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CAPÍTULO I – PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

1.3 GEOGRAFIA CULTURAL: PAISAGENS RELIGIOSAS

A geografia cultural, pós 1970, apresenta inúmeras pesquisas que discutem a interpretação da identidade no lugar e do lugar, ou seja, a preocupação “com a identidade cultural, com o conceito de lugar e o simbolismo de coisas e objetos na paisagem” enfatizando aspectos materiais e imateriais da cultura. (ROSENDAHL, 2012, pp. 29-31).

De acordo com Claval (1999), os trabalhos de geografia cultural privilegiam a paisagem como objeto de interpretação, pois esta “carrega a marca da cultura e serve-lhe de matriz.” (CLAVAL, 1999, p. 14).

A paisagem traz a marca da atividade produtiva dos homens e de seus esforços para habitar o mundo, adaptando-o as suas necessidades. Ela é marcada pelas técnicas materiais que a sociedade domina e moldada para responder as convicções religiosas, as paixões ideológicas ou aos gostos estéticos dos grupos. Ela constitui desta maneira um documento chave para compreender as culturas, o único que subsiste frequentemente para as sociedades do passado. (CLAVAL, 1999, p. 14).

O autor assinala que os geógrafos preocupados com as realidades culturais dedicam crescente atenção aos fatos religiosos abordados a partir de signos impressos na paisagem, tal

como apontamentos propostos pela obra de Pierre Deffontaines (1948) Géographie et Religion. “A religião influencia, enfim, os ritmos de vida de todos pelos calendários e as festas que institui. Ela cria para os sacerdotes e religiosos, gêneros de vida específicos.” (CLAVAL, 1999, p. 45).

Claval (1999) destaca a importância de Yi-Fu Tuan na Geografia Cultural, a partir de 1976, pois este elabora uma proposta diferenciada de abordagem humanista, de modo a ampliar o foco de questões até então ignoradas pela cultura ocidental. Propostas que insistiam em discussões aprofundadas das realidades culturais, ou seja, sobre “o sentido dos lugares, sobre a importância do vivido, sobre o peso das representações religiosas”, com intuito do conhecimento acerca da “lógica profunda das ideias, das ideologias ou das religiões para ver como elas modelam a experiência que as pessoas têm no mundo e como influem sobre sua ação.” (CLAVAL, 1999, p. 53).

Como nos revela Claval (1999), em Dardel (1952), existe o questionamento constante por parte dos homens sobre as razões de sua presença na Terra, e a partir daí “sentem a necessidade de dar sentido à sua existência e no mundo ao qual vivem.” (CLAVAL, 1999, p. 53). “Pela primeira vez, o sentimento religioso, os mitos, a dimensão imanente ou transcendente de alhures, de onde a vida é julgada, tornaram-se aspectos centrais da análise geográfica” (CLAVAL, 2011, p. 157).

Nessa perspectiva, a paisagem descrita por Dardel (2015) vai muito além do olhar e de uma justaposição de detalhes pitorescos, de modo a circunscrever “a inserção do homem no mundo, lugar de um combate pela vida, manifestação de seu ser com os outros, base de seu ser social.” (DARDEL, 2015, p. 32).

A paisagem é um conjunto, uma convergência, um momento vivido, uma ligação interna, uma impressão que une todos os elementos. [...] A paisagem se unifica em torno de uma tonalidade afetiva dominante, perfeitamente válida, ainda que refratária a toda redução puramente científica. Ela coloca em questão a totalidade do ser humano, suas ligações existenciais com a terra, ou se preferimos, sua geograficidade original: a terra como lugar, base e meio de sua realização. Presença atraente ou estranha, e, no entanto, lúcida. Limpidez de uma relação que afeta a carne e sangue. (DARDEL, 2015, p. 31).

Segundo Holzer (2016), Dardel propõe-nos através da definição de Geograficidade “uma atitude que alia ao rigor da ciência a observação pessoal e poética” no encontro do homem com a terra natal, do homem como modo de sua existência e de seu destino. (HOLZER, 2016, p. 71).

