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Gastronomia e regionalidades: perspectiva literária

Por fim, a perspectiva literária traz, ao discurso entre as três instâncias propostas, nas palavras de Chaves (1994), a contribuição de um ponto de vista que “ultrapassa a mera representação da realidade para cumprir uma visão do mundo, original e única.” Para tanto,

foram escolhidas as três obras mais representativas acerca desta visão do mundo do imigrante italiano da Serra Gaúcha: a trilogia de José Clemente Pozenato, composta por A Cocanha, O Quatrilho e A Babilônia. O conjunto das três faz jus ao recorte temporal proposto: enquanto aquela conta a saga dos imigrantes desde a partida na Itália até a chegada e o estabelecimento no território gaúcho, essa se passa com os colonos já consolidados e adaptados às suas novas terras, e esta tem por plano um ambiente majoritariamente urbano. Além disso, o autor é um dos fundadores do projeto ECIRS, justificando a escrita de seus romances “por encontrar na literatura maior liberdade para trabalhar na fronteira comum da história, da antropologia e da psicologia.” (MOCELLIN, 2008, p. 60).

A condição de miserabilidade na qual encontrava-se o imigrante quando ainda em solo italiano é uma forte característica presente principalmente no primeiro romance. A situação dramática na qual viviam os italianos do norte do país é narrada pelas próprias personagens, oriundas da cidade veneta de Roncà, que, movidos tanto pelas condições miseráveis nas quais viviam quanto pelo sonho da cocanha93, empreendem uma necessária “fuga” com destino à América.

E Cósimo continuava martelando, noite adentro: “Aqui não se tem futuro. A jornada de trabalho do homem é mais longa do que aquela criada por Deus. Ele chega aos quarenta não sentindo mais onde está o fio da espinha, e não tem nada para deixar para os filhos. Nem dinheiro nem respeito. Morrer na América não vai ser pior do que morrer aqui, eu digo.” (Pozenato, 2000, p. 19)

As menções à penúria alimentar que enfrentavam na terra natal são frequentes, sobretudo na Cocanha, que representa as fases de partida da Itália e descoberta e consolidação dos imigrantes em solo gaúcho. “Addio, fame. Addio, miséria”94, exclamava um imigrante aleatório, já dentro do navio que o levaria à América (POZENATO, 2000, p. 47). As personagens não se furtam em imaginar como será a “terra prometida”, idealizando um oásis de fartura alimentar.

Imaginavam a quantidade de terras que iam cobrir de trigo, de milho, de cevada, de amoreiras. As vacas produzindo leite, sem nunca faltar queijos empilhados no celeiro, os porcos em quantidade, os salames pendurados na cantina o ano inteiro, as galinhas, gansos e patos. As pipas cheias de vinho. Tudo isso podiam ter na América [...] (POZENATO, 2000, p. 61)

93 Segundo descrição do dicionário Houaiss (Houaiss, Villar, 2001), a cocanha é um país imaginário, citado em documento do século XIII, onde tudo existe em abundância.

Todos ouvem, abismados. De fome não vão morrer, com toda a certeza, no meio dessa fartura. O que mais faltava de onde vieram, sobra aqui. (POZENATO, 2000, p. 116)

A resposta à situação de carestia, nas representações consultadas, dá-se em forma de banquetes, reais ou imaginários, onde o exagero e a fartura parecem dominar o cenário. De fato, como visto anteriormente, onde há carestia, o desejo, via de regra, parece ser o de demonstrar a quantidade. Os momentos de gozo e júbilo são, em diversas ocasiões, representados, nas obras de Pozenato, com fartura de comida. Comportamento a se esperar de uma classe camponesa e operária que emigrara justamente por sentir as agruras da falta de alimento. Em A Cocanha, o narrador descreve quase que de maneira idílica os banquetes realizados, que pareciam marcar os momentos nos quais se suplantava, definitivamente, a condição de miseráveis e marcavam o sucesso da empreitada da imigração.

