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CAPITULO III A GENEALOGIA DOS DISCURSOS PROIBICIONISTA: UM IMBRIAMENTO DOS DISCURSOS DE PODER MÉDICO E JURÍDICO

3.4 Da genealogia à luta antiproibicionista

Logo, faz-se necessário que repensemos o atual modelo de gestão de políticas públicas de entorpecentes, de modo a evitar os males advindos do proibicionismo que tanto contribui para a inefetividade dos direitos humanos conforme exposto ao longo deste capítulo. Assim, tendo em vista a necessidade de mudança de paradigmas, começasse o estudo da perspectiva inversa, tentando descobrir soluções inclusivas para a problemática dos direitos humanos em relação às drogas.

Observa-se aquilo que Foucault chamou insurreição dos saberes sujeitados, que vão ser os discursos e saberes marginalizados pela dimensão totalizadora do discurso proibicionista tradicional. Neste patamar, observamos os discursos que se insubordinam contra o discurso proibicionista, construindo novas verdades que embasarão novas atitudes, perspectivas e talvez novas políticas.

Surgem os discursos daqueles que foram marginalizados pelo proibicionismo, o discurso dos usuários, dos pacientes que fazem uso medicinal, de fieis impedidos do uso ritualístico, daqueles diretamente afetados pelas práticas proibicionistas, que, estigmatizados pelos estereótipos da delinqüência e do vício, lutam para tentar afasta tais estigmas, que para muitos funcionam como sinais da morte nesta política genocida de guerra às drogas, e para fazer ouvir seu discurso e através dele contribuir para a formação

das políticas públicas as quais estarão sujeitos, assumindo assim um seu papel de protagonismo na construção destas políticas, pressuposto de efetividade da cidadania.

Também emergem outros discursos insurgentes advindos também de profissionais e pesquisadores, que também se insurgem contra proibicionismo, neste sentido o discurso marginal nas ciências que se opõe ao hegemônico discurso proibicionista acaba ganhando espaço neste contexto. Assim, o discurso do médico, que se opõe ao discurso oficial da medicina, recomendando o uso medicinal de algumas substâncias proscritas, desmistificando os efeitos das várias substâncias, tidas como ilegais, e dos estados alterados de consciência. Nas ciências sociais, em especial na antropologia, surgem os discursos que enfatiza a relação pré-histórica entre o homem e as drogas. Nos meios jurídicos surgem discursos que denunciam as funções reais do sistema penal, que entra em dissonância com as declaradas, como a criminologia crítica41, contribuindo como ferramenta teórica para a gradual deslegitimação do proibicionismo como política pública de drogas.

Estes discursos críticos do sistema penal como única solução possível de regulação da questão social envolvendo as drogas baseada no estatuto médico-jurídico, são manifestações discursivas que estão ganhando força e acabam criando novas formas de exercício de poder, na sua busca pela ruptura discursiva e, conforme vão adentrando na práxis42, irão remodelando o poder e impondo sua forma de atuação no vazio humanitário deixado pela lógica proibicionista. Por ganharem espaço no terreno em que os discursos hegemônicos, baseados no paradigma proibicionista, se mostram desacreditados, criam alternativas para gerir a crise de marginalização dos direitos humanos gerados pelas práticas proibicionistas. Assim, surgem como soluções a este processo e alternativa a esta crise. A ascensão destes discursos e a gradual redefinição das práticas de poder por estes novos valores servem como contraponto as violações dos direitos humanos advindos da

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“De uma perspectiva criminológica crítica tem sido ampla e cumulativamente demonstrado em abundantes e qualificados fóruns e literatura que a criminalização das drogas, ditada pela política criminal norte- americana e globalizada,acriticamente adotada na América latina e no Brasil, tem sido um dos núcleos mais dramáticos do encarceramento e genocídio masculino e feminino no controle penal da globalização”(ANDRADE, 2012 p.371).

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“Como alternativa para dirimir os efeitos perversos desta disfunção provocada pelo sistema penal, a crítica criminológica, convertendo-se em políticas criminais alternativas, procurou desenvolver programas concretos de ação (criminologia da práxis) visando a minimização da incidência do poder punitivo. O projeto de descriminalização aparece portanto, como alternativa viável, como tema consensual entre as mais diversas correntes críticas (minimalistas, garantistas, abolicionistas, realistas marginais)” (CARVALHO. op. cit.p. 452).

guerra às drogas. Neste ponto, faz-se importante o estudo dos mesmos, para se analisar os possíveis avanços que tais discursos trazem para a prática em direitos humanos quanto à questão de drogas.