O conceito de paisagem, de acordo com Holzer (1998), surge no Renascimento, em um contexto de inovações tecnológicas atrelado a um novo sistema de representação do espaço,

cujo significado original está relacionado às técnicas de perspectiva e da pintura de cavalete. Conceito este que, segundo o autor, foi durante muito tempo ignorado pela geografia e esteve associado ao conceito de lugar, além de assumir interpretações e reflexões distintas a partir da década de 60 em estudos de geógrafos alemães, franceses, ingleses e norte-americanos.

Cosgrove e Jackson (2011) reiteram que na década de 1970 representantes da Escola de Berkeley reconstroem o conceito de paisagem e de cultura sobre novas referências conceituais de modo que as qualidades simbólicas da paisagem, que sustentam seu significado social, tornaram-se objeto de pesquisa ampliando as fontes disponíveis para a Geografia Cultural.

Os autores consideram a paisagem uma imagem cultural, que pode ser revelada enquanto configuração de símbolos e signos através de diversos meios e superfícies, ou seja, por intermédio da pintura, escrita, filmes, ou mesmo da terra e sugerem metodologias mais interpretativas do que morfológicas, como a da linguística e da semiótica. Dessa forma, os autores reconhecem dentro da Geografia Cultural uma linha interpretativa “que desenvolve a metáfora da paisagem como texto.” (COSGROVE; JACKSON, 2011, p. 137).

[...] a ser lido e interpretado como documento social. Do mesmo modo, Clifford Geertz descreve a antropologia como interpretação de textos culturais; introduz a ideia simples de que toda vida social envolve a interpretação e negociação de significados dentro de um grupo de atores sociais. Os cientistas sociais, porém, adicionam uma camada extra de significado ao situarem o discurso (escrevendo-o como uma série de textos ou etnografias). Geertz define a revelação etnográfica de múltiplas camadas de significado. (COSGROVE; JACKSON, 2011, pp. 137-138).

Sobre esse assunto, Torres (2013) afirma que a paisagem está repleta de elementos simbólicos, cuja leitura de mundo se estabelece a partir da experiência de cada indivíduo que interage com ela.

A interação do ser humano com o espaço faz da paisagem algo em constante transformação, seja no plano da materialidade das coisas que os seres humanos constroem /desconstroem e organizam no espaço, seja no plano da imaterialidade; dos sentidos e significados atribuídos a cada elemento constituinte da paisagem. (TORRES, 2013, p. 95).

O autor destaca que experiências vivenciadas pelo ser religioso na paisagem permitem- lhe a capacidade de valorização de elementos sagrados e profanos, além de contribuir para “a construção e/ou reafirmação da identidade religiosa, englobando nesse processo percepções e memórias de cada indivíduo e do grupo.” (TORRES, 2013, p. 95).

Diante de tais apontamentos, Torres (2013) afirma ser pertinente a compreensão das percepções e memórias dos indivíduos integrados a paisagem, pois esta, constituinte de uma

unidade do espaço em constante transformação, torna-se reflexo da relação direta com o ser humano e com a cultura.

Torres (2013) observa que as paisagens contêm histórias e discursos, expressos em memórias individuais e coletivas de valores construídos ao longo do tempo, e conferem identidade tanto ao indivíduo quanto ao grupo. Pois além de conformarem-se no subjetivo de cada indivíduo, as paisagens tornam-se elos de contato a partir de experiências de coletividade. Os discursos decorrentes da paisagem e presentes nela podem estar contidos em uma ou mais formas simbólicas (arte, mito, religião, linguagem), o que garante o sentido atribuído a cada paisagem. Portanto, numa observação estética da paisagem que considere apenas os subsídios materiais visíveis, elementos do sagrado podem passar despercebidos, o que inviabiliza ou minimiza o potencial do estudo da paisagem religiosa. Assim a paisagem deve ser estudada em seus diferentes aspectos sensíveis (formas, cheiros, sons, texturas, cores, sabores, movimentos), pois é a partir deles que os indivíduos percebem na e atribuem significados a cada elemento que a constitui. (TORRES, 2013, p. 98).