À noite, o cheiro da passarinhada assada nos espetos, temperada com sálvia e fatias de toucinho, pingando gordura nas fatias douradas de polenta, deixa todos inebriados. No país da cocanha, conta-se, as aves caem já assadas do céu. Estas caem do céu, mas cabe a eles assá-las, sentindo o aroma que entra pelas narinas e invade o corpo até as profundezas da alma. É maior que o da cocanha esse prazer de estarem preparando o banquete com suas próprias mãos, tendo a sensação da fartura sem limites. (POZENATO, 2000, p. 254)

À noite, de vestido novo e fita no cabelo, ela continuava sem fome. O pai não parava de comer polenta e bacalà, nunca o tinha visto comer tanto. “Me sinto no país da cocanha”, ele disse, e seu Tommaso sorria, mandava que enchesse o prato de novo. (POZENATO, 2000, p. 371)

A comida que abunda, alegra, no entanto, parecia não ser a cotidiana mas sim aquela servida em ocasiões especiais. Não há registro, na trilogia, em que a comida que sacia corpo e alma seja a mesma servida no dia-a-dia. Os comeres de festa ou de domingo trazidos pela Trilogia são preparações que frequentemente envolvem ou um dispêndio maior, seja de tempo ou de dinheiro. Passarinhada al mena rosto, sopa de agnolini, pien, risoto temperado com miúdos, assados de galinha e de porco e bacalà, na Cocanha; postas douradas de leitão, taiadele, galinha gorda ao molho e leitão assado, no Quatrilho; galinha ao forno, massa, leitão assado, pombas do mato no molho de ervas e massa ao molho destas, em Babilônia

As condições de dificuldade, porém, são sinais não somente de um confronto enfrentado, sempre que possível, com a abundância de comida, mas também conduzem a preparações nas quais todo o alimento disponível é meticulosamente utilizado. Segundo Capatti e Montanari (2013, pos. 1818), um bom exemplo destas preparações é a conserva, que

representa “a primeira preocupação de um sistema alimentar de sobrevivência, que não se pode permitir o luxo de confiar no mercado cotidiano ou no capricho das estações.”95

Na trilogia, a representação desta cozinha de conserva perpassa as três obras. As marmeladas, úteis para a conservação das frutas da estação, estão sempre presentes, geralmente no café da manhã e, via de regra, às mesas ou de pensões e estabelecimentos comerciais, ou da paróquia, essencialmente em ambiente urbano.

O tipo de conserva mais presente, porém, não é a doce e sim aquela salgada. Queijos, salames, linguiças, toucinho, linguiça e banha eram merendas ou ingredientes constantes, perfazendo, junto a alguns outros alimentos, a base da comida simples e cotidiana representada nos romances. “Dileta põe mais um prato na mesa e logo traz a comida. É de fato um jantar simples. Polenta tostada na chapa do fogão, fortaia de ovos mexidos com queijo e linguiça, salada de radici com vinagre tinto forte, e vinho.” (POZENATO, 2006, p. 174).

A derradeira característica de cozinha pobre representada na trilogia dá-se justamente pela matéria prima utilizada em muitas conservas: o porco. Os momentos de consumo da carne fresca de porco representados nas obras de Pozenato são especialmente festivos ou urbanos. Na pensão de Roco, Ângelo Gardone servia-se de uma comida “farta e apetitosa: sopa de massa com queijo ralado, saladas, carnes de galinha e de porco, polenta tostada, arroz e vinho.” (POZENATO, 1996, p. 118), enquanto padre Giobbe, em diligência rumo à casa de Dona Iolanda, localizada na zona rural, servir-se-ia de um almoço “digno da velha Ilíada. Postas douradas de leitão, fatias de queijo rústico, a travessa de taiadele laboriosamente cortada em tirinhas uniformes, a salada temperada com vinho tinto e toucinho.” (POZENATO 1996, p. 35).

A fome, no entanto, parece passar distante do cotidiano do imigrante italiano representado por Pozenato. Aquele parece transformar, nos romances, sua realidade social através da comida que, se não abunda, ao menos aparenta ser realidade frequente, possibilitando uma nova vivência social. “[Gaetano Padovan] estava gostando da América. Comera tanto nesses dias que estava ficando gordo, como nunca tinha estado na Itália. Estava até criando pança de rico, riu.” (POZENATO, 2000, p. 101).