A pretensão que se tem neste trabalho é justamente explorar esta questão, utilizando o método da pesquisa genealógica, herdado de Michel Foucault.A partir desta perspectiva metodológica periférica criticamos também a concepção de saber e de ciência, pautados no plano abstrato, como incapaz de uma leitura condizente com a realidade, pois ao por seus olhos no plano ideal do abstencionismo, esquece todas as peculiaridades práticas que advêm de tais concepções. Além de esconder sobre si o peso da pretensão moral de se tornar única e total, excluindo do plano do possível, soluções a ela alternativas, assim esta visão é um ponto de partida para a crítica que realizamos.

Compartilhamos da idéia de que o discurso jurídico-penal padece desse mal, esta pretensão de verdade, que irá fazer com que o mesmo se volte sempre para si mesmo, para seus parâmetros e sua imagem e vá, gradualmente, esquecendo de tentar dialogar suas formulas com a prática. No âmbito do Direito Penal fica clara tal característica frente a sua constante tendência à máximização, a vontade de verdade deste, de suas ciências auxiliares e dos saberes médicos que referendam o proibicionismo, se converteu em técnica de ampliação dos horizontes punitivos, que visando à erradicação da criminalidade e dos vícios da sociedade, surtiu péssimas conseqüências para os direitos humanos, serviu de fundamento discursivo para tal aumento de punitividade e a marginalização do direito à vida e a saúde pública.

O discurso sobre drogas bebe bastante deste pretensão meta-discursiva característica da modernidade, excluindo outras realidades possíveis, e, através da imposição de um discurso total, capaz de calar outras práticas discursivas através de sistemas de controle discursivos internos e externos ao mesmo (FOUCAULT, 2013), o discurso proibicionista firmou seu regime de verdade, e movimentou toda uma tecnologia de poder que o tornou hegemônico.

O discurso oficial é de que, a saga discursiva e prática do proibicionismo se deu para, entre outros objetivos, a proteção da saúde dos usuários e da sociedade em geral, entretanto, através do resgate genealógico o presente estudo ao buscar novas possibilidades

ao discurso proibicionista, tenta confrontar o modelo discursivo reinante (proibicionista), cujas finalidades declara a proteção aos direitos humanos, com a realidade trágica da vida fora dos discursos, no âmbito do exercício efetivo do poder que este discurso esconde e legitima (o exercício genocida do direito penal)43, a pretensão autoritária de controle de hábitos pessoais que não atingem terceiros e dificuldade no acesso aos direitos à saúde e a vida.

Trabalhamos com a hipótese de que: ao se distanciar o discurso sobre a política de drogas da realidade e da constante reavaliação de seus resultados na prática de tal poder, ocorrendo quase uma dogmatização discursiva do modelo repressivo fundamentado no estatuto discursivo médico-jurídico. Formou-se, assim, uma rede de violações de direitos humanos, que escondido sobre os mantos do discurso oficial de defesa da saúde pública, conseguiu causar, de longe, mais danos do que a droga que visava combater.

Como foi possível perceber ao logo da exposição, a eleição do uso de do comércio de drogas e de seus sujeitos como inimigos da sociedade tem reduzido toda discussão sobre o problema ao âmbito penal, impossibilitando a busca de soluções menos danosas e efetivas alternativas a criminalização, em face da demonstração da absoluta incapacidade resolutiva do sistema penal. Pelo contrário, o proibicionismo apenas potencializou os efeitos colaterais à criminalização: a promessa de contra motivação do crime fomentou a criminalização secundária; ao reprimir o consumo estigmatizou o usuário; e com o intuito de eliminar o tráfico deflagrou a criminalização de setores vulneráveis da população. A manutenção da ilegalidade da droga produziu sérios problemas sanitários e econômicos; favoreceu o aumento da corrupção dos agentes do poder repressivo; estabeleceu regimes autoritários de penas aos consumidores e pequenos comerciante e restringiu programas médicos e sociais de prevenção (CARVALHO, 2013 p.277).

Deste modo, numa pretensão de defesa abstrata da saúde pública, desenvolveu-se uma prática que banha de sangue a realidade do dia a dia de usuários, traficantes, população de áreas de conflitos, policiais e todos aqueles envolvidos, direta ou indiretamente, com o tráfico e sua repressão. Tal discurso conseguiu, nesta pretensão defensivista e moralizadora, práticas muito desconexas com seus objetivos.

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“A absoluta ausência de percepção dos limites da moderna ciência (criminal) produziu a interferência inábil de atores(juristas) em fenômenos trágicos permeados pela violência(individual e institucional). Crentes em seu potencial resolutivo, não esporadicamente a intervenção(castigo) provocou danos maiores à humanidade dos que a soma dos crimes cometidos, encenando espetáculo cujo melancólico final(dramático) produziu profundo mal estar” ( CARVALHO, 2013 p.47).

