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1. TRANSPARÊNCIA, CUSTOS E EFICIÊNCIA

1.2. Garantia constitucional à transparência tributária

1.2.2. Garantias opostas: transparência tributária e sigilo fiscal?

Intuitivamente, o valor oposto à transparência seria o sigilo, no caso do Direito Tributário, colocar-se-ia o sigilo fiscal.

Na parte inicial deste capítulo, colocou-se um problema fático de qual seria a fundamentação dos Fiscos Federais, Estaduais ou Municipais em negar acesso aos atos (incluindo decisões) que contenham o entendimento administrativo sobre a aplicação das normas tributárias: sigilo fiscal. O sigilo fiscal seria um contraponto hábil a impor o não cumprimento geral à transparência tributária?

11 Apesar do termo transparência fiscal englobar a transparência tributária, a mesma tem sido mais

utilizada para fins de conhecimento e controle da população em geral dos gastos públicos, não sendo direcionada para fins de esclarecimento da relação jurídico-tributária existente entre o Fisco e o contribuinte.

É interessante o confronto entre esses dois valores, pois auxiliam a definir o alcance jurídico de cada um deles. Já se densificou o princípio da transparência

tributária em sua base constitucional, mas não o sigilo fiscal.

A garantia ao sigilo fiscal teria como sua origem constitucional o art. 5º, X e LX, da Constituição Federal, mesmo sem menção expressa à situação fiscal tributária. Ambos os dispositivos colocam como garantia constitucional e geral a

inviolabilidade, a intimidade, a vida privada e a honra, sendo inclusive uma ressalva

ao dever da publicidade administrativa. O que se aproxima do entendimento da própria Secretaria da Receita Federal do Brasil em seu Manual do Sigilo Fiscal (aprovado pela Portaria RFB n. 3.541/2011 – BRASIL, 2011, p. 11):

O sigilo fiscal, portanto, em que pese não estar expresso na Constituição Federal, fundamenta-se e surge como desdobramento dos direitos constitucionais à inviolabilidade da intimidade e da vida privada, tanto das pessoas físicas quanto das pessoas jurídicas, impedindo a Administração Tributária de divulgar informações fiscais de contribuintes e terceiros.

A regulação infraconstitucional estaria no art. 198, do Código Tributário Nacional12, o qual disciplina que a vedação de publicidade diz respeito, especificamente, a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de

terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades. Sigilo esse

que o referido manual classifica como sigilo funcional (BRASIL, 2011, p. 16). Todavia, os arts. 198 e 199 do CTN enumeram várias exceções, como acesso a autoridades públicas com atribuições de fiscalização e julgamento, entes federativos, inscrição em dívida ativa, parcelamento e representação fiscal para fins penais.

Observe-se que o sigilo fiscal seria a exceção do dever de publicidade e transparência. Assim, ela somente poderia ser mitigada quanto às informações

12 Texto do art. 198, do CTN, com a redação dada pela Lei Complementar nº 104/2001: Art. 198. Sem

prejuízo do disposto na legislação criminal, é vedada a divulgação, por parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades. § 1o Excetuam-se do disposto neste artigo, além dos casos previstos no art. 199, os

seguintes: I – requisição de autoridade judiciária no interesse da justiça; II – solicitações de autoridade administrativa no interesse da Administração Pública, desde que seja comprovada a instauração regular de processo administrativo, no órgão ou na entidade respectiva, com o objetivo de investigar o sujeito passivo a que se refere a informação, por prática de infração administrativa. § 2o O intercâmbio de informação sigilosa, no âmbito da Administração Pública, será realizado

mediante processo regularmente instaurado, e a entrega será feita pessoalmente à autoridade solicitante, mediante recibo, que formalize a transferência e assegure a preservação do sigilo. § 3o Não é vedada a divulgação de informações relativas a: I – representações fiscais para fins penais;

sensíveis do contribuinte, vinculadas à intimidade e vida privada, mas não quanto às relações entre os cidadãos e o Estado de forma geral. Considerando que crédito tributário é entendido como receita pública (BALEEIRO, 1989, p. 117), a sua realização é de interesse público e sua publicidade deve ser limitada a apenas pontos referentes à intimidade sensível do contribuinte. O questionamento seria: qual é intimidade ou parcela da vida privada a ser protegida?

