside a verdadeira riqueza: é ontológica.

Gabiru colecciona a dor.64 A mesma dor que não se sabe o que é, para onde vai,65para que serve. Mas, para quê coleccionar a dor? “Para se criar é preciso sofrer.”66 Porquê? Porque a criação é a morte de tudo o que não é o absoluto do mesmo acto criador e o sofrimento provém da ligação do homem ao que já não é, ao que, absolutamente,

62P, p. 50.

63P, p. 50.

64P, p. 54.

65P, pp. 53-54.

já foi, mas persiste na ilusão desesperada, que substitui a vera reali-dade do inamissível mas intangível momento criador pela hipóstase do que é o encarceramento dos seus “efeitos” emsuposta memória, que mais não é do que a adoração do cadáver do acto transcorrido.

Perder esta ilusão dói, perceber o absoluto do movimento criador, que nada deixa para trás, faz sofrer.Os pobressão os que perderam a ilusão da posse dos efeitos e que, como lhes roubam o sentido do ab-soluto do presente, vivem como se nada possuíssem: nem o abab-soluto do presente nem o relativo hipostático dos seus efeitos.

Mas a dor e o sofrimento são a marca de fogo que substitui o absoluto de sentido da presença do acto que os ergue. A dor e o sofrimento são o relativo do seu ser, mas são sentidos como o mesmo absoluto próprio seu. É por isto que têm de ser coleccionados: são o precioso resto mortal da ontologia dos pobres, quase-cadáver de seu acto, mas ainda grito de vontade de ser, ainda prenhe de acto, ainda, paradoxalmente, vida. Gabiru é o tesoureiro desta riqueza, aquele que, contemplando-a, não a deixa morrer, aquele que, homem, faz o papel de Deus, recolhendo em si e amando toda a dor, todo o sofrimento, todo o ser. Nele, encontram sentido, nele são salvos, nele transformam-se em espírito.

Para onde vai, então, toda esta dor? Ou vai para sítio nenhum ou vai para o absoluto do ser de cada um daqueles a quem dói. A primeira hipótese pode ou não verificar-se e não necessita de explici-tação. A segunda hipótese é sempre verificada: a dor é sempre parte do absoluto do acto daquele a quem dói. Este acto é que pode ou desaparecer em absoluto ou não. No primeiro caso, toda a dor é vã, dela nada restará absolutamente e toda a existência é absurda. No segundo caso, a dor é o preço da aquisição do sentido do absoluto do acto, o sentido da sua mesma transitoriedade, mas vale o que vale o acto realizado e desaparecerá quando deixar de haver o que perder: viver no absoluto acto de criação, é viver sem dor e não há dor na eternidade. É exactamente aqui que o melhor de Gabiru vive.

“O universo é sonho dolorido de Deus”.67 Raul Brandão opta pela segunda hipótese: a dor é onto-poiética. O tempo é o cadinho do acto do homem e este faz-se doloridamente, não porque Deus seja sádico, mas porque o tempo é o necessário modo da perda do que foi, em nome do que é.

O absoluto do que é é incompatível com a relativização do que foi. Quem não conseguir instalar-se neste absoluto necessariamente sofre. Maso tempo é a possibilidade de o homem se instalar no abso-luto. Mas é também o seu preço e a moeda é a dor. Com ela se paga o desacerto ontológico. Ora, o que é ontologicamente blasfemo, no que diz respeito aos pobres, é que este seu desacerto não é culpa deles, é culpa de quem lhes rouba a possibilidade do acerto, condenando-os à pura relatividade do tempo e da perda. Mas há, aqui, uma poética justiça: é que aqueles que oprimem, felizes na sua pompa exterior, não sabem que, por cada moeda de dor que obrigam os pobres a de-por no tesoiro do acto, este dá-lhes outro tanto e, no fim, quem vai ter algo para mostrar vai ser quem sofre, não os outros, pois só da dor nasce a beleza absoluta.68

Patenteia-se, também, emOs pobres, o sentido da integração do destino dos homens e a responsabilidade comum pelo ser de todos e de cada um: todos são responsáveis e obreiros pelo e do ser de cada um e de todos, ninguém se salva independentemente dos outros e todos os actos contam para a constituição do acto da humanidade. A ligação entre o ontológico-ético e o ontológico-político assume foros de vínculo substancial, dando carácter unitário à humanidade, que deixa, assim, de ser espécie e passa a ser indivíduo.

