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Gastronomia e regionalidades: perspectiva etnográfica

Tratar de uma gastronomia de características campesinas, como é a do objeto do presente trabalho, leva ao uso, em algum momento, das ferramentas disponíveis para a análise da história oral. Segundo Thompson (1992, p. 41), um dos trunfos da abordagem oral da história é que ela trata de “vidas individuais – e todas as vidas são interessantes. [Ademais], baseia-se na fala, e não na habilidade da escrita, muito mais exigente e restritiva.” Como já explicitado na introdução desse trabalho, a escolha do autor deu-se por consultar entrevistas já produzidas, disponíveis no acervo do ECIRS, pela impossibilidade de se abordar, atualmente, pessoas ainda vivas que tenham presenciado os fatos no recorte histórico pretendido. Infelizmente, o número de entrevistas que dá destaque à alimentação é restrito.

Acerca da miserabilidade e da pobreza, Paviani (2005, p. 33), em entrevista concedida a Irino de Conto, explica que, apesar da relativa monotonia da comida diária, não considerava-se em situação de fome: “se diria pobre, não era pobre porque comida tinha, que a mãe criava muito porco, galinha tinha. Mas não era aquela fartura que tem hoje. A comida era muito escassa.” Se não consideravam-se pobres como um todo, o que parecia haver, segundo o relato dos demais entrevistados, era mesmo uma monotonia alimentar, indício, todavia, de uma cozinha de possibilidades escassas.

A polenta ocupa lugar de destaque nos relatos. Ao redor dela, gira a roda alimentar do colono da Serra Gaúcha. A descrição de Piazza (2014) acerca do cotidiano alimentar de sua família em Nova Milano ratifica a prevalência deste tipo de alimento:

Fazíamos a primeira refeição da manhã por volta das 7h30min ou 8 horas. Tomávamos café com leite, polenta tostada ou pão [...]. Ao meio dia, então, havia polenta. Em nossa casa faziam a polenta ao meio-dia, polenta e carne [de porco ou galinha]. [...] E, à noite, então, havia a ministra. Geralmente havia, também, carne, verduras refogadas e polenta tostada que sobrava da grande polenta feita no almoço. Polenta e pão jamais faltavam à mesa.

Gazzi (2014, p. 34), por sua vez, quando questionado se a polenta fazia parte da refeição do meio-dia, é assertivo: “aquela era direto, direto aquela, polenta e pão nunca faltaram, graças a Deus.”91 Ter polenta e pão, ao que tudo indica, era providência essencial nas refeições, o certo quando todo o mais não existe.

As sopas, da mesma forma, acompanhavam a faina diária. Piazza (2014) cita que, à noite, “havia a minestra”, consumida juntamente com a polenta sobrada do dia, tostada, carne e verduras refogadas, e Gazzi (2005, p. 33), em seu relato, confirma a onipresença da sopa de feijão na dieta também da sua família: “sempre havia sopa de feijão.”92 As outras sopas, como a de agnolini e capelleti, são conhecidas por alguns dos entrevistados mas não faziam parte do que comiam à época. Paviani (2014, p. 33) relata que, ao menos na sua realidade, a sopa de agnolini não existia: “antigamente não tinha agnolini.”

A forma de comemorar domingos e dias festivos parecia mesmo incluir a carne de gado, como afirma Piazza (2014, p. 319), ao dizer que “no domingo, geralmente havia a carne de gado porque comíamos carne de gado poucas vezes.” Em seus relatos, ele comenta que a carne de vaca, por ser consumida poucas vezes na semana ou mesmo no mês, tornava-se, por isso, mais valorizada como alimento do que os outros produtos cárneos. O comum, acompanhamento da polenta diária, geralmente eram a carne de porco ou galinha. Nunca, ou quase nunca, a bovina, pois para essa “precisava dinheiro e, como havia pouco dinheiro, e para nós era mais fácil termos porcos e galinhas, comíamos carne de galinha ou de porco.” (PIAZZA, 2014, p. 316)

O relato deste consumo da carne de porco, porém, não dá a certeza dessa ser fresca ou em conserva. O próprio Piazza (2014) descreve minuciosamente o aproveitamento integral deste animal, com o qual informa que e como se faziam morcela preta, mortadela, salame, copa, pancetta e a banha, entre outros. Piazza fala que a carne de porco era conservada salgada, pois não existiam refrigeradores à época e o risco dela se deteriorar era grande. Tudo era aproveitado. “Nada se perdia, não.” (p. 323). Gazzi (2005), por sua vez, comenta que, na sua família, a carne de porco era conservada dentro da própria banha, sendo retirada um

91 “Quela lera direto, direto quela, polenta e pan mai mancá nganca quel Grazzie a Dio.” 92 “lera sempre menestra de fasoi.”

pedaço por vez e aquecida ou dentro da mesma ou aferventada em água, o que demonstra a heterogeneidade de saberes encontradas entre os descendentes de imigrantes oriundos de diferentes regiões da Itália.

Neste sentido de intercâmbio, a entrevista de Piazza (2014) serve de bom exemplo, já que o entrevistado relata que, na hora de aproveitar totalmente o porco, enquanto os tiroleses optavam por defumar ossos e carne após a salga, os imigrantes oriundos da zona de Milão não faziam esta segunda etapa, contentando-se apenas em salgá-la. Thompson (1992, p. 171), acerca deste processo de oralidade, salienta que “para que a história oral seja efetivamente representativa, em todos os níveis sociais, justamente não serão os incomumente articulados e claramente reflexivos que devem ser gravados. A essência dela está em transmitir as palavras e os sentimentos de gente comum.”

Os métodos de conservação da carne de gado são citados pelos entrevistados. Piazza (2014) afirma que, em sua família, não sabiam fazer charque, para além de não o apreciarem como alimento. Já Gazzi (2014) comenta que, no passado, havia comido muito charque, pois, além de apreciado, não podia desperdiçar nenhuma parte da carne bovina, a qual só poderia ser conservada se salpresa.

Finalmente, Piazza (2014), ao referir-se a quem prepara a comida, sole dizer que esta era preparada pela sua mãe. Curioso notar, no seu relato, que às mulheres reservavam quase que um “monopólio” no tocante ao abate das galinhas, enquanto os homens eram os responsáveis por matarem os porcos e processar a maior parte da sua carne em salames, copas, entre outros.

A cozinha dos imigrantes, analisada a partir da visão etnográfica, parece ser menos densa e variada do que a representada na perspectiva historiográfica, com uma predileção pelos relatos os quais incluem as carnes. Sabendo do valor desta aos descendentes de imigrantes da Serra Gaúcha, pode-se ligar a sua repetição nos relatos às palavras de Thompson (1992, p. 153): “o processo da memória depende, pois, não só da capacidade de compreensão do indivíduo mas também de seu interesse. Assim, é muito mais provável que uma lembrança seja precisa quando corresponde a um interesse e necessidade social.”