De forma consciente, a Secretaria da Receita Federal do Brasil é clara quanto à ausência da guarita do sigilo fiscal às seguintes informações, pois são de interesse público inclusive para fins de segurança jurídica, conforme a Portaria RFB n. 2.344/2011, art. 2º, § 1º:

Art. 2º São protegidas por sigilo fiscal as informações sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades, obtidas em razão do ofício para fins de arrecadação e fiscalização de tributos, inclusive aduaneiros, tais como:

I – as relativas a rendas, rendimentos, patrimônio, débitos, créditos, dívidas e movimentação financeira ou patrimonial;

II – as que revelem negócios, contratos, relacionamentos comerciais, fornecedores, clientes e volumes ou valores de compra e venda;

III – as relativas a projetos, processos industriais, fórmulas, composição e fatores de produção.

§ 1º Não estão protegidas pelo sigilo fiscal as informações:

I – cadastrais do sujeito passivo, assim entendidas as que permitam sua identificação e individualização, tais como nome, data de nascimento, endereço, filiação, qualificação e composição societária;

II – cadastrais relativas à regularidade fiscal do sujeito passivo, desde que não revelem valores de débitos ou créditos;

III – agregadas, que não identifiquem o sujeito passivo; e IV – previstas no § 3º do art. 198 da Lei nº 5.172, de 1966.

Ou seja, os atos vinculados ao entendimento de aplicação da norma tributária, decisões do contencioso tributário, do consultivo ou das áreas de orientação, não integram o rol de informações sigilosas. Porém, é possível averiguar que podem ser consideradas sigilosas situações relativas a informações econômicas e financeiras, mas até que ponto? Nota-se que o lançamento tributário pode efetivamente conter dados a esse respeito, assim como as decisões do contencioso administrativo.

Boa parte da pergunta acima foi respondida pela própria Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, em seu Parecer PGFN/CDA n. 2.154/2007. Todos os atos da vida social ou negocial cotidiana que são informados voluntária ou coercitivamente em registros públicos não estariam resguardados por sigilo:

11. Observamos que dados meramente cadastrais não estão resguardados por qualquer espécie de sigilo, visto que são dados costumeiramente fornecidos pelos sujeitos em sua vida social, negocial, quotidiana, v.g.: número do CPF, CNPJ, RG, telefone, agência e conta bancária, nome completo, estado civil, endereço, bens legalmente submetidos a registro público, pessoas jurídicas de que participam ascendentes, descendentes, etc. Estes dados, por serem fornecidos pelo próprio sujeito espontaneamente e usualmente ou por obrigação legal a registros públicos, não integram a sua esfera da intimidade ou da vida privada, sendo dotados de certo grau de publicidade inerente ao seu uso na sociedade. Basta ver que qualquer folha de talão de cheques contém boa parte deles.

Logo, houve uma densificação a contrarium sensu de intimidade ou vida

privada a qual deve ser resguardada pelo sigilo fiscal: aquelas informações ou dados

que não seriam públicos por dever legal ou constitucional, ou ainda aqueles que normalmente não são fornecidos voluntariamente pelo contribuinte.

Além dos exemplos dados no parecer, excluir-se-iam do sigilo os registros veiculares e imobiliários, atas e registros de reunião de pessoas jurídicas de direito privado (levadas a arquivo nos respectivos órgãos de controle ou registro), os registros contábeis (livros diário e caixa, escrituração digital), várias espécies de contratos (ex.: os realizados com escritura pública, constituição societárias etc.), transações em mercados de títulos mobiliários (bolsas de valores), entre outros atos, todos os quais a própria legislação civil e empresarial determina ou faculta a sua publicidade. Acrescem-se aos exemplos os atos que envolvem a gestão pública como concessão de benefícios fiscais, movimentação financeira, contratos, convênios, dados de recursos de todas as naturezas, os quais têm origem justamente no princípio democrático13, no art. 37 da Constituição Federal, ou regulamentados de forma intensiva pela Lei de Acesso à Informação (Lei n. 12.527/2011).