A fartura do banquete, porém, contrasta com uma aparente frugalidade e monotonia na alimentação cotidiana, da qual a polenta parece ser marca constante e indissociável à imagem do imigrante. Na trilogia de Pozenato, mais que um alimento, a polenta parece representar a

95 “[...] rappresenta, infatti, la prima preocupazione di un sistema alimentare di sopravvivenza, che non può permettersi il lusso di affidarsi al mercado quotidiano o al capriccio delle stagioni.”

essência da experiência alimentar da imigração. De algum modo, este prato liga o imigrante à terra, tanto à sua terra natal quanto, com o advento da urbanização, com a segurança do ambiente rural. É uma espécie de “porto seguro” alimentar. Em A Cocanha, faz-se onipresente, é mastigada à exaustão. Suscita saudosismos, como quando Bépi, ao desembarcar no Rio de Janeiro após um mês de dura viagem de navio e ter que comer a comida brasileira, “reclamava uma polenta” (Pozenato, 2000, p. 74).

No plano ficcional, a polenta de milho também pode ser considerada um marcador do estado de anímico do imigrante: se tudo vai bem, também vai o gosto pela polenta; se algo vai mal, o prato vai pelo mesmo caminho. A Cocanha é a obra que apresenta a maior parte destas dualidades, com o prato sendo alvo de numerosos elogios, seja quando acompanhada de um churrasco de passarinhos ou de um delicioso prato de bacalà, seja consumida por si só, como quando, na passagem em que estabelecem um marco zero para a construção das primeiras casas de Santa Corona, os homens, “ao redor da fogueira [...] conversam e riem, comendo a polenta do Cósimo [e somente polenta], elogiada por todos.” (POZENATO, 2000, p. 135) Da mesma maneira, aos poucos a polenta torna-se prato cotidiano e volta a ser parte da monotonia diária, dando testemunho da dura jornada à qual os imigrantes estão sujeitos, elemento a ser superado. N’O Quatrilho, Ângelo Gardone recorda-se dos tempos piores da adaptação e agradece que “o tempo pior da miséria tinha passado, quando só tinham polenta para comer, de manhã, ao meio-dia e de noite [...]” (POZENATO, 1996, p. 26). “Muda a farinha, mas a polenta é sempre a mesma”96, reza um dos ditos populares coletados por Gratton e Longo (2012, p. 66).

À medida em que a narrativa avança para o último volume, A Babilônia, esta já desenrolando-se em um ambiente mais urbano, a polenta perde importância como alimento preferencial. Massas, carnes e pães dão o tom da alimentação cotidiana, e a polenta resta relegada a uma quase única mas não menos importante citação: quando Máximo Gardone convida a jovem Rosa para um jantar especial, escolhe uma representação citadina do ambiente rural:

O lugar anunciado era um porão de pedra, com uma única mesa, já preparada, entre pipas de vinho. Não era um restaurante. Era um lugar especial para um jantar especial. Um jantar de pombas do mato no molho de ervas, polenta mole com queijo, massa com o molho das pombas. (POZENATO, 2006, p. 267)

No ambiente urbano do romance, a polenta parece iniciar seu ciclo de ressignificação, tornando-se memória de um ambiente e passado rural que merecem ser lembrados, mas que não mais precisam ser vividos.

As sopas, no entanto, têm papel limitado. Em uma única passagem de A Cocanha, Giulieta remói a fastidiosa rotina de esperar seu marido chegar ao final o dia. Quando esse chega, em relato pontuado por gestos mecânicos e até mesmo desinteressados, cansados, o que o aguarda à mesa é uma sopa de feijão. (POZENATO, 2000).

Se a polenta não foi sempre positividade, o mesmo não se pode dizer das carnes. Estas parecem ser, nos romances, um dos elementos principais na reterritorialização do imigrante, representando o sucesso ante o meio e parcialmente garantindo a conquista da cocanha por parte dos colonos.

Em A Cocanha, a caça é quem primeiro vai sustentar este desejo. O velho Nicola, ancião que auxilia os recém-emigrados a ambientarem-se aos desafios das matas gaúchas, explica como proceder para capturar animais até então desconhecidos pelos italianos, como o porco-do-mato, a paca e a capivara através de conhecimentos obtidos por ele junto aos indígenas que habitavam o local. Ao que Bépi questiona se são bons para comer, Cósimo o repreende, dizendo que este só pensa em comer. A resposta, dada pelo narrador, resume o desejo comum: “Bépi retruca que na Itália só comia carne na morte do bispo, e que veio para a América para comer carne. Os outros riem, é o que também querem.” (POZENATO, 2000, p. 115).

