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CAPITULO III A GENEALOGIA DOS DISCURSOS PROIBICIONISTA: UM IMBRIAMENTO DOS DISCURSOS DE PODER MÉDICO E JURÍDICO

3.1 Possibilidades discursivas para a análise da questão das drogas

Está claro, como observa o historiador Antonio Escohotado (1992), que a psique humana é bastante influenciado por elementos externos a ela e que tais influencias refletem em nossas funções corporais. Seguindo o pensamento esboçado pelo referido autor em momentos de tragédia, de dor e de grande perda, por exemplo, manter as atividades habituais, como se alimentar e dormir podem ser algo muito difícil, demonstrando a influência do espírito sobre o corpo.

E em poder afetar os ânimos mesmo reside a essência dos fármacos: propiciando momentaneamente a serenidade, a energia e a percepção permitem reduzir do mesmo modo a aflição, a apatia, a rotina psíquica. Isto explica que desde a

origem dos tempos se consideram um dom divino de natureza essencialmente mágica. (ESCOHOTADO, 1992 p.12)(tradução nossa)29

Os discursos modernos sobre drogas, e sob maconha especificamente, estruturados ao longo do século XX, concebem as drogas de forma totalmente diversa do que em outros momentos históricos. Do plano do sagrado, como em algumas culturas antigas, passando pelas referências como especiarias, chegamos ao discurso proibicionista influenciado pela era do biopoder. Tal discurso encara as drogas como uma forma de pecado, falta moral, a degeneração da lucidez e o adoecimento do corpo. Os códigos dos mais diversos países tipificam esta conduta como delito, em um consenso internacional caracterizado por três principais tratados: a Convenção Única de 1961, a Convenção de Drogas Psicotrópicas de 1971 e a Convenção contra o Tráfico Ilícito de Drogas 1988 (BOITEUX, 2015). Logo, como afirmou Escohotado:

Quem desrespeita esta regra, seja um grupo seja um individuo isolado, se inclui no grupo de enfermos mentais, e como enfermo mental - assim como pecador e criminoso- vêm sendo tratados os usuários de drogas há algumas décadas. (ESCOHOTADO, 1992 p.13) (tradução nossa)30

Esta noção de drogas, fundamento da cruzada proibicionista contra o uso e o tráfico de entorpecentes, é diametralmente oposta à lógica utilizada por outras culturas na lida com a questão das drogas. Historicamente, os gregos utilizavam a expressão “pharmakon” para lidar com tais substâncias, que simbolizaria tanto remédio quanto veneno. Assim, tanto o veneno como o remédio seriam duas faces de uma mesma substâncias, não havendo nas próprias drogas uma qualidade essencialmente boa e outra essencialmente ruim, tal distinção se faria no momento do consumo. A fronteira que separa o remédio do veneno não esta na droga em si, e sim em seu uso, sua forma de uso, o momento em que se dá este uso e etc.

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“Y en poder afectar los ánimos mismos reside lo esencial de los fármacos: propiciando momentáneamente la serenidad, la energía e la percepción permiten reducir del mismo modo la aflicción , la apatía e la rutina psíquica. Esto explica que desde el origen de los tiempos se hayan considerado un don divino, de natureza fundamentalmente mágica”.

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“Quem vulnera la dita regla, sea grupo o sujeto singular, se auto incluye en el bando de los enfermos mentales, y como enfermo mental - además de pecador e delincuente- viene siendo tratado el usuário de drogas desde hace algunas décadas”

Hoje a divisão proibicionista das drogas é entre drogas lícitas e ilícitas, que exclui a ambivalência, antes existente, instaurando uma dicotomia.

O fenômeno do consumo contemporâneo de drogas distingue-se das formas de consumo e regulamentação que existiram em outras épocas. O século XX foi o momento em que esse consumo alcançou a sua maior extensão mercantil, por um lado, e o maior proibicionismo oficial por outro. Embora sempre tenham existido, em todas as sociedades, mecanismos de regulamentação social do consumo das drogas, até o início do século XX não existia o proibicionismo legal e institucional internacional (CARNEIRO, 2002 p.1-2).

Desta forma toda a cruzada farmacológica carece de análise sobre os componentes químicos, o uso, o ambiente em que as drogas costumam ser usadas e etc. A proibição se dá, neste sentido, menos pelas qualidades das drogas e de seus usos, e mais por um critério jurídico de divisão abstrata entre licitude e ilicitude fundamentada em necessidades políticas e morais, que não guardam qualquer racionalidade com os saberes de outras áreas do conhecimento.