Gabiru procura o absoluto. Isso que pode dar sentido à vida, não num horizonte escatológico espacializado longínquo, como a dívida à morte,69mas como o puro acto de cada instante, na sua plena actu-alidade, sem referência fundamental outra que não a da sua radicação

67P, p. 54.

68P, p. 53.

nisso que faz com que o nada não seja. Isso é osimples. A simplici-dade do acto, que as suas simples ideias70tentam amar, isto é, ser. É aqui que está a imortalidade da alma.71 É nas horas em que é simples que acredita na imortalidade, pois esta é o sentido da presença do ser, do absoluto, do infinito, manifestado nas pequenas coisas, coi-sas simples. É na fragilidade destas que se descobre o absoluto da força do ser: quanto mais débil parece ser a manifestação do ser, mais necessário se torna que o que sustenta essa debilidade aparente seja grande e forte. Os acontecimentos antropicamente grandiosos parecem bastar-se a si próprios: quem duvida da força de uma tem-pestade?; nesta, a matéria parece dominar, do alto da sua soberana, estúpida força. Mas, quanto mais grandiosa é a actividade que jus-tifica o ser do pequeno botão de rosa ou da “insignificante” folha de erva! Quão mais “inteligente” parece ser... É claro que a rosa é bem mais complexa do que a tempestade, tem outros níveis de complexi-dade. Então, qual a razão que leva a pensar que a tempestade é “mais forte” do que a rosa? É o poder manifesto que demonstra. É uma questão política e de poder.

A simplicidade que o Gabiru procura e, por vezes, atinge, nada tem de político: ele ama os seres,apesar da sua imperfeição, na sua imperfeição. A atitude de poder dos homens, semelhantes aos que exploram as prostitutas ou vilipendiam o Gebo, é de poder e ódio: querem apenas gozar do e o bem que resta aos outros e, para além disso, apenas os odeiam. Gabiru pressente e, por vezes, vê mesmo o que há de eterno no ser dos outros e das coisas e, por isso, ama-os e, ao amá-los, ama o absoluto que os ergue e que são e toca a eternidade. Mas este afloramento do absoluto do que é é algo de radicalmente solitário. O encontro com o ser dos outros não se dá no ser deles, que não pode ser invadido, esse é o sonho dos tiranos,72 mas na sua

70P, p. 67.

71P, p. 65.

72 No contemporâneo nosso mundo, a comunicação que prevalece é tirânica, pois funciona por invasão da interioridade de cada pessoa. Não se trata verdadeira-mente de conhecer o outro, mas de o dominar. Daqui, deriva a sensação de falta de

mesma interioridade: é deixando aberta a matriz do seu ser que pode receber a manifestação do que os outros são. Isto significa acolhê-los no que são e como são, ou seja, amá-los e, assim, o seu amor por eles coincide com o seu mesmo conhecimento e este com o toque no eterno.

Terrível paradoxo: quanto mais próximo ontologicamente dos outros, mais afastado politicamente, mais humanamente só. É claro que só quem ama ganha para si a eternidade: pois, que eternidade é a do vazio ontológico? Quem viveu vazio que eternidade pode alme-jar? “Feita de quê?” Se a morte que o visita como visão e o aterra,73 porque não é uma possível passagem, mas uma aniquilação, tudo aniquila?

Parece haver um profundo desacerto em Gabiru: parece não pres-tar atenção àquilo que o rodeia, à comum realidade, sempre alheado em cogitações irreais. Mas, enquanto os outros se entregam irreflec-tidamente à realidade, à sua irracional dureza mecânica e ainda mais irracional dureza da humana maldade, comprazendo-se nela e com ela, sendo suas vítimas e contribuindo para que haja vítimas suas, – estas, sim, fazem parte da realidade, não porque a contemplem, mas porque a ajudam a criar –, Gabiru vê o que há de mais importante na realidade e que escapa ao olhar comprometido e superficial, porque comprometido e superficial, dos outros, dos realistas.