13 A relação entre segredo público e gestão pública é ponto fundamental quanto ao Estado

Democrático de Direito, pois a assimetria de informações gera instantaneamente menores condições de representação e escolhas dos cidadãos quanto à condução do Estado, conforme fundamenta Joseph Stiglitz (1999, p.7): To me, the most compelling argument for openness is the positive

Madisonian one: meaningful participation in democratic processes requires informed participants. Secrecy reduces the information available to the citizenry, hobbling their ability to participate meaningfully. Any of us who has participated in a board of directors knows that the power of a board to exercise direction and discipline is limited by the information at its disposal. Management knows this, and often attempts to control the flow of information. We often speak of government being accountable, accountable to the people. But if effective democratic oversight is to be achieved, then the voters have to be informed: they have to know what alternative actions were available, and what the results might have been. Those in government typically have far more information relevant to the decisions being made than do those outside government, just as management of a firm typically has far more information about the firm’s markets, prospects, and technology than do shareholders, let alone other outsiders. Indeed, managers are paid to gather this information.

Logo, as normas de sigilo fiscal a atos e decisões administrativas de qualquer natureza tratam de exceções e não afetam atos do contencioso tributário, do consultivo ou de orientação. Salvo em caso de informação íntima sensível, não há segredo justificável pela garantia do sigilo fiscal. E, quando da ocorrência de situação de efetiva necessidade de resguardo sigiloso, essas informações podem ser ocultadas facilmente, a exemplo de valores, patrimônio e outros elementos14.

Em consonância a tal raciocínio, Eurico de Santi (2014, p. 547), inspirado por Joseph Stiglitz, expõe que aplicação do sigilo fiscal deve ser cautelosa:

O sigilo fiscal não pode servir de escudo jurídico ao controle social dos atos da administração tributária. O sigilo fiscal não pode comprometer a segurança jurídica pela assimetria de informação em nome do argumento altruísta, segundo o qual o sigilo fiscal existe para proteger a livre concorrência, privacidade e a intimidade do contribuinte. As consequências do abuso do sigilo fiscal são: difusão de insegurança jurídica sistêmica, fomento exponencial da indústria do contencioso fiscal e bloqueio e não submissão da administração pública ao controle social e de seus atos. Participação efetiva no processo democrático exige participantes informados. Gestores públicos e privados sabem disso, e frequentemente, tentam controlar o fluxo da informação. Contudo, não há a mesma liberalidade sobre a disponibilidade da informação no meio público que no ambiente privado. (...) Informações produzidas e coletadas por servidores públicos são de propriedade intelectual pública. (...) O segredo de qualquer informação pública indica direta ofensa e restrição a eficiência da ação dos servidores públicos.(...) O sigilo aumenta a escassez e consequentemente, o preço da informação, induzindo o afastamento de mais eleitores que não têm “interesses especiais” na participação ativa do processo de decisão democrática.

Em que pese à natureza do sigilo fiscal, não se vê como contrária à transparência tributária, mas um valor complementar para proteger pontos essencialmente sensíveis, os quais não impedem a divulgação de atos e decisões administrativo-tributárias. O segredo fiscal somente serve para proteger o que é a efetiva exceção à transparência. O mau uso do sigilo fiscal, como alertado por Eurico de Santi, é prejudicial a todos e ilícito, transformando-se efetivamente no oposto de transparência: opacidade.

14 Exemplo positivo do pseudoconflito transparência e sigilo está na forma tratada pelo Conselho

Administrativo de Defesa Econômica (CADE). O CADE reconhece que o entendimento do que deve ser dado sigilo deve ser especificado e justificado pelo interessado (julgador, parte, ou funcionário - art. 55, do Regimento Interno do CADE), além de determinar que o ato seja praticado em duas versões, a aberta (para divulgação) retirando da visão pública o que efetivamente deve ser protegido, e a restrita que somente é facultado o acesso aos envolvidos no respectivo processo.