Quanto à carne de gado, a trilogia também dedica pouquíssimas citações. Estas estão relegadas, quando surgem, a um complemento indigesto da já não-bem aceita comida brasileira servida em alguns estabelecimentos do ambiente urbano. Esse complemento, possivelmente, seja o charque ou a carne-seca, já que apresenta-se com um “cheiro de coisa podre” (Pozenato, 2000, p. 74) em uma das passagens na qual aparece. Ainda que aconteça uma admiração, nos romances, do colono para com o habitante local, como quando os colonos, n’A Cocanha, partem para conhecer as terras do “Conde” Feijó, na verdade um grande proprietário de terras que se apresentara como um “simples brasileiro”, o costume do churrasco e do consumo de charque ausentam-se das representações.

O plano religioso exerceu suas influências sobre a comida dos imigrantes, principalmente na observância de jejuns e períodos de magro e gordo, mas, no romance, parece ser, acima de tudo, um importante fator de coesão do grupo. Acerca disso, José Bernardino, o funcionário da Comissão de Terras da Cocanha, parece ter o mesmo parecer:

Aliás, tenho a impressão de que a missa de domingo é menos uma devoção do que uma oportunidade de vida social e, mesmo, de diversão. Os comerciantes ao redor da praça preparam carnes assadas e põem à venda vinho, cerveja, gasosa, laranjas e até bananas, vendidas a um preço dez vezes maior do que na capital. (POZENATO, 2000, p. 198)

Essa coesão motivada pela Igreja parece ser bastante importante na transmissão de saberes e técnicas entre os participantes da comunidade, pois a missa aos domingos e as festas religiosas eram ponto de encontro de famílias de diferentes zonas e também origens distintas, e o conhecimento era transmitido quase que exclusivamente de forma oral.

Acerca da oralidade, em nenhum momento de suas três obras Pozenato toca em algum tipo de receita ou receituário conservado ou transmitido pelas mulheres. Porém, Rosa, em A Cocanha, fornece indícios da prática quando, ao achar na nova terra uma verdura que lhe parecia familiar, pensa em prepará-la “cozida e temperada com alho, como aprendera com a mãe.” (Pozenato, 2000, p. 155)

Na trilogia, o homem parecia valorizar mais os trabalhos que eram de sua direta responsabilidade, sendo estes os da terra nos dois primeiros volumes e o trabalho industrial e comercial em A Babilônia. Em Quatrilho, Ângelo Gardone via-se sobre todo o peso do mundo por ter de “resolver tudo, dar um jeito em dinheiro para tudo” (POZENATO, 1996, p. 68). A mesma obra mostra, em diversas passagens, uma Pierina absorta em tarefas domésticas, as quais incluíam a preparação de alimentos, que mais pareciam alegrá-la do que ser motivo de estafa, porém sem nunca reclamar. A divisão de tarefas é clara: às mulheres, ao menos no plano ficcional, parecia estar depositado todo e qualquer trabalho inerente à cozinha. Ademais, não opinariam sobre negócios, pois, como Pierina coloca, “isso são coisas para os homens resolverem.” (Pozenato, 1996, p. 196)

E qual a relação do imigrante italiano quando depara-se com a comida dos brasileiros? Ao menos no plano ficcional, ela parece não misturar-se na mesma panela, tanto quanto Cascudo (2011) colocou, em sua obra, afirmação semelhante. São diversas, na trilogia, as passagens que marcam um incômodo dos imigrantes frente à merenda não habitual. Desde o início da Cocanha, quando a maior preocupação das personagens parece ser não com o que comer, mas sim com o simples fato de ter o que comer, a ementa brasileira não lhes cai bem. Ao desembarcarem no Rio de Janeiro, após trinta dias de viagem de navio em condições não tão salubres, a comida oferecida não apetece: “Só a comida estranha, um feijão preto como carvão, misturado com alguma espécie de farinha, a carne com cheiro forte [charque, possivelmente], de coisa podre, é que não agradou muito.” (POZENATO, 2000, p. 74) Feijão cozido ensopado, servido com carne e arroz, parecia um prato presente exclusivamente no

ambiente urbano antes que no rural. Ainda na Cocanha, Cósimo reclama por uma fortaia com linguiça quando o dono da casa de pasto informa que o prato do dia era arroz, feijão e carne. O mesmo prato se repete no Quatrilho, quando Ângelo Gardone, vivendo na cidade, na pousada de Roco, sente nojo da comida que lhe é oferecida. Queria uma polenta. Nos registros consultados, ausentam-se estas três preparações, o feijão ensopado, o arroz branco cozido e o charque, e ainda a farinha. Não aparecem reunidos em refeição uma única vez na mesa do imigrante. O que não é o mesmo que dizer que não os comiam.