Os discursos anteriormente problematizados são considerados, atualmente, como marginais, calados pelo proibicionismo, marginalizados pelo saber hegemônico com suas técnicas de controle discursivo, que sistematizando e hierarquizando saberes os desqualifica, relegando-os ao plano de discursos não científicos, a meras opiniões, que irão se opor aos fatos “comprovados” pelos discursos dos portadores da “verdade cientifica”, o discurso “vencedor” no século XX, o discurso hegemônico: o proibicionismo.

Nesta reviravolta dos saberes sujeitados (FOUCAULT, 1999), faz-se necessário a construção de canais de forma a dar voz aos silenciados, voz capaz de se propagar, negando as pretensas teses do discurso proibicionista, desmentindo mitos sobre substâncias, fazendo falar aqueles a quem tal política é destinada com a volta a cena dos atores silenciados. Assim, é necessária a construção de ferramentas para a promoção desta ruptura.

O processo de inversão ideológica deflagrado pelo discurso proibicionista, de pretensa defesa da sociedade, enquanto serve de fonte de violação de direitos, sacrificando os direitos concretos de liberdade, integridade física e vida de uns pela proteção da abstrata da ordem e da saúde pública, faz com que seja necessário pensar pontos alternativos, rupturas, guerras pontuais para reaproximar o discurso oficial e jurídico dos direitos humanos em questão de drogas das práticas capazes de criar contraponto e minimizar os efeitos danosos destes, fugindo do entorpecimento teórico do proibicionismo.

Assim, como a derrocada da arte grega adveio, segundo Nietzsche, da separação radical dos instintos antagônicos e complementares, apolíneo e dionisíaco, dramático e trágico, também a inversão ideológica advêm do grande descompasso advindo do discurso que prega o fim oficial desta cruzada antidrogas e das suas reais manifestações. O objetivo deste trabalho reside, portanto, em, após a desconstrução dos mitos do proibicionismo presente no discurso jurídico-penal, resgatar as vozes destes atores marginalizados e assujeitados, de forma a dar as ferramentas para que os mesmos possam construir novas práticas novas formas de exercício de poder que possam evitar os males e minimizar os efeitos das práticas advindas do discurso oficial sobre drogas.

Nesta linha, no próximo capítulo abordaremos as rupturas a lógica proibicionista, em termos discursivos analisaremos o discurso jurídico sobre a Marcha da Maconha e a sua afirmação como movimento social frente à tentativa de criminalização, como forma de

interdito discursivo, que a Marcha sofreu pelo discurso proibicionista. Por ser um marco de afirmação discursiva e trabalhando com a emergência dos discursos a partir de então, focando na cannabis, olharemos para outra importante ruptura a lógica proibicionista, qual seja, a afirmação do direito ao uso medicinal do canabidiol e do THC medicinal, tendo como objeto a atuação da Procuradoria do Cidadão vinculado ao Ministério Público Federal da Paraíba, na defesa dos direitos dos usuários medicinais no Estado, estudo este que realizaremos no terceiro capitulo.

Também, justifica-se pela relevância do estudo de casos concretos de afirmação de direitos humanos, para longe de meros dados estatísticos e retórica humanista acadêmica, trataremos da história de vida e de luta de usuários e de seus familiares para a efetivação do direito ao uso através das batalhas jurídicas até a efetivação através dos provimentos judiciais que ajudaram a efetivação do direito à saúde, sendo também um marco importante no debate sobre maconha medicinal e servindo de influência para as mudanças na postura do Estado brasileiro que se seguiriam no âmbito da ANVISA sobre os derivados de maconha, em especial o CBD e THC, que seriam reclassificados, de substância proscrita, para substância de uso controlado. Contrapõe-se, assim, o discurso do Direito Penal de defesa da saúde pública – entendida como ente jurídico genérico, abstrato e de difícil identificação e mensuração, ou seja, como mera categoria retórica jurídica, sem elo de ligação com a realidade fática – que fundamenta práticas de criminalização da pobreza e marginalização de usuários, extermínio de traficantes, policiais e moradores de regiões de conflito, ao discurso da defesa da saúde dos usuários medicinais, discurso marginalizado e de difícil aceitação, cujo direito só foi efetivado na prática como resultado de embates judiciais e enfrentamentos ao aparato jurídico do Estado, ao preconceito da sociedade e ao discurso hegemônico proibicionista que demoniza a maconha inclusive para fins medicinais.

CAPITULO IVPERSPECTIVA CONTRA DISCURSIVAS E AS NOVAS