Mas é ele que é o verdadeiro realista, pois é o único que vê o que há de profundo no real, isto é, o que há de mais real no real, não para além do real, masnoreal, na sua exacta e mesma espessura, em que tudo o que é está. São os outros que são os “idealistas”, pois são

liberdade. Por outro lado, como, mesmo assim, a interioridade resiste, e não é re-almente possível a ela aceder, há que reduzir as pessoas a uma pura exterioridade, conhecível imediatamente e imediatamente reconhecível por um universo de seme-lhantes exterioridades inquisitoriais. Por outro lado, quem não quer ser submerso por esta rede de invasão da intimidade ou corta com o sistema ou adapta-se-lhe, cindindo-se, neste caso, em interioridade “privada” e exterioridade adaptada à pú-blica forma.

eles quem nega o que é, substituindo-o por imagens de desejos, que hipostasiaram, de incapacidades, que funcionam como impotências de bem, mas potências de mal.

Que realismo há em não perceber a pessoa humana no homem político, entidade imaginal a que se reduz o homem verdadeiro, a fim de melhor o dominar? Que realidade é essa que é captada como mera superfície, sem profundidade, pelo desejo de domínio, de tirania? Uma mera redução política do que o ser do homem é a uma imagem politicamente dominável. Não, não são estes os realistas. Realista é Gabiru, que intui a mulher que há na Mouca, não para além da Mouca (não há para além da Mouca), masna Mouca, considerada como um todo, emholística intuição da sua entidade, impossível em acto, mas possível como possibilidade. Gabiru é o que vê a possibilidade de ser da Mouca e a ama, no que pode ser, aqui sim, para além da redução política a que foi sujeita.Gabiru é o homem que vê ontologicamente. Por isso, é o único realista.

O que nele parece sonho e idealidade é a intuição da possibili-dade de plenitude do ser. Enquanto os outros se limitam a ver o que é à superfície e, politicamente, reduzem o todo do ser a essa pelicula-ridade dominável, Gabiru vê o ser como possibilidade de plenitude: por isso, “sonha”. Mas não sonha: amao possível, isto é,ama o cerne mais íntimo do ser, que é o absoluto do seu poder ser, isso sem o que o ser nunca seria. Enquanto os outros se contentam com o aparente absoluto do relativo do que é, Gabiru anseia pelo absoluto do poder ser.

Não admira, pois, que os primeiros vivam prisioneiros do poder, enquanto ele vive na abertura criadora do amor. Gabiru ama, mas não ama o que é, como o que já foi: não é pretérito o seu amor, é arqueológico, mas no sentido de amar, não a água da fonte, mas a fonte, que é água plenamente. Gabiru não ama o ser no seu relativo estar, mas o ser na sua radical fonte, isto é,ama o absoluto acto do ser, que é o seu todo, mesmo a sua estadia. Por isso, ama o que os outros desprezam e querem destruir, para provar que ainda são fortes.

Ama a Mouca, não na sua aparência política de relação com os outros homens, mas no absoluto da sua relação com o que é, ou seja, ama-a na plenitude do seu ser, do que foi, do que é, do que pode ser.

Ora, verdadeiramente, da Mouca, para amar pristinamente, já só há o poder ser (como, aliás, em tudo). Amar este absoluto de possi-bilidadeé, mais do que limitar-se a contemplar o que ela vai sendo, criar o ontológico lugar para que seja, é criá-la. Gabiru bem sabe que, se todos os homens amassem a possibilidade dos outros homens, não teria mais que sonhar com o amor, pois o seu reino já aí estaria.74

“Só as criaturas que sofrem é que são dignas de viver, e na ver-dade são as únicas que vivem.”75 Raul Brandão não se compraz com o sofrimento, embora o entenda, como poucos, na sua espessura, den-sidade, fundura, largueza e, talvez sobretudo, elevação: é, de entre raros, capaz de intuir o sentido profundo, não apenas do sofrimento que, sem este mesmo entendimento, não tem qualquer sentido, mas dos actos a que o sofrimento conduz os homens. A afirmação ci-tada não é, pois, nem sádica nem masoquista nem comiserativa, é a manifestação, posta em sonho de Gabiru, de algo muito profundo, in-tuído pelo autor: é que apenas o sofrimento, na directa proporção da sua grandeza, permite ao homem a descoberta de dimensões próprias que, sem ele, para sempre permaneceriam insuspeitadas.