De alguma forma todos somos viciados. Tudo pode viciar: coca-cola ou cocaína, álcool ou cafeína, aspirina ou dimetriltriptamina. Todos somos drogados. Mas existe, entretanto, uma dicotomia ideológica básica entre droga e fármaco (Basaglia, 1994) a primeira vista como veneno e a segunda como remédio, que fundamenta a definição de drogas lícitas ou ilícitas. O divisor de água, a matriz constituidora de todos os problemas decorrentes do uso de drogas ilícitas é o sistema de proibição (CARNEIRO, 2005 p.20-21).

Neste sentido, e tentando se opor a atual concepção moralista, enraizada no discurso jurídico proibicionista, de separação entre drogas lícitas e ilícitas, que fundamenta à guerra contra estas últimas, tentaremos uma opção que busque resgatar as potencialidades das drogas, tidas como ilícitas, de forma a quebrar a lógica da divisão arbitrária conforme o paradigma vigente. Assim, tentamos pensar como Vargas, ao citar Paracelso, que se aproxima bastante da ambivalência experimentada pelos Gregos sobre o que é um “pharmakon”:

Já quanto às “drogas”, estas notas exploram a lição do Dr. Paracelso: dosis sola facit venenum. Tal exploração propõe que as drogas sejam consideradas como uma categoria complexa e polissêmica que recobre e reúne, por vezes de modo marcadamente ambíguo, como também isola e separa, tantas vezes de modo instável, matérias moleculares as mais variadas. Ela também propõe que essas matérias moleculares constituem objetos sócio-técnicos que, embora sempre possam ser distinguidos conforme as modalidades de uso (matar, tratar, alimentar, por exemplo), não comportam diferenças intrínsecas absolutas ou essenciais, mas sempre e somente diferenças relacionais. Pois sucede às drogas (e

aos medicamentos e alimentos) o mesmo que às armas (e às ferramentas): tais objetos sócio-técnicos permanecem integralmente indeterminados até que sejam reportados aos agenciamentos que os constituem enquanto tais (Deleuze; Guattari, 1997, p. 72) Desta perspectiva, as drogas não dizem respeito apenas àquelas substâncias que produzem algum tipo de alteração psíquica ou corporal e cujo uso, em sociedades como a nossa, é objeto de controle ou de repressão por parte do Estado, mas também àquelas que Mintz (1986) chamara de “alimentos- droga” – como o açúcar, o café, o chá e o chocolate, por exemplo – bem como àquelas que correntemente nomeamos medicamentos ou fármacos. Esta perspectiva se contrapõe àquela outra, mais restritiva e assimétrica, além de historicamente posterior, que toma como dada ou estabilizada a partilha moral (médico-legal) entre usos lícitos e ilícitos de drogas, ou entre drogas (ou tóxicos, ou entorpecentes, ou venenos...) e medicamentos, alimentos, condimentos, cosméticos, etc. Ainda que essa partilha seja operativa entre leigos e doutos, usuários e analistas, propõe-se mostrar aqui que ela não é auto-evidente, mas o efeito alterado do encontro/passagem de ondas de mobilização sócio-técnica cujos rastros as notas deste trabalho se propõem registrar (VARGAS, 2008 p. 41)

Ainda sobre a problemática do discurso monofocal e esteriotipante, que envolve a análise do problema das drogas na modernidade, observamos que a visão dos órgãos oficiais parece ser unânime ao se filiar a esta visão simplista e reducionista, cuja abordagem se restringe a englobar todas as drogas ilícitas como perigosas, como se não houvesse distinção entre as mesmas e faz com que a lógica repressiva mostre-se a única possível.

Uma sugestão, para repensar a questão das drogas, é abordá-la a partir de outros ângulos. A tendência comum no discurso oficial em torno do consumo de substâncias psicotrópicas é enfatizar o termo genérico “droga”, sem que se faça uma distinção cuidadosa entre substâncias diversas, seus efeitos variados sobre a psique humana e os contextos específicos nos quais ocorre seu uso (MACREA, 2000 p.29).

Assim, entre a pluralidade discursiva sobre o consumo de drogas, o proibicionismo escolhe uma delas: a moralista, que constitui-se como fundamental para estabelecer um interdito e o gral de assujeitamento necessário do corpo social desta nova tecnologia social. Aliado ao moralismo os interditos possuem como aliado o discurso hegemônico científico, mas que em virtude das transformações da estrutura de poder que sustenta tal discurso, já apresenta fissuras a lógica proibitiva refletindo não só as suas contradições intra- discursivas, como também a lógica de militarizada e excludente que sustenta este regime de verdade.

3.2 Reflexões sobre o consumo de drogas: o discurso desconstrutor nas ciências