Kozel (2012) problematiza o conceito de paisagem e nos propõe ir além deste que relaciona natureza e sociedade, cujo entendimento constitui-se por múltiplos elementos (visuais, sonoros, odoríferos e tácteis), sendo estes, portadores de significados por aqueles que os vivenciam. A partir destas proposições, a autora aponta a existência de “inúmeras maneiras de representá-la, uma vez que também são inúmeras as percepções, valores e significações de quem vive e capta essa paisagem.” (KOZEL, 2012, p. 68).

Como desafio, Kozel (2012) chama atenção ao processo de captar sua inteireza, pois é necessário atentar-se para as diferentes formas de ver e sentir a natureza.

Cada paisagem é produto e produtora de cultura, e é possuidora de formas e cores, odores, sons e movimentos, que podem ser experienciados por cada pessoa que nela se insira, ou abstraído por aquele que lê pelos relatos e/ou imagens. Nesse sentido, é por meio da paisagem que os elementos que integram no espaço ‘saltam aos olhos’ do ser humano, ‘gritam aos seus ouvidos’, e envolvem-no nas suas dimensões sensíveis. [...] Entendo que a percepção não se limita ao sentido da visão, o estudo da paisagem na abordagem cultural da Geografia propõe ir além dos aspectos visuais, considerando toda a sua dimensão subjetiva; desvendar a alma do lugar.

Abrem-se, neste entendimento, outros elementos e interpretações para se discutir as paisagens considerando-as como um complexo de formas e de relações culturais é preciso aguçar o olhar não apenas para a leitura estética, mas buscar desvendar os significados dos lugares em sua essência, além das relações aparentes que geralmente são estabelecidas entre eles. (KOZEL, 2012, p. 69).

Com o objetivo de destacar a essência do ser humano e as relações que estabelece com o mundo por meio da cultura, sentimentos e valores, a autora orienta o desenvolvimento da Geopoética. Esta que se configura pela tríade olhar, sentir e ouvir em busca dos significados e da inteireza nas análises das paisagens, pela “alma do lugar” por meio de uma “autopoesis”

abarcando uma dimensão geográfica entre natureza, cultura e seres humanos, a fim da compreensão de sermos e estarmos no mundo. (KOZEL, 2012, p. 76).

Refletir o mundo pela Geopoética propõe o resgate da sua inteireza por meio de linguagens, expressas de formas diferenciadas e sensíveis como nas artes visuais, a música, odores, expressão oral e escrita em combinação e sintonia. Assim propicia o desenvolvimento de projetos criativos nas mais distintas áreas do conhecimento, mente, pois toda criação da mente é, fundamentalmente, poética (WHITE, 1990 apud KOZEL, 2012, p. 66).

A partir destas conceituações, Kozel (2012) acredita que as imagens artísticas se configuram enquanto linguagem capaz de refletir vivências, sentimentos e imaginações pautadas em um contexto sociocultural e estabelecem um diálogo importante na compreensão da cultura humana.

Todas as imagens são resultados do olhar de quem as cria e seus significados são consequências da interpretação dada pelo espectador. A imagem reitera aquilo que sentimos, ansiamos, imaginamos, sonhamos, vivemos, pensamos, escrevemos, discutimos. As obras de arte adquirem sentido enquanto uma forma de linguagem, à medida que se ancoram na experiência sensível dos indivíduos – e, toda linguagem reflete o homem e seu mundo. Tanto a arte quanto a geografia estão diretamente relacionadas o desenvolvimento sociocultural de cada sociedade em sua época e os refletem em suas visões e representações de mundo. (FERREIRA, S., 2009 apud KOZEL, 2012, p. 76).

Pela observação dos aspectos analisados, esta pesquisa desenvolveu-se em face das inúmeras possibilidades de investigações e conceitos apontados por esses autores. Tendo em vista o estudo de uma manifestação de religiosidade, buscou-se a compreensão das Companhias de Reis e do Menino Jesus de Carmo do Rio Claro (MG) considerando o diálogo com o lugar, com a memória dos sujeitos atreladas aos grupos, a sociedade local e poder público. Dessa forma, ciência e poética se entrecruzam com o objetivo de revelar significados históricos- simbólicos-embates-desafios presentes nas relações entre local-Companhias-sociedade-Poder Público.

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