Assim, uma vida totalmente destituída de sofrimento pode ser uma vida agradável, é certamente uma forma de vida, mas deixa quem a vive alheio às dimensões para que o sofrimento abre. As-74É um outro modo de ver a possibilidade de uma “cidade de Deus”, não como uma utopia ou um mero desejo piedoso ou, ainda, como uma mera teoria, mas como o exacto possível lugar do amor dos homens uns pelos outros, não num sen-tido ainda político e exteriorista, mas no sensen-tido do amor da plena possibilidade do seu ser. Este amor pela possibilidade da plenitude do outro implica necessaria-mente o envolvimento da sua radicação mais profunda no mesmo infinito que tudo une pela possibilidade, porque é o acto que desmente a sua negação, isto é, é o acto que desmente o nada. Este acto, que confere o ser a tudo, é o fundamento primeiro e último daquele amor.

sim como uma vida em que apenas haja sofrimento deixa quem a vive sem qualquer noção do que seja viver sem sofrimento. Não é por isto ser óbvio que não deve ser mencionado: a atenção tende a não ser senão em acto...

Mas o que Gabiru afirma, e é chocante, é que só quem sofre tem direito a existir. Porquê? Não tem, quem não sofre, direito a existir? A vida, vivida sem sofrimento, não merece ser? Parece absurda tal tese e é. Mas é, tão só, em um possível registo, a saber, naquele em que a vida sem sofrimento seja uma vida em que a ausência de sofrimento próprio não implique e se funde em sofrimento alheio. Desconfiamos que será, talvez, fútil e superficial, seja, mas não é daninha para terceiros e, assim, nada lhe obsta. Mas, tendo em conta o contexto, já não é aceitável que a vida sem sofrimento de uns se erga sobre o sofrimento dos outros: neste caso, sendo os últimos a fundação de tudo, só eles têm direito a existir. Já que o sofrimento é o fundamento da existência, então que seja apenas o da própria, que lhe é consubstancial, não o da alheia, que o parasita ontologicamente. Deste modo, o sofredor tem único direito a ser, porque é o único que, verdadeiramente, é. Não se trata de um direito político, mas ontológico: o sofrimento, indiscernível do que o seu ser é, é o seu mesmo direito a existir, não porque alguém lho confira, mas porque se confere a si mesmo esse direito, de que é, não só indissociável, mas indiscernível.

Mas ainda é muito moral esta leitura. Aprofundemos mais: é o próprio modo de vida e de ser que, não só confere, mas é exactamente o mesmo direito a existir, a ser. A vida superficial de quem não sofre é o seu mesmo e próprio direito a ser: é tudo o que é, e o que é é pouco – isto é o seu direito, direito menor, ontologicamente menor. A vida profunda de quem sofre é, também, o seu mesmo e próprio direito a ser: proporcional à profundidade de realização do ser que vai sendo, direito mais profundo e ontologicamente rico. E cada um já tem a sua exacta recompensa: é o que é, absolutamente. Não há, aqui, pois,

nem sobranceria política nem arrogante impiedade, apenas a intuição de queo direito a ser coincide com, é a mesma dimensão que se vive. Para o homem, ser é coincidir com o ser que se é. Ora, o sofri-mento, pela proximidade semântica a que obriga, na interioridade de cada homem, com o que esse homem é, é o que faz com que o ho-mem melhor coincida, em termos de sentido, com o exacto acto que está sendo. Isso é inalienavelmente seu, como é seu tudo o que for vivido assim. Mas isto é a mesma vida. Isto é viver. O sofrimento o que faz é relevar este sentido, como absoluto do sentido, como ab-soluto do sentido do que o acto que o homem está sendo é. É aqui que a coincidência é máxima. Não admira, pois, que o sofrimento seja sempre sentido como nosso, absolutamente nosso e verdadeira-mente incomunicável. O seu carácter absolutaverdadeira-mente centrípeto não deixa dúvida sobre a sua pertença ou sobre a sua realidade e sede. Se, para quem sofre, muitas vezes, tal não é viver, é exactamente porque semelhante viver é precisamentea coincidência do sentido possível

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