No plano ficcional, é importante notar que o feijão faz parte do ambiente urbano das narrativas. Esta parece ser uma boa pista da rejeição, por parte dos colonos representados na Trilogia, à combinação feijão e farinha. José Bernardino, o letrado funcionário da Comissão de Terras de A Cocanha, descreve o imigrante como extremamente desconfiando em relação ao urbano, comparando-os a “gatos escaldados que temem a água fria.” (POZENATO, 2000, p. 198) O relato prossegue com as percepções dos “patrícios” brasileiros acerca dos imigrantes, os quais, senão deles desgostam, mantém ante aos mesmos uma “atitude de superioridade mal-disfarçada”.

Ainda que o ambiente urbano não traga grandes alterações, no plano ficcional, ao cardápio do imigrante, é nele que a sua vida parece tornar-se mais “fácil” do ponto de vista alimentar e seus costumes, mais próximos daqueles dos “brasileiros”. Em Babilônia, é nítido que as comidas costumeiramente representadas como sendo de festa começam a fazer parte de um menu mais corriqueiro. Não se pode esquecer também que este volume avança um pouco no tempo em relação aos outros, possibilitando imaginar também uma melhora nas condições materiais e tecnológicas.

A aproximação aos costumes dos “patrícios”, porém, parece acontecer por meio de uma dupla desconfiança, tanto dos imigrantes quanto dos brasileiros. Em Babilônia, à época da preocupação com a guerra e o interdito, aos descendentes, de se comunicarem em língua italiana, o Tenente Seleuco, militar brasileiro, observa o dono do hotel servir o jantar composto de pratos costumeiros na ementa dos imigrantes: carne ao molho, carne assada, macarrão, polenta mole com queijo derretido, saladas. Ao que questiona: “Não tem comida brasileira?” (POZENATO, 2006, p. 308).

Personagens fictícias amarradas pelas linhas da história, a cozinha de imigração representada na ficção parece, pois, encontrar contraponto mais forte de uma intromissão brasileira, ainda que mantenha as características gerais encontradas nos outros dois planos analisados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho teve por objetivo analisar os elementos da construção de uma cozinha característica dos imigrantes italianos da região da Serra Gaúcha procurando compreender, a partir do estudo das relações entre comida, cultura e identidade e da construção das identidades alimentares italiana e brasileira à mesa, como estes elementos da gastronomia articulam-se com outras representações culturais tipicamente utilizadas na formação da descrição da região em questão.

A partir daí, foram analisados três tipos de fontes documentais que contribuiriam na formação de um quadro amplo de representação das regionalidades caracterizantes do imigrante italiano da região da Serra Gaúcha: entrevistas com moradores da região, descendentes de imigrantes italianos, nascidos o mais próximo possível ao início do século passado; autores dedicados ao estudo da história da imigração e também o aporte ficcional, dado pelas três obras de José Clemente Pozenato sobre a imigração italiana a esta região: A Cocanha, O Quatrilho e A Babilônia. O diálogo foi proposto entre as três instâncias de maneira a estabelecer um quadro mais completo da formação das regionalidades em questão. Pozenato (2003, p. 151) coloca que “a existência de uma rede de relações de tipo regional num determinado espaço ou acontecimento não os reduz a espaços ou acontecimento puramente regionais”, o que possibilita a defesa da construção de um corpus com estas características.

Ao se analisar a construção das identidades italiana e brasileira à mesa, foi possível observar como estas identidades nacionais são construídas a partir de um projeto político- ideológico contextualizado. Antes de representar realidades “naturalizantes”, fica claro que também as cozinhas nacionais e regionais são construtos historicamente específicos (Woodward, 2002), representando não exatamente gostos e técnicas como são, mas como determinada conformação indica que tenham de ser naquele momento e para aquele grupo. Exercendo um poder estruturante e sendo estruturado, categorizado, as identidades alimentares podem ser compreendidas como sistemas simbólicos, de acordo com